>> Bioimperialismo, controle total da vida na Terra, espalhar a cultura da ignorância – Vandana Shiva em entrevista

>> Bioimperialismo, controle total da vida na Terra, espalhar a cultura da ignorância – Vandana Shiva em entrevista

Fonte: Moorish Travels
Transcrição traduzida: Mario S. Mieli
Janeiro de 2012


Moorish Travels: India – Interview With Vandana Shiva


Estamos aqui em Navdanya, na Índia com Vandana Shiva…

– O que é Navdanya?

Navdanya quer dizer nove sementes, e é um símbolo de diversidade. Mas quer dizer também uma nova dádiva. Que eu vejo como a dádiva do bem comum. E o resgate do bem comum.

Comecei Navdanya em 1987 quando, numa conferência de biotecnologia, chamada de “Laws of Life” (Leis da Vida), a velha indústria química estava lá. Essa indústria, que está em mutação e se faz chamar agora de nova tecnologia genética: os gigantes das “ciências da vida”. Eles estavam falando de como precisavam ter novos tratados de livre comércio para adquirir empresas menores para investir onde bem quisessem, de como precisavam apostar em engenharia genética para conseguirem patentes sobre todas as formas de vida na Terra.

Porque patentes querem dizer “ter a posse”, ter a propriedade intelectual, isso quer dizer coletar royalties dos agricultores. A visão deles é o que eu chamaria de BIOIMPERIALISMO – O CONTROLE TOTAL DA VIDA NA TERRA.

E como eu amo a vida, eu amo a liberdade, isso para mim era inaceitável e não quis esperar para começar a fazer, para começar a responder. Sabia que se não começássemos a salvar sementes IMEDIATAMENTE, não haveria mais muito o que ser salvo. Comecei a viajar pelo país, encontrar-me com agricultores, coletar sementes e até agora já construímos 55 BANCOS DE SEMENTES COMUNITÁRIOS na Índia. Isso quer dizer sementes ‘open-source’ porque são polinizadas de forma aberta, num processo que se renova a si mesmo, as sementes podem ser salvadas e crescem todos os anos.

Porque o objetivo das indústrias é IMPEDIR A REPRODUÇÃO DAS SEMENTES de modo a forçar os agricultores a se dirigir ao mercado. É ‘open source’ também porque compartilhamos as sementes livremente, trocamos, salvamos, reproduzimos, compartilhamos essas sementes, entre os diferentes Bancos de Sementes do Navdanya, que se tornam fontes aonde os agricultores podem ter acesso para obtê-las como um bem comum.

– Estamos na Índia, e ouvi falar de culturas orgânicas nas montanhas e de como as pessoas incorporaram a cultura em sua agricultura, em termos orgânicos, sustentáveis e ecológicos. Qual o papel que a nacionalidade e a cultura desempenha no cultivo orgânico e sustentável?

Sempre fomos levados a crer, quer se trate da indústria química quer da engenharia genética, que a questão é tecnológica. Mas a tecnologia não é mais que uma ferramenta parcial de modificação de uma parte de um inteiro sistema. Mas a tecnologia cria em torno de si toda uma cultura. De modo que o cultivo químico é uma cultura da insensibilidade, do descuido. Você usa pesticidas descuidadamente e descuidadamente joga no solo material sem se preocupar com os microrganismos do solo. No início, quando eu debatia com representantes do setor de engenharia genética sobre os OGM (organismos geneticamente modificados) eles diziam: a razão dessas sementes serem muito inteligentes é porque com elas o agricultor não precisa pensar.

De modo que o que eles querem é espalhar a cultura da ignorância entre os cultivadores. Assim, o descuido e a ignorância são uma combinação altamente tóxica e letal de se fazer uma má agricultura. Já o cultivo orgânico é uma cultura de amor, de cuidado, de conhecimento profundo. Conhecimento de como funciona o solo. De como as plantas cooperam umas com as outras, de como se ter certeza de que os polinizadores encontrem habitats seguros. Parte do legado dessa cultura do descuido na agricultura é o desaparecimento das abelhas. Não podemos nos permitir que as abelhas desapareçam, ou que as minhocas desapareçam. Charles Darwin disse que as minhocas são provavelmente a espécie mais importante para os seres humanos, porque elas mantêm e renovam a fertilidade do solo, constantemente, e executam o trabalho para nós. De forma que o cultivo orgânico significa conhecer o inter-relacionamento entre as diferentes espécies, conhecer suas funções, cuidar delas, conservar o solo, a água, a biodiversidade e partilhar as dádivas desse impressionante capital natural, que as espécies em cooperação nos providenciam.

