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Publicado em 19 de julho de 2010 por The Asian Age
Tradução: Agência Imediata

A tragédia do gás de Bhopal foi o pior desastre industrial da história da humanidade. 25.000 pessoas morreram, 500.000 sofreram ferimentos e danos à saúde, e a injustiça feita às vítimas de Bhopal nos últimos 25 anos passará para a história como o pior caso de jurisprudência de todos os tempos.

O vazamento de gás em Bhopal em dezembro de 1984 ocoreu na fábrica principal da Union Carbide, a qual manufaturava o “carabaryl” (nome comercial: “sevin”) – um pesticida usado sobretudo em indústrias de algodão. Foi, de fato, por causa da tragédia do gás de Bhopal e da tragédia da violência extremista na região de Punjab que eu percebi que a agricultura tinha se tornado uma zona de guerra. Os pesticidas são substâncias químicas de guerra que matam – a cada ano, 220.000 pessoas morrem devido aos pesticidas, em todo o mundo.

Depois de pesquisar o assunto, concluí que não precisamos de pesticidas tóxicos que matam seres humanos e seres de outras espécies, os quais sustentam a teia da vida. Os pesticidas não controlam as pragas e pestes, eles criam as pragas e pestes, matando as espécies benéficas. Temos alternatives mais seguras e não violentas, tal como o nim (azadirachta indica). Por isso, na época do desastre de Bhopal, comecei a campanha “Chega de Bhopals, plante um nim.” A campanha pelo nim levou-me a desafiar a biopirataria sobre o nim, em 1994, quando soube que a multinacional estadunidense W.R. Grace, tinha patenteado o nim para uso como pesticida e fungicida, e estava construindo uma fábrica de extração de nim em Tumkur, Karnataka. Lutamos contra o caso de biopirataria por 11 anos e, no fim, fomos bem sucedidos, derrotanto essa patente biopirata.

Nesse mesmo período, as indústrias produtoras de pesticidas estavam passando por uma mutação, convertendo-se no setor de biotecnologia e engenharia genética. Ao mesmo tempo em que a engenharia genética era promovida como uma alternativa aos pesticidas, o algodão Bt era introduzido para terminar com o uso de pesticidas. Mas o algodão Bt falhou em controlar as pragas de algodão, muito pelo contrário, acabou criando novas pragas, o que levou a um aumento no uso de pesticidas.

O alto custo das sementes geneticamente modificadas (GM) e dos pesticidas estão causando o endividamento dos agricultures e agricultures endividados estão cometendo suicídio. Se adicionarmos os 200.000 suicídios de agricultures na Índia às 25.000 pessoas mortas em Bhopal, a conclusão é de que estamos testemunhando um genocídio corporativo maciço – a matança de pessoas com o fim de se obter magalucros. Para manter esses megalucros, contam-se mentiras sobre como, sem pesticidas e organismos geneticamente modificados (OGMs), ficaríamos sem alimentos. De fato, as conclusões da International Assessment of Agricultural Science and Technology for Development (Avaliação Internacional das Ciências e Tecnologias Agrícolas para o Desenvolvimento), empreendida pelas Nações Unidas, mostra que a agricultura ecologicamente orgânica produz mais alimentos a um custo mais baixo do que a agricultura química ou os OGMs.

O setor agroquímico e o seu novo avatar, o setor biotecnológico, não distorcem e manipulam somente o conhecimento, a ciência e a política pública. Ele também manipula a lei e o sistema jurídico. A razão pela qual se negou justiça às vítimas de Bhopal é porque as corporações querem fugir de suas responsabilidades. Fugir das responsabilidades é, efetivamente, o verdadeiro significado de “livre comércio”. A tragédia de Bhopal é dupla.

É interessante observar que o desastre de Bhopal ocorreu precisamente quando as corporações buscavam a desregulamentação e a imunidade relativas a qualquer obrigação, através dos instrumentos do “livre comércio”, da “liberalização do comércio”, da “globalização”, tanto por meio da pressão bilateral quanto através da Rodada do Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, ou General Agreement on Tariffs and Trade), que levou à criação da Organização Mundial do Comércio.

A injustiça para com o povo de Bhopal tem sido usada para demonstrar às corporações que elas têm imunidade, em consequência de qualquer matança que provocam. É isso que os politicos de nível superior comunicaram à Dow Chemical. É isso que o fórum da Comissão EUA-Índia para a Cooperação Ambiental afirmou em 11 de junho de 2010, no contexto das reivindicações, em toda a Índia, a favor de justiça para com as vítimas de Bhopal. Conforme comentário de um jornal, Bhopal está sendo visto como um “empecilho e impedimento ao comércio… as recomendações incluem remover os empecilhos para o comércio (pela Índia), e a adoção de um tipo de regime de responsabilidade nuclear”.

