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Poemário vasculhado 5: Cântico das Criaturas – Giovanni di Pietro Bernardone (São Francisco de Assis)

Sempre achei que São Francisco deve ter sido um homem de extremo e apuradíssimo bom gosto. Dispensador da mais elegante das graças, que é a própria graça.

Não só por ser de família burguesa abastada

que comercializava tecidos finos há gerações.

Não só pelo pai italiano e mãe francesa (daí o nome que vingou, Francesco), de uma classe social habituada a conviver com o que a vida podia oferecer de melhor.

Não só por gostar de Santa Clara, decantada por sua beleza sem par.

Não só por ter nascido na pequena joia que é Assisi, na Úmbria etrusca, já cultura antiquíssima e parâmetro de requinte até no recente… tempo dos romanos, região onde a natureza concedeu-se a forma de se revelar mais simples, imprevista e menos polida e perfeita que a mais-que-perfeita Toscana, bem ao lado, mas sem esquecer de processar continuamente toda a herança artística e cultural desse misterioso povo etrusco que a habitou. (A própria loba esculpida, símbolo de Roma é, na realidade, uma estátua etrusca…)

O bom gosto extremo e inevitável de Francisco

deve ter sido, também, fruto de sua busca

de síntese e essência,

despojamento e desprendimento,

inclusão e celebração do todo com o todo,

da mais absoluta e elegante simplicidade.

O primeiro texto em língua italiana que se conhece

é justamente a poesia (ou fioretto – pequena flor) conhecida como

Cântico das Criaturas

de Francisco de Assis – para muitos um dos mais belos poemas jamais escrito.

Mas não foi só nas artes da escrita que Francisco pioneirou. Segundo Regina Vater, que de instalações entende imensamente mais que um pouco, foi Francisco o artista que inventou as instalações. Afinal de contas, o que mais seria o “presépio”, criação dele, se não uma verdadeira e própria instalação, um tableau vivant da inclusão, onde humanos e animais, astros e elementos, pedras e reis magos protagonizam e celebram o milagre da vida? Sem perder a perspectiva, tantas atribuições de pioneirismo artístico certamente fariam Francisco balançar a cabeça e sorrir. Dá para imaginar o santo cobrando copyrights?

Quando tudo é tratado e saudado como irmão e irmã de si próprio e de todo o gênero humano: o Sol, a Lua, as estrelas, a Vida, até a própria Morte, além de todos os elementos – ar, fogo, água, terra, ao mesmo tempo em que traz para o nível humano os elementos da criação inteira, ele eleva o ser humano ao patamar de todos os astros mais poderosos e dos elementos mais fundamentais que os e nos constituem. O que é isso senão o mais elevado Humanismo? E com que maestria e elegância ele executa este difícil e complicado nivelamento. (Nisso me pergunto se não teria sido, poeticamente, um dos precursores do Renascimento – além da ecologia moderna, do respeito à natureza e de todas as suas espécies, da mais radical mensagem poético-política – a absoluta e imprescindível necessidade de inclusão.)

Sempre imaginei que este poema devia ter sido escrito por Francisco enquanto mirava a mais linda das paisagens ao redor de Assisi, al fresco, livre e solto, alegre e despreocupado, divertindo-se relaxado e contemplativo nos belíssimos campos da Úmbria, dando cambalhotas e “plantando bananeiras” sobre a farta grama até alcançar a videira de uvas mais doces, num daqueles dias em que o Sol e a Lua nos dão a graça de aparecerem juntos, no céu.

Qual não foi meu espanto ao fazer uma pesquisa, anos atrás, e aprender que quando escreveu o poema, Francisco, ainda relativamente jovem, já não podia há muito, muito tempo (meses? anos?), sair de sua miserável, sombria e diminuta cela de monge em que esposou a pobreza material, e que se encontrava extremamente doente, debilitado e sofrendo das mais atrozes dores.

Quando confirmei essas informações, o Cântico das Criaturas, que já era um dos escritos que mais jus fazia à estatura de poesia, passou a ter um valor ainda mais especial. Talvez o milagre maior de Francisco foi o de ter consigo, no seu interior, o amor pela totalidade desses irmãos e irmãs, de respeitar e amar na plenitude essas maravilhas todas de que somos parte. Seu “Senhor” é o criador que habita em todas as criaturas. E ele não negligenciou de celebrá-los e celebrar-nos, de EXULTAR, EXULTAR, EXULTAR, apesar do seu estado extremamente deplorável. Desde então, nunca parei de me perguntar:

– Seriam os “santos” (de toda e qualquer crença, cultura ou misticismo) também os maiores profetas/poetas que o gênero humano produziu? Afinal, não é por meio deles que efetivamente se dá a luz ao Logos? Ao verbo? E se o Gênesis estiver certo, quando diz que no início era o Verbo… (não um substantivo, não um adjetivo, não um artigo ou preposição…. era um Verbo)… não são os poetas, profetas e santos aqueles que, por causa de sua intensidade na loucura de amar, têm o dom e mágico poder de sabê-lo conjugar… ?

