>> Amores Insólitos 29 – Compartilhar Poesia – 100 RUBLOS E 100 DÓLARES (VIAGEM NO METRÔ DE MOSCOU), por Giulietto Chiesa


Amores Insólitos 29 – Compartilhar Poesia – 100 RUBLOS E 100 DÓLARES (VIAGEM NO METRÔ DE MOSCOU), por Giulietto Chiesa

Por: GIULIETTO CHIESA
Fonte: ilfattoquotidiano.it de 22.10.2012
Tradução: Mario S. Mieli



Estação Kropotkinskaja, metrô de Moscou

Estou na fila, na estação Kropotkinskaja do metrô de Moscou. Estou contando os rublos necessários para comprar um bilhete. Custa 28 rublos, mas eu sou bagunçado e tenho sempre moedas e notas no mesmo bolso. Assim, tiro um punhado de dinheiro, ao acaso, com o resultado de que um bilhete de 100 rublos cai no chão.


Nem bem me abaixo para catá-lo. Um homem se precipita mais velozmente que eu. Agarra a nota e a estende com um gesto gentil e humilde, ao mesmo tempo.


Tem uma barba inculta, mas não longa, arrepiada, com algum fio branco. O rosto é largo, escavado, russo como aquele dos marinheiros do Encouraçado Potiomkin. Eu tinha notado isso distraidamente, do canto dos olhos, enquanto ele me olhava com intenção. Eu o tinha catalogado apressadamente como um candidato a mendigo. Isso é, como um mendigo que ainda não se explicitou como tal. Ou pior, como um daqueles que colhem a ocasião, procurando o “frango”, estudando-o cuidadosamente para depois lhe aplicar o golpe. Há desses tipos também em Moscou, e a Kropotkinskaja, bem próxima à Igreja do Salvador, é um lugar entre os mais adequados para os “frangos”.

Fui eu que lhe ofereci a ocasião, mostrando-lhe aquele bolo de dinheiro. Penso que um tempo atrás uma coisa desse tipo não teria sido simplesmente possível. Falo dos tempos soviéticos, já tão distantes que ninguém se lembra mais. Pelo menos no Ocidente. Agora a homogeneização, o amálgama globalizante é tal que os mendigos e os batedores de carteiras, os pobres diabos podem ser vistos com a mesma triste intensidade em cada capital do mundo. Moscou não é mais exceção.

Não é que naquela época não existissem os miseráveis. Existiam, mas não se viam. De todo jeito, existiam em menor número, eram diferentes. Quando se viam, eram simplesmente e velozmente retirados de circulação, como se fazia com os bêbados, sobretudo no inverno, para que não morressem congelados…

Mas ele, este sujeito, recolocou os 100 rublos na minha mão. E a anomalia precisa ser explicada.

Quem responderá à interrogação de minha cabeça será ele mesmo. O meu bilhete faz apagar o sinal vermelho e me faz aceder à grande escada rolante e, rapidíssimo, me faz despencar nas vísceras, nos trens que levam à Biblioteca Lenin, e depois à Tverskaja. E ele me segue. Aliás, me escolta. Não é arrogante, continua a manter a cabeça um pouco dobrada sobre o ombro esquerdo, o que lhe dá um aspecto entre o curioso e o tímido. Mas teimoso.

O senhor é estrangeiro, não é?” Óbvio que me reconheceu. Não conheço estrangeiro que possa mimetizar-se, na Rússia, mesmo que fique calado. Basta um par de sapatos, uma gravata. Mil detalhes te traem. Posso dizer apenas que, com o tempo, eu mesmo me tornei como eles. No sentido de que sou capaz de reconhecer um russo – ou melhor ainda, uma russa – a trezentos metros de distância, quando estou em algum lugar fora da Rússia. De modo que estamos quites, somos iguais. E é o único sentido em que podemos ser iguais. Fico na minha. Curioso, eu também. Mas o que ele quer?