Negar justiça a Bhopal tem sido a base de todos os investimentos tóxicos desde o desastre de Bhopal, seja o algodão BT, a fábrica de náilon da DuPont ou a Lei Civil de Responsabilidade Nuclear (Civil Nuclear Liability Bill).

Assim como as vítimas de Bhopal foram resarcidas com apenas 12.000 rúpias (aproximadamente US$ 250) cada uma, a Lei de Responsabilidade Nuclear também procura estipular um teto de responsabilidade monetária de somente US$ 100 milhões quanto às operações privadas de uma indústria nuclear no caso de um acidente nuclear. Uma vez mais, pessoas podem ser mortas, mas corporações estão desobrigadas de pagar.

Tem havido também um intenso debate na Índia quanto aos OGMs. Foi feita uma tentativa pela Monsanto/Mahyco de introduzir o Bt brinjal em 2009. Em consequência de audiências públicas realizadas em todo o país, foi colocada em prática uma moratória para sua comercialização. Imediatamente depois que a lei da moratória foi introduzida pelo Órgão de Regulamentação de Biotecnologia da Índia – a lei não somente desobriga o setor biotecnológico de qualquer responsabilidade, como também inclui uma cláusula que capacita o governo a prender e a multar qualquer pessoa que questione a necessidade e a segurança dos OGMs.

De Bhopal aos pesticidas, aos OGMs e às indústrias nucleares, há duas lições que podemos tirar. Uma, a de que corporações introduzem tecnologias perigosas, como pesticidas e OGMs para fins de lucro, e lucro somente. A segunda lição, relacionada ao comércio, é a de que corporações procuram expandir seus mercados e relocar tecnologias perigosas e de alto custo ambiental para países como a Índia.

As corporações procuram globalizar a produção, mas não querem globalizar a justiça e os direitos. A diferença no tratamento da Union Carbide e da Dow Chemical no contexto de Bhopal, e o da BP no contexto do derramamento de petróleo no Golfo do México mosta como está sendo criado um verdadeiro apartheid. A desvalorização da vida das pessoas do Terceiro Mundo e dos ecossistemas é intrínseco ao projeto de globalização. A globalização está levando à terceirização da poluição – substâncias e tecnologias perigosas – para o Terceiro Mundo. Esse é o coração da globalização – as economias de genocídio.

Lawrence Summers, que era o economista-chefe do Banco Mundial e é agora o economista-chefe do governo Obama, num memorando de 12 de dezembro de 1991 escreveu para um funcionário do Banco: “Entre você e eu, o Banco Mundial não deveria encorajar uma maior migração das indústrias sujas para os países menos desenvolvidos?”

Como os salários são baixos no Terceiro Mundo, os custos econômicos da poluição decorrentes de mais doenças e mortes são menores nos países mais pobres. Segundo o Sr. Summers, a lógica da “relocação de poluentes nos países com salários mais baixos é impecável e deveríamos encará-la”.

Tudo isso e Bhopal nos deve ensinar a reivindicar por nossa humanidade universal e comum, e construir uma Democracia Planetária, na qual todos sejamos iguais, e onde as corporações não tenham imunidade por seus crimes contra o povo e o planeta.

© 2010 Asian Age

Vandana Shiva é uma feminista e ativista ambiental da Índia. Ela é a fundadora e diretora do Navdanya Research Foundation for Science, Technology, and Ecology.

English original

Published on Monday, July 19, 2010 by The Asian Age

The Killing Fields of Multi-National Corporations

Pesticides, Pollution and the Economies of Genocide

by Vandana Shiva

The Bhopal gas tragedy was the worst industrial disaster in human history. Twenty-five thousand people died, 500,000 were injured, and the injustice done to the victims of Bhopal over the past 25 years will go down as the worst case of jurisprudence ever.

The gas leak in Bhopal in December 1984 was from the Union Carbide pesticide plant which manufactured “carabaryl” (trade name “sevin”) – a pesticide used mostly in cotton plants. It was, in fact, because of the Bhopal gas tragedy and the tragedy of extremist violence in Punjab that I woke up to the fact that agriculture had become a war zone. Pesticides are war chemicals that kill – every year 220,000 people are killed by pesticides worldwide.

After research I realised that we do not need toxic pesticides that kill humans and other species which maintain the web of life. Pesticides do not control pests, they create pests by killing beneficial species. We have safer, non-violent alternatives such as neem. That is why at the time of the Bhopal disaster I started the campaign “No more Bhopals, plant a neem”. The neem campaign led to challenging the biopiracy of neem in 1994 when I found that a US multinational, W.R. Grace, had patented neem for use as pesticide and fungicide and was setting up a neem oil extraction plant in Tumkur, Karnataka. We fought the biopiracy case for 11 years and were eventually successful in striking down the biopiracy patent.

