“Ser um Radical”
Por: Guy McPherson
Fonte: guymcpherson.com
Tradução: Mario S. Mieli
Guy McPherson
Vocês provavelmente reconhecerão este símbolo, mesmo que, talvez, não saibam o seu nome:
Quando escrevo este símbolo na lousa e peço aos estudantes o que é, a resposta é sempre a mesma: “A raiz quadrada”.
Respondo: “Sim, a sua função é extrair a raiz, seja a quadrada ou qualquer outra. Mas como se chama?”
Depois de um silêncio prolongado, seguido de: “O símbolo da raiz quadrada”.
Dou uma risada retumbante.
Verdade? Ninguém estudou matemática no primeiro grau?
Risadas nervosas.
“Bem, ofendi a todos aqui dentro, no primeiro minuto de nosso encontro”, digo. “Agora que me livrei dessa coisa, podemos continuar.”
Longa pausa antes da minha resposta: “Isso se chama um radical”.
Outra longa pausa antes que eu revele a resposta do exercício. “Chama-se um radical porque chega à raiz. Essa, aliás, é a definição de radical: aquele que vai à raiz ou à origem.”
Uso essa anedota para me apresentar à classe. Sou um radical, assinalo. E embora essa cultura tenha convencido a maior parte das pessoas que um radical seja uma coisa ruim, parecida com a anarquia, na verdade não é uma coisa ruim, e é diferente daquilo que a maioria das pessoas acredita que é.
Quanto a este argumento, ressoam em mim as palavras de H. L. Mencken: “A noção de que um radical seja alguém que odeia o seu país é ingênua e bastante estúpida. Um radical, pelo contrário, é alguém que ama o seu país mais que os outros e, portanto, sofre mais que os outros quando vê o seu país no desastre. Não é um mau cidadão que se volta ao crime; é um bom cidadão levado ao desespero”.
Um bom cidadão levado ao desespero. Parece correto. Algumas citações para demonstrar esse ponto:
“ O perfeito papagaio era o estudante perfeito… Como os estudantes do colegial ou de outras escolas superiores, raramente questionávamos a verdade de qualquer afirmação. Em vez disso, nossa preocupação era compreender exatamente cada frase proferida pelo professor ou escrita no livro didático… Imaginem o efeito produzido por anos desse tipo de treinamento na mente em formação dos alunos. O hábito do conformismo mental se torna quase inextirpável. Eu era parte de apenas uma entre várias gerações de vítimas. Quantos professores nos disseram que a ordem estabelecida não era a única coisa que existia? Havia apenas vagas alusões quanto à possibilidade de mudança. Não éramos rebeldes. Não éramos pioneiros. Nem mesmo éramos plagiadores entusiasmados ou devotos. Éramos meros discos sobre os quais se gravava a linguagem de nossa geração. Em alguns períodos, chamados de fase de exames, esperava-se que reproduziríamos essa linguagem, palavra por palavra e parágrafo por parágrafo.
O “American Way” não se baseava na “vida, liberdade e busca da felicidade”, mas na determinação de homens de negócios de achatar os salários e aumentar os lucros. O American Way tinha sido concebido para tornar os ricos mais ricos e manter os pobres no lugar deles.
Enquanto isso, os fabricantes de guerras, cuja profissão consiste na destruição e nos assassinatos em massa, tinham tomado o controle dos Estados Unidos e de suas políticas e escreviam as regras do jogo e puxavam o ponto… Os EUA da minha juventude estavam escorrendo embaixo dos meus pés e desvaneciam de minha vista. O Mayflower Covenant, a carta do amor e das boas relações humanas de William Penn, a Bill of Rights de Thomas Jefferson, a Constituição de 1789 que, como bom aluno, tinha aprendido palavra por palavra. O Gettysburg Address de Lincoln e o Second Inaugural tinham se tornado papel de rascunho… Tínhamos começado a transformar nossos arados em espadas e nossas foices em lanças, as ferramentas de trabalho em armas e técnicas de destruição e massacre.
A que turma eu pertencia? Como podia me classificar a mim mesmo? Seria eu um Dom Quixote, combatendo ineficazmente contra os moinhos de vento? Será que era eu o louco, e os meus compatriotas cidadãos conservadores e imobilistas os sãos de mente? Ou eu o único com mente sadia e todos eles doidos?