“Fico contente de encontrar um italiano. Justo hoje eu compus uma poesia sobre o mar da Crimeia. Vocês têm um mar lindíssimo. Isso eu posso dizer, embora o tenha visto só no cinema. Posso recitá-la?”

Agora penso que não somos iguais, iguais de jeito nenhum. Como poderia saber que sou também italiano, além de estrangeiro? Vou lhe contar. “O senhor tem um rosto conhecido”, responde lacônico. E começa a recitar sua poesia. Eu um degrau abaixo, ele um degrau acima, em voz baixa. Fala e canta, como fazem os russos quando recitam poesias. Os versos são respingantes, velozes, irônicos. Não sei se entendi tudo, mas não importa: gostei deles. Gosto da maneira como ele os recita. A viagem será longa, há uma mudança de estação, um largo corredor lotado que procede como um rio escuro, que ignora a nossa presença. E ele recita, uma segunda poesia, depois uma terceira. Depois interrompe, por timidez, só quando tomamos o segundo trem. Está cheio de gente e, talvez, não queira que o escutem. De fato, recita só para mim, o estrangeiro, o italiano, que leva consigo o seu mar. É um presente? E por que raios teria que me dar esse presente? Não tenho resposta. Escuto. Desconfiado. Essa é uma armadilha, ainda que eu não possa ver de onde poderia vir o perigo. Ou então ele é um louco que quer falar, comunicar, desabafar.


Esenin

A Tverskaja com seus mármores luxuosos nos acompanha até a saída. Dessa vez eu estou no degrau superior e ele no degrau de baixo, ainda me propõe versos. “Essa é de Esenin, conhece? Shaganè, ty mojà, Shaganè, potomu, chto ja s severa, chto li…”. Faz um interrupção. “Não, deveria recitar versos de Pushkin. Aqui fora, na praça, fica o seu monumento.” Pensa de novo. Retoma Esenin. Como terá feito para saber que é uma das poucas poesias russas que eu conheço um pouco? Mistério, coincidência.


Pushkin

“O senhor como se chama?”, lhe pergunto. “Boris”- responde – Boris Mikhailovic”.

E não acrescenta nada mais. A escada rolante ainda vai durar um bom pedaço. E eu ainda não entendi o que está acontecendo. Acho que deveria agradecê-lo. De fato, sinto-me em falta. Esse Boris, me presenteou com meia hora de música, que eu não tinha pedido.

“O senhor tem um telefone, Boris Mikhailovic? Quem sabe amanhã poderíamos almoçar juntos, que tal?” Sacode a cabeça, sorri. “O telefone está com minha mulher, mas eu não vivo mais com ela. Mas não importa, foi um prazer para mim”. Olho melhor para ele. O casaco está bem surrado. As bordas das mangas, apoiadas no corrimão, estão obviamente puídas. Talvez lhe poderia dar um pequeno presente, assim, para retribuir.


Enfio a mão no mesmo bolso bagunçado. Lá dentro, além dos rublos, têm também aqueles dólares que se precisa levar, nunca se sabe. A intenção é lhe dar 100 rublos. Acho que valerão, talvez, o suficiente para comprar um hot dog na Praça Pushkin. São menos de três euros. Nos tempos que correm, talvez não dê nem para um hot dog. Melhor duzentos. Mas não saem duzentos rublos, saem cem rublos e cem dólares. Estendo-lhe as notas, um pouco desolado. Mas não ouso segurar-lhe a mão. Atrás de mim tem o inteiro mar da Itália. Estou diante da Poesia, não de Boris Mikhailovic. Maldição! Cem dólares são tantos para cinco poesias! Acabei me ferrando sozinho. Ele, sorrindo-me de baixo para cima, agarra-me a mão, olha de pressa em volta, para ver que ninguém estivesse olhando. E me fecha a mão na sua. “Não preciso de nada. Era um presente.

Depois desaparece no meio das pessoas, sem me dar nem o tempo de me recompor, de lhe dar o meu número de telefone, de dizer-lhe adeus.

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