Meanwhile, the old pesticide industry was mutating into the biotechnology and genetic engineering industry. While genetic engineering was promoted as an alternative to pesticides, Bt cotton was introduced to end pesticide use. But Bt cotton has failed to control the bollworm and has instead created major new pests, leading to an increase in pesticide use.

The high costs of genetically-modified (GM) seeds and pesticides are pushing farmers into debt, and indebted farmers are committing suicide. If one adds the 200,000 farmer suicides in India to the 25,000 killed in Bhopal, we are witnessing a massive corporate genocide – the killing of people for super profits. To maintain these super profits, lies are told about how, without pesticides and genetically-modified organisms (GMOs), there will be no food. In fact, the conclusions of International Assessment of Agricultural Science and Technology for Development, undertaken by the United Nations, shows that ecologically organic agriculture produces more food and better food at lower cost than either chemical agriculture or GMOs.

The agrochemical industry and its new avatar, the biotechnology industry, do not merely distort and manipulate knowledge, science and public policy. They also manipulate the law and the justice system. The reason justice has been denied to the victims of Bhopal is because corporations want to escape liability. Freedom from liability is, in fact, the real meaning of “free trade”. The tragedy of Bhopal is dual.
Interestingly, the Bhopal disaster happened precisely when corporations were seeking deregulation and freedom from liability through the instruments of “free trade”, “trade liberalisation” and “globalisation”, both through bilateral pressure and through the Uruguay Round of General Agreement on Tariffs and Trade (GATT) which led to the creation of the World Trade Organisation.

Injustice for Bhopal has been used to tell corporations that they can get away with murder. This is what senior politicians communicated to Dow Chemical. This is what the US-India Commission for Environmental Cooperation forum stated on June 11, 2010, in the context of the call from across India for justice for Bhopal victims. As one newspaper commented, Bhopal is being seen as a “road block and impediment to trade… the recommendations include removing road blocks to commercial trade by (India), and adoption of a nuclear liability regime”.

Denial of justice to Bhopal has been the basis of all toxic investments since Bhopal, be it Bt cotton, DuPont’s nylon plant or the Civil Nuclear Liability Bill.

Just as Bhopal victims were paid a mere Rs 12,000 (approximately $250) each, the proposed Nuclear Liability Bill also seeks to put a ceiling on liability of a mere $100 million on private operations of a nuclear power plant in case of a nuclear accident. Once again, people can be killed but corporations should not have to pay.

There has also been an intense debate in India on GMOs. An attempt was made by Monsanto/Mahyco to introduce Bt brinjal in 2009. As a result of public hearings across the country, a moratorium has been put on its commercialisation. Immediately after the moratorium a bill was introduced for a Biotechnology Regulatory Authority of India -the bill does not only leave the biotechnology industry free of liability, but it also has a clause which empowers the government to arrest and fine those of us who question the need and safety of GMOs.

From Bhopal to pesticides to GMOs to nuclear plants, there are two lessons we can draw. One is that corporations introd­u­ce hazardous technologies like pe­sticides and GMOs for profits, and profits alone. And second le­sson, related to trade, is that corporations are seeking to ex­p­a­nd markets and relocate haza­r­d­o­us and environmentally costly te­c­hnologies to countries like India.

Corporates seek to globalise production but they do not want to globalise justice and rights. The difference in the treatment of Union Carbide and Dow Chemical in the context of Bhopal, and of BP in the context of the oil spill in the Gulf of Mexico shows how an apartheid is being created. The devaluation of the life of people of the Third World and ecosystems is built into the project of globalisation. Globalisation is leading to the outsourcing of pollution – hazardous substances and technologies – to the Third World. This is at the heart of globalisation – the economies of genocide.

Lawrence Summers, who was the World Bank’s chief economist and is now chief economic adviser to the Obama government, in a memo dated December 12, 1991, to senior World Bank staff, wrote, “Just between you and me, shouldn’t the World Bank be encouraging more migration of the dirty industries to the less developed countries?”

Since wages are low in the Third World, economic costs of pollution arising from increased illness and death are least in the poorest countries. According to Mr Summers, the logic “of relocation of pollutants in the lowest wage country is impeccable and we should face up to that”.

All this and Bhopal must teach us to reclaim our universal and common humanity and build an Earth Democracy in which all are equal, and corporations are not allowed to get away with crimes against people and the planet.

© 2010 Asian Age

Vandana Shiva is an Indian feminist and environmental activist. She is the founder/director of Navdanya Research Foundation for Science, Technology, and Ecology.

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