– A sra. falou de se estar em sintonia com as diferentes espécies, de como elas coabitam, e isso tem a ver com o fato de se estar espiritualmente em sintonia com tudo o que nos cerca, o meio-ambiente. Isso parece ser necessário para a agricultura orgânica. Então o que a sra. diria sobre a espiritualidade em sua relação com a agricultura orgânica, sustentável e ecológica?

Parte do que a agricultura industrial fez foi destruir nossa relação tanto com a natureza quanto com os próprios alimentos. Seja a natureza que os alimentos sempre foram sagrados para as culturas que sustentaram a terra. Há um elemento do plantio orgânico que passou a ser uma commodity para a agricultura industrial – plantam-se milhas de tomates que são, depois, enviados para o Walmart para serem revendidos a um preço barato, havendo roubo em cada nível.

Mas a agricultura autenticamente ecológica, autenticamente orgânica é um ato espiritual. Tem de ser um ato espiritual, pois em primeiro lugar reconhece a sacralidade da vida. E se dedica a manter essa sacralidade, tratando o cultivo como um serviço prestado a essa sacralidade. O cultivo se torna, portanto, um ato espiritual. Meu caro amigo Wendel Berry certa vez escreveu que “comer é um ato agrícola”. Ao comer, não estamos apenas comendo, mas transformando a agricultura.

E eu levaria isso um passo adiante: a agricultura é um ato espiritual. Porque é a dedicação espiritual e o serviço espiritual de se manter a vida na terra. É também a dedicação do serviço sagrado de se fornecer alimentos bons e saudáveis. Temos uma bela escritura sagrada, o Taittiriya Upanishad, e devo ter uma cópia por aqui, com o texto chamado Annadanam [N. do T.: palavra que em sânscrito significa ofertar, doar ou compartilhar (danam) alimentos (annam)], a dádiva sagrada do alimento.

Essa escritura afirma que não há dever mais elevado no mundo que plantar e doar alimentos em abundância.

E nunca se pode ter abundância se a única coisa em que se pensa é como espremer até a última gota de fertilidade do solo, como espremer até o último recurso de uma família de camponeses e como introduzir uma agricultura custosa para produzir alimentos baratos por meio de altíssimos subsídios. O que é também roubar do povo, pois esse não é dinheiro gerado pelas corporações, mas dinheiro gerado pelo povo que trabalha duro.

De modo que não podemos reivindicar a agricultura através do mero cálculo bitolado de mercado, pois o mercado distorceu tudo, ele mente em cada nível. O mercado afirma que as monoculturas que produzem menos alimentos são produtivas; diz que a agricultura à base de combustíveis fósseis que consomem 10 unidades de energia para produzir uma unidade de alimentos, é eficiente; o mercado diz que uma agricultura custosa, e que está levando cultivadores na Índia ao suicídio, e que está levando os cultivadores e suas famílias em todo o mundo a abandonarem suas plantações… que ela produz alimentos baratos. Não, esse custo é muito alto.

Não podemos continuar com esse sistema distorcido. Precisamos ter uma mudança de valores. E a mudança de valores é que “alimento não é uma commodity”, não é produzido somente para se ter lucros.

O alimento é a própria vida. E porque o alimento é a própria vida, trazer o sagrado de volta para a cadeia alimentar, de como é produzida a como é processada, distribuída e comida, é algo vital, se quisermos que a humanidade tenha um futuro.

Não é preciso ser um cultivador orgânico para se interessar por cultivos orgânicos. Mas, afinal, todos temos que comer, duas, três vezes por dia (…) mas seja o que for que comemos, ou o alimento se torna a nutrição para o nosso corpo, ou ele se torna veneno.

