Os carreiristas

Por: Chris Hedges
Fonte: truthdig de 24 de julho de 2012
Tradução: Mario S. Mieli



Os maiores crimes da história humana se tornaram possíveis graças aos mais insípidos e pálidos seres humanos. Esses seres são os carreiristas. Os burocratas. Os cínicos. Eles fazem os pequenos biscates que fazem dos vastos e complicados sistemas de exploração e morte uma realidade. Eles coletam e leem os dados pessoais colhidos junto a milhões de pessoas como nós, pelo estado de segurança e controle. Eles fazem a contabilidade da ExxonMobil, BP e Goldman Sachs. Eles constroem ou pilotam os drones – aeronaves teleguiadas sem tripulação. Eles trabalham em propaganda corporativa e relações públicas. Eles emitem os formulários. Eles processam a papelada. Eles negam ajuda alimentar a alguns e benefício desemprego ou cobertura médica a outros. Eles fazem cumprir as leis e os regulamentos. E eles não fazem perguntas.

Bem. Mal. Essas palavras não significam nada para eles. Eles estão além da moralidade. Eles estão lá para fazer funcionar os sistemas corporativos. Se companhias de seguro abandonam dezenas de milhões de doentes ao sofrimento e à morte, então que assim seja. Se bancos e a polícia despejam famílias para fora de suas casas, então que assim seja. Se o governo fecha escolas e bibliotecas, então que assim seja. Se militares assassinam crianças no Paquistão ou no Afeganistão, então que assim seja. Se especuladores de matérias primas provocam aumento exorbitante do preço do arroz, do milho e do trigo, de forma que esses alimentos se tornem proibitivos para milhões e milhões de pobres em todo o planeta, então que assim seja. Se o Congresso e os tribunais negam aos cidadãos seus direitos civis básicos, então que assim seja. Se o setor de combustíveis fósseis transforma a terra numa assadeira de gases de efeito estufa que nos arruína o futuro, então que assim seja. Eles servem o sistema. O bem do lucro e da exploração. A mais perigosa força no mundo industrializado não provém daqueles que ostentam credos radicais, seja o radicalismo islâmico ou o fundamentalismo cristão, mas de legiões de burocratas sem rosto que rastejam sua ascensão ao longo das camadas das máquinas corporativas e governamentais. Eles servem qualquer sistema que satisfaça sua patética quota de necessidades.

Os gerentes desses sistemas não acreditam em nada. Eles não têm nenhuma lealdade. Não têm nenhuma raiz. Eles não pensam além de seus mínimos, insignificantes papéis. Eles são cegos e surdos. Eles são, pelo menos no que diz respeito às grandes ideias e padrões da história e civilização humanas, completamente analfabetos. E nós os sacamos das universidades. Advogados. Tecnocratas. Graduados em Administração de empresas. Gerentes financeiros. Especialistas em TI. Consultores. Engenheiros de petróleo. “Psicólogos positivistas”. Graduados em Comunicações. Cadetes. Representantes de vendas. Programadores de computador. Homens e mulheres que não sabem nada de História, não conhecem nenhuma ideia. Eles vivem e pensam num vácuo intelectual, um mundo de ridícula e absurda minúcia. Eles são os “homens ocos” de T.S. Eliot, os “homens estufados”. “Configuração sem forma, sombra sem cor”, o poeta escreveu. “Paralisada força, gesto sem movimento”.

Foram os carreiristas que tornaram possíveis os genocídios, do extermínio dos nativos-americanos à matança turca dos armênios, ao holocausto nazista e às liquidações de Stalin. Eram eles que faziam funcionar os trens. Eles preenchiam os formulários e presidiam nos confiscos de propriedade. Eles racionavam a comida, enquanto as crianças morriam de fome. Eles fabricavam as armas. Eles faziam funcionar as prisões. Eles faziam cumprir as proibições de viajar, confiscavam passaportes, bloqueavam contas de banco e executavam a segregação. Eles aplicavam a lei. Eles faziam o seu trabalho.