UM SUBLIME FIORETTO A TODOS, EM NOME DE FRANCISCO, CLARA E DAMIÃO…

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Segue o Cântico das Criaturas em português, no original italiano medieval, espanhol, francês e inglês.

Em português

O Cântico das Criaturas

(ou Cântico do Irmão Sol)

Altíssimo, onipotente, bom Senhor

Teus são o louvor, a glória, a honra

E toda a benção.

Só a ti, Altíssimo, são devidos;

E homem algum é digno

De te mencionar

Louvado sejas, meu Senhor

Com todas as tuas criaturas,

Especialmente o senhor irmão Sol,

Que clareia o dia

E com sua luz nos alumia.

E ele é belo e radiante

Com grande esplendor:

De ti, Altíssimo, é a imagem.

Louvado sejas, meu Senhor,

Pela irmã Lua e as Estrelas,

Que no céu formaste-as claras

E preciosas e belas.

Louvado sejas, meu Senhor,

Pelo irmão Vento,

Pelo ar, ou nublado

Ou sereno, e todo o tempo,

Pelo qual às tuas criaturas dás sustento.

Louvado sejas, meu Senhor

Pela irmã Água,

Que é muito útil e humilde

E preciosa e casta.

Louvado sejas, meu Senhor,

Pelo irmão Fogo

Pelo qual iluminas a noite,

E ele é belo e jucundo

E vigoroso e forte.

Louvado sejas, meu Senhor,

Por nossa irmã a mãe Terra,

Que nos sustenta e governa

E produz frutos diversos

E coloridas flores e ervas.

Louvado sejas, meu Senhor,

Pelos que perdoam por teu amor,

E suportam enfermidades e tribulações.

Bem-aventurados os que as sustentam em paz,

Que por Ti, Altíssimo, serão coroados.

Louvado sejas, meu Senhor,

Por nossa irmã a Morte corporal,

Da qual homem algum pode escapar.

Ai dos que morrerem em pecado mortal!

Felizes os que ela achar

Conformes à tua santíssima vontade,

Porque a morte segunda não lhes fará mal!

Louvai e bendizei ao meu Senhor,

E dai-lhe graças,

E servi-o com grande humildade.

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Italiano medievale – una delle prime poesie e scritti in lingua italiana – 1225-1226

Il Cantico delle Creature

di San Francesco d’Assisi

Altissimu, onnipotente bon Signore,

Tue so’ le laude, la gloria e l’honore et onne benedictione.

Ad Te solo, Altissimo, se konfano,

et nullu homo ène dignu te mentovare.

Laudato sie, mi’ Signore cum tucte le Tue creature,

spetialmente messor lo frate Sole,

lo qual è iorno, et allumini noi per lui.

Et ellu è bellu e radiante cum grande splendore:

de Te, Altissimo, porta significatione.

Laudato si’, mi Signore, per sora Luna e le stelle:

in celu l’ài formate clarite et pretiose et belle.

Laudato si’, mi’ Signore, per frate Vento

et per aere et nubilo et sereno et onne tempo,

per lo quale, a le Tue creature dài sustentamento.

Laudato si’, mi Signore, per sor’Acqua.

la quale è multo utile et humile et pretiosa et casta.

Laudato si’, mi Signore, per frate Focu,

per lo quale ennallumini la nocte:

ed ello è bello et iocundo et robustoso et forte.

Laudato si’, mi Signore, per sora nostra matre Terra,

la quale ne sustenta et governa,

et produce diversi fructi con coloriti fior et herba.

Laudato si’, mi Signore, per quelli che perdonano per lo Tuo amore

et sostengono infrmitate et tribulatione.

Beati quelli ke ‘l sosterranno in pace,

ka da Te, Altissimo, sirano incoronati.

Laudato s’ mi Signore, per sora nostra Morte corporale,

da la quale nullu homo vivente pò skappare:

guai a quelli ke morrano ne le peccata mortali;

beati quelli ke trovarà ne le Tue sanctissime voluntati,

ka la morte secunda no ‘l farrà male.

Laudate et benedicete mi Signore et rengratiate

e serviateli cum grande humilitate.

s-francesco

En espanõl:

El cántico de las criaturas

Autor: San Francisco de Asís

Altísimo y omnipotente buen Señor,

tuyas son las alabanzas,

la gloria y el honor y toda bendición.

A ti solo, Altísimo, te convienen

y ningún hombre es digno de nombrarte.

Alabado seas, mi Señor,

en todas tus criaturas,

especialmente en el Señor hermano sol,

por quien nos das el día y nos iluminas.