E deveríamos nos respeitar mais a nós mesmos. Manter nosso corpo saudável. O cultivo orgânico é o único modo como podemos produzir alimentos saudáveis, porque a agricultura química lança mão de tóxicos fortes, OGM quer dizer genes tóxicos incorporados à colheita, com marcadores de resistência antibióticos, com promotores virais, etc.. Não precisamos embaralhar nossos alimentos com isso, não precisamos embaralhar nossos corpos.
A segunda razão para se promover o cultivo orgânico e se comer alimentos orgânicos é porque a agricultura química industrial se tornou a força mais destrutiva do meio-ambiente do planeta. 70% da água é ‘abusada’ para uso pela agricultura química. A água é sugada, adicionam-se produtos químicos à mesma e ela é despejada nos rios, o que acaba tornando os oceanos zonas mortas.

Esses produtos químicos destruíram a biodiversidade, nossos polinizadores, os organismos de nossos solos… o solo foi desertificado. Nossas espécies estão desaparecendo. A extinção da biodiversidade está a taxas demasiadamente elevadas. E 70% da biodiversidade agrícola foi destruída pela agricultura química industrial.

E não é só isso. O solo vivo é o capital real de onde extraímos alimentos. O cultivo orgânico renova a vida do solo, dando-nos mais alimentos para sempre. O cultivo químico mata os fertilizantes originais do solo, os microrganismos. Por um tempo, com um pouco de ureia, um pouco de npk, a produção parece subir um pouco, mas logo em seguida a curva desce, pois matou-se o oceano de fertilidade. E, finalmente, esses fertilizantes artificiais se transformam em óxido de nitrogênio, evaporam no ar e se tornam um gás de efeito estufa 300 vezes mais nocivo que o dióxido de carbono, mudando a atmosfera e a habilidade do clima de se manter em equilíbrio.

No meu livro Soil, not oil (Solo, não óleo) descrevo os detalhes e mostro que 40% de toda mudança climática é devida à má agricultura, que está destruindo a terra, os cultivos e a nossa saúde.

Se você liga para a sua saúde, coma alimentos orgânicos, apoie as plantações orgânicas. Se você liga para o meio-ambiente, coma alimentos orgânicos, apoie as plantações orgânicas. E se você liga para o interior, para a forma de sustento da população no campo e, especialmente nos dias de hoje, com os colapsos de Wall Street, os cambalachos dos bancos, faz todo o sentido confiarmos na Terra. Os meios de sustento provindos da terra são a obra de efeito mais longo que podemos ter neste planeta.

A Terra é o maior gerador de empregos. Não é o intercâmbio de desempregados, não são os especuladores de commodities nem os bancos. Mas a Terra. O chão que ela oferece, o trabalho que ela cria. Ela nos está convidando e nós não deveríamos recusar este convite.



Nota Imediata:

A importância dos alimentos é ressaltada nas antigas escrituras: Vedas, Upanishads, Dharma Sastras, Dhamma Pada, etc…

No Taittiriya Upanishad, mencionado por Vandana Shiva em sua entrevista, afirma-se que “Toda a força vital provem dos alimentos”. E no Bhagavad Gita, Sri Krishna declara que: ”Do alimento todos os seres evolvem”.
Para mais detalhes sobre Annadanam, consultar:

http://kataragama.org/research/annadanam.htm


A IMEDIATA foi pioneira no Brasil na apresentação, tradução e divulgação dos artigos, entrevistas e pensamentos de Vandana Shiva em português. Recomendamos a leitura dos seguintes artigos de Vandana Shiva, entre outros, disponíveis no site IMEDIATA:

>> Cinco minutos com Vandana Shiva – “Não há limites para o que podemos criar.”
http://imediata.org/?p=674

VANDANA SHIVA: ABAIXO A DITADURA ALIMENTAR!!!?http://imediata.org/?p=470

Está na hora de acabar com a Guerra contra a Terra http://imediata.org/?p=365

Os campos de extermínio das corporações multinacionais; os pesticidas, poluição e economias de genocídio http://imediata.org/?p=356

A injustiça dos créditos de carbono compensatórios http://imediata.org/?p=84

Consultar também os vários artigos anteriores no

Arquivo Imediata:do portal Lance de Dados: http://imediata.org/lancededados/

e do portal Biodiversidade Imediata:: http://imediata.org/biodiv/?

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