Carreiristas políticos e militares, patrocinados por aqueles que lucram com a guerra, nos levaram a guerras inúteis, inclusive a Primeira Guerra Mundial, Vietnã, Iraque e Afeganistão. E milhões os seguiram. Dever. Honra. Pátria. Carnavais de morte. Eles nos sacrificam a todos. Nas fúteis batalhas de Verdun e Somme durante a Primeira Guerra Mundial, 1,8 milhões em ambos os lados foram mortos, feridos ou nunca encontrados. Em julho de 1917, o marechal de campo Douglas Haig, apesar dos oceanos de mortos, condenou outros mais ao pântano de Passchendaele. Em novembro, quando era claro que sua estratégia em Passchendaele tinha fracassado, ele abandonou seu objetivo inicial – como fizemos no Iraque, quando se descobriu que eles não tinham armas de destruição em massa e no Afeganistão, quando a al-Qaida deixou o país – e optou por uma simples guerra de atrito. Haig “venceria” se mais alemães que tropas aliadas morressem. A morte como cartão de pontuação. Passchendaele sacrificou mais 600.000 vidas, em ambos os lados da linha, antes de acabar. Não é matéria para notícias. Generais são quase sempre bufões. Soldados seguiram John the Blind (João, O Cego), que tinha perdido a vista uma década antes, numa derrota clamorosa na Batalha de Crécy em 1337, durante a Guerra dos Cem Anos. Descobrimos que líderes são mediocridades somente quando é tarde demais.

David Lloyd George, que era o primeiro-ministro britânico durante a campanha de Passchendaele, escreveu em suas memórias: “[Antes da batalha de Passchendaele] o Pessoal do Corpo de Tanques preparou mapas para mostrar como um bombardeio que obliteraria a drenagem levaria, inevitavelmente, a uma série de poças, e eles localizaram os lugares exatos onde as águas se formariam. A única resposta foi uma ordem peremptória de que eles “Não deveriam enviar mais desses ridículos mapas”. Mapas devem se conformar aos planos e não os planos aos mapas. Fatos que interferiam com os planos eram “impertinências”.

Eis aqui a explicação do porque as elites no poder não fazem nada sobre mudança climática, recusando-se a responder racionalmente à desintegração econômica, sendo incapazes de lidar com o colapso da globalização e do império. Essas são circunstâncias que interferem com a própria viabilidade e sustentabilidade do sistema. E burocratas só sabem como servir o sistema. Eles conhecem somente as capacidades gerenciais que ingeriram em West Point ou na Harvard Business School. Eles não podem pensar por si próprios. Eles não podem desafiar pressupostos ou estruturas. Eles não podem, intelectual ou emocionalmente reconhecer que o sistema pode implodir. Então fazem o que Napoleão advertiu que era o pior erro que um general poderia cometer – criar um quadro imaginário de uma situação e aceitá-la como real. Mas nós alegremente ignoramos a realidade junto com eles. A mania de um final feliz nos cega. Não queremos crer naquilo que vemos. É muito deprimente. Então nos recolhemos todos na auto-desilusão coletiva.

Em seu monumental filme documentário ““Shoah”, sobre o holocausto, Claude Lanzmann entrevista Filip Müller, judeu tcheco que sobreviveu às liquidações em Auschwitz como membro do “detalhe especial”. Müller relata esta história:

“Certo dia, em 1943, quando eu já me encontrava no Crematório 5, chegou um trem de Bialystok. Um prisioneiro no ‘detalhe especial” viu uma mulher no ‘quarto de se despir’, era a esposa de um amigo seu. Ele saiu diretamente e disse a ela: ‘Você vai ser exterminada. Em três horas, você será cinzas’. A mulher acreditou nele porque o conhecia. Ela correu por todo o lugar para avisar as outras mulheres. ‘Nós seremos mortos. Vão nos acabar com gás’. Mães que carregavam seus filhos nas costas não queriam ouvir. E decidiram que a mulher era louca. A expulsaram do lugar. Então a mulher foi ver os homens. Sem resultado. Não é que não acreditavam nela. Tinham ouvido rumores no gueto de Bialystok, ou em Grodno, assim como em outros lugares. Mas quem queria ouvir isso? Quando ela viu que ninguém queria ouvi-la, ela se arranhou o rosto todo. De desespero. E ela começou a gritar.”

Blaise Pascal escreveu em “Pensées”: “Corremos descuidadamente para o abismo depois de colocar algo em nossa frente que nos impeça de vê-lo.
Hannah Arendt, ao escrever “Eichmann em Jerusalém,” observou que Adolf Eichmann era motivado, principalmente, por uma “extraordinária diligência em buscar seu avanço pessoal”. Ele se juntou ao Partido Nazista porque isso era algo bom para a sua carreira. “O problema do Eichmann,” escreve ela, “era justamente que havia tantos como ele, e que esses tantos não eram nem pervertidos nem sádicos, que eram e ainda são, terrivelmente e terrificamente normais”.

“Quanto mais alguém o ouvia, mais óbvio se tornava que sua incapacidade de falar era intimamente relacionada com uma incapacidade de pensar, isto é, de pensar do ponto de vista de outra pessoa”, Arendt escreveu. “Nenhuma comunicação era possível com ele, não porque ele mentia, mas porque ele estava cercado pelas mais seguras de todas as salvaguardas contra as palavras e a presença dos outros e, portanto, contra a realidade como tal.”