Y es bello y radiante con gran esplendor,

de ti, Altísimo, lleva significación.

Alabado seas, mi Señor,

por la hermana luna y las estrellas,

en el cielo las formaste claras y preciosas y bellas.

Alabado seas, mi Señor, por el hermano viento

y por el aire y la nube y el cielo sereno y todo tiempo,

por todos ellos a tus criaturas das sustento.

Alabado seas, mi Señor, por el hermano fuego,

por el cual iluminas la noche,

y es bello y alegre y vigoroso y fuerte.

Alabado seas, mi Señor,

por la hermana nuestra madre tierra,

la cual nos sostiene y gobierna

y produce diversos frutos con coloridas flores y hierbas.

Alabado seas, mi Señor,

por aquellos que perdonan por tu amor,

y sufren enfermedad y tribulación;

bienaventurados los que las sufran en paz,

porque de ti, Altísimo, coronados serán.

Alabado seas, mi Señor,

por nuestra hermana muerte corporal,

de la cual ningún hombre viviente puede escapar.

Ay de aquellos que mueran

en pecado mortal.

Bienaventurados a los que encontrará

en tu santísima voluntad

porque la muerte segunda no les hará mal.

Alaben y bendigan a mi Señor

y denle gracias y sírvanle con gran humildad.

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En français

Cantique du frère Soleil ou des créatures

Très haut, tout puissant et bon Seigneur

à toi louange, gloire, honneur et toute bénédiction

à toi seul ils conviennent ô Toi Très haut

et nul homme n’est digne de te nommer.

Loué sois-tu, Seigneur, avec toutes tes créatures

spécialement messire frère Soleil

par qui tu nous donnes le jour, la lumière

il est beau, rayonnant d’une grande splendeur

et de toi, le Très Haut, il nous offre le symbole.

Loué sois-tu, mon Seigneur, pour soeur Lune et les Etoiles

dans le ciel tu les as formées claires,

précieuses et belles.

Loué sois-tu, mon Seigneur, pour frère Vent,

et pour l’air et pour les nuages

pour l’azur calme et tous les temps

grâce à eux tu maintiens en vie toutes les créatures.

Loué sois-tu, mon Seigneur, pour soeur Eau

qui est très utile et très sage

précieuse et chaste.

Loué sois-tu, mon Seigneur, pour frère Feu

par qui tu éclaires la nuit,

il est beau et joyeux,

indomptable et fort.

Loué sois-tu, mon Seigneur, pour soeur notre mère la Terre

qui nous porte et nous nourrit,

qui produit la diversité des fruits

avec les fleurs diaprées et les herbes.

Loué sois-tu, mon Seigneur, pour ceux

qui pardonnent par amour pour toi,

qui supportent épreuves et maladies,

heureux s’ils conservent la paix

car par toi, le Très Haut, ils seront couronnés.

Loué sois-tu, mon Seigneur, pour notre soeur la Mort corporelle,

à qui nul homme vivant ne peut échapper,

malheur à ceux qui meurent en péché mortel,

heureux ceux qu’elle surprendra faisant ta volonté

car la seconde mort ne pourra leur nuire.

Louez et bénissez mon Seigneur,

rendez-lui grâce et servez-le

en toute humilité.

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In English

The Canticle of the Creatures
St. Francis of Assisi

Most High, all-powerful, good Lord,

all praise is yours, all glory, all honor,

and all blessing.

To you, alone, Most High, do they belong.

No mortal lips are worthy to pronounce your name.

All praise be yours, my Lord,

through all you have made,

and first my lord Brother Sun, who brings the day;

and through whom you give us light.

How beautiful is he, how radiant in all his splendor;

Of you, Most High, he bears the likeness.

All Praise be yours, my Lord, through Sister Moon

and the stars; in the heavens you have made them,

bright, and precious, and fair.

All praise be yours, my Lord,

through Brothers wind and air, and fair and stormy,

all the weather’s moods,

by which you cherish all that you have made.

All praise be yours, my Lord, through Sister Water,

so useful, humble, precious and pure.

All praise be yours, my Lord, through Brother Fire,

through whom you brighten up the night.

How beautiful is he, how cheerful!

Full of power and strength.

All praise be yours, my Lord, through our Sister Mother Earth, who sustains us and governs us,

and produces various fruits with colored flowers

and herbs.

All praise be yours, my Lord,

through those who grant pardon for love of you;

through those who endure sickness and trial.

Happy are those who endure in peace,

By You, Most High, they will be crowned.

All praise be yours, my Lord, through Sister Death,

From whose embrace no mortal can escape.

Woe to those who die in mortal sin!

Happy those she finds doing your will!

The second death can do them no harm.

Praise and bless my Lord, and give him thanks

And serve him with great humility.

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