Gitta Sereny faz o mesmo ponto em seu livro “Into That Darkness” (Dentro Daquela Escuridão), sobre Franz Stangl, o comandante de Treblinka. A designação para SS foi uma promoção para o policial austríaco. Stangl não era um sádico. Ele era de fala mansa e bem educado. Ele amava muito a sua esposa e seus filhos. Diferentemente da maioria dos oficias de campo nazistas, ele não tinha mulheres judias como concubinas. Ele era eficiente e muito organizado. Ele se orgulhava de ter recebido um elogio oficial como “o melhor comandante de campo na Polônia”. Os prisioneiros eram simplesmente objetos. Mercadorias. “Essa era a minha profissão”, disse ele. “Eu gostava dela. Ela me realizava. E, sim , eu era ambicioso quanto a isso. Não vou negar.” Quando Sereny perguntou a Stangl como, sendo pai, podia matar crianças, ele respondeu que ele “raramente as via como indivíduos. Era sempre uma massa imensa… Estavam nus, amassados juntos, correndo, sendo movidos a chicotes….” Posteriormente, disse a Sereny que quando leu sobre os lemingues, isso lhe fez lembrar Treblinka.

A coleção de ensaios de Christopher Browning “The Path to Genocide” (O Caminho ao Genocídio) observa que eram os “moderados”, os “normais” burocratas, e não os fanáticos, que fizeram o holocausto possível. Germaine Tillion assinalou “a trágica facilidade [durante o Holocausto] com a qual pessoas ‘decentes’ podiam se tornar os mais insensíveis carrascos, sem perceber, aparentemente, o que estava acontecendo consigo próprias”. O novelista russo Vasily Grossman, em seu livro “Forever Flowing” (Fluindo para Sempre), observou que “o novo estado não requeria santos apóstolos, fanáticos, construtores inspirados, discípulos fieis e devotos. O novo estado nem mesmo precisava de servos – só de funcionários”.

“O mais nauseante tipos de S.S. eram, para mim, pessoalmente, os cínicos que não acreditavam mais genuinamente na própria causa, mas que continuaram coletando a culpa do sangue como um fim em si mesmo”, escreveu a Dr. Ella Lingens-Reiner em “Prisoners of Fear” (Prisioneiros do Medo) em sua escaldante memória de Auschwitz. “Aqueles cínicos não eram sempre brutais com os prisioneiros, seu comportamento mudava conforme seu humor. Eles não levavam nada a sério – nem a si mesmos, nem a causa, nem nós, nem a nossa situação. Um dos piores entre eles era o Dr. Mengele, o Médico do Campo que eu mencionei antes. Quando uma carga de judeus recém-chegados ia ser classificada, separando aqueles que iriam para o trabalho forçado daqueles que seriam mortos, ele costumava assobiar uma melodia e, ritmicamente, contrair o polegar sobre o seu ombro direito ou esquerdo – o que queria dizer ‘gás’ ou ‘trabalho forçado’. Ele achava que as condições no campo eram podres, e fez até algumas coisas para melhorá-las mas, ao mesmo tempo, cometeu assassinatos indiferentemente, sem qualquer hesitação ou escrúpulo”.

Esses exércitos de burocratas servem um sistema corporativo que vai literalmente nos matar. Eles são tão frios e desconectados como Mengele. Eles efetuam pequenas tarefas. Eles são dóceis. Agem segundo os conformes. Eles obedecem. Eles encontram seu valor próprio no prestígio e no poder da corporação, no status de suas posições e em suas promoções de carreira. Eles se garantem de sua própria bondade através de seus atos privados como maridos, esposas, mães e pais. Eles participam dos conselhos escolares. Eles vão ao Rotary. Eles vão para a igreja. É esquizofrenia moral. Eles erigem muros para criar uma consciência isolada. Eles tornam realidade os objetivos letais da ExxonMobil ou do Goldman Sachs ou da Raytheon, ou das companhias de seguros. Eles destroem o ecossistema, a economia e o corpo político e tornam os trabalhadores e trabalhadoras meros servos empobrecidos. Eles não sentem nada. Ingenuidade metafísica sempre acaba em assassinato. Ela fragmenta o mundo. Pequenos atos de bondade e caridade mascaram o monstruoso mal que eles instigam. E o sistema rola em frente. E o gelo das calotas polares derrete. E as secas devastam as terras cultiváveis. E os drones entregam a morte a partir do céu. O estado avança inexoravelmente no intento de acorrentar-nos. Os doentes morrem. As prisões ficam repletas. E o/a carreirista, arrastando-se para frente, simplesmente faz o seu trabalho.

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