Não gostava nada do mundo que eu via. Era um mundo no qual as forças destrutivas claramente estavam por cima. Tinham me ensinado a acreditar nas possibilidades do bem-estar para cada indivíduo e na probabilidade de melhoria social. Em vez disso, eu me encontrava num mundo totalmente voltado à sua autodestruição.
Vivo nos Estados Unidos só porque trabalho aqui… Me envergonho de qualquer conexão com a oligarquia que atualmente governa mal, explora, saqueia e corrompe os EUA e o mundo.
Como indivíduo, continuo a fazer o que posso. Vou por aí, falo e escrevo para contrastar a ignorância, a inércia, o escapismo. Acredito que há uma consciência crescente da crise e da gravidade da ameaça que paira sobre a humanidade. Há também uma consciência crescente de que já tenha sido tomada a decisão crucial e que o processo de vaporização da civilização ocidental esteja adiantado no seu curso… A minha contribuição pessoal está cada vez mais assumindo a forma de um auxílio “estrangeiro” – voltado aos meus concidadãos que quase não reconheço mais.
São pessoas sem história, enganadas, iludidas, inexperientes, perplexas. São pessoas que estão cada vez mais se distanciando da razão, do instinto, da emoção, comprometidos pateticamente só com as tentativas de fugir de um destino nefasto que os está cercando aos poucos, como uma névoa que envolve um navio no mar.
Com uma maior consciência da situação real, crescia em mim a convicção de que eu deveria fazer alguma coisa. Tentei falar, escrever, discutir, conferenciar, e fui esnobado e ignorado pelos meus concidadãos americanos. Continuo fazendo o possível, em cada oportunidade, falando o que tinha para falar depois de refletir e aprofundar as questões. Continuo oferecendo minha ajuda aos concidadãos americanos como se oferece ajuda a um homem que está se afogando e que está sendo levado, cada segundo mais longe, por uma corrente irresistível. Ofereço esta ajuda de bom grado, esperançosamente, ansiosamente.
Como o Velho Marinheiro, digo aos transeuntes preocupados: você escolheu e está seguindo um caminho que leva à sua destruição e, provavelmente, à destruição de centenas de milhões de outras pessoas. Eu aconselhei, me opus, avisei, desacreditei, denunciei. Você insiste em percorrer o caminho que leva à sua perdição. Continua correndo e me ignorando. Eu continuo advertindo. Você não me vê e não me escuta. Você não enxerga as infinitamente ricas possibilidades que a vida lhe oferece, aí, aos seus pés, inutilizadas. Você continua no seu caminho – caminho que milhões de humanos percorreram antes de você, iludidos e corrompidos pelas continhas espelhadas e chitas estampadas que as sociedades civilizadas oferecem aos seus devotos.
Eu dei as costas para a Oligarquia Americana, o American Way of Life, o Século Americano, o Império Americano, a civilização ocidental. A inteira cadeia de civilizações trouxe um pouco de luz, aprendizagem, alegria e esperança a muito poucos seres humanos, enquanto multidões viveram e morreram na escuridão, na ignorância, na miséria, no desespero. Eu dei as costas para esta míope e oportunista aceitação daquilo que é, porque estou convencido de que poderíamos alcançar, criar, tocar e colher uma vida melhor e fazê-la nossa, se somente conseguíssemos fazer um esforço maior.
Queimei a última ponte que me conectava ao American Way of Life porque estou convencido de que as ideias, os dispositivos, as técnicas e instituições da civilização foram tentados vez após outra e se revelaram ineficazes. São supérfluas e obsoletas porque já existem outros modos, disponíveis para quem dar as costas ao passado e encarar o futuro com esperança, confiança, criatividade e consciência da necessidade de uma ação combinada e radical.
Digo adeus à civilização ocidental. Sem nenhuma sombra de pesar, tento extirpá-la de minha vida como tento extirpar qualquer memória desagradável ou dolorosa.
A minha separação da civilização ocidental e de suas modalidades está quase tão completa quanto a minha separação das civilizações de Roma e do Egito. Continuo a viver nos Estados Unidos, o centro de poder da civilização ocidental, porque isso é parte de minha tarefa, mas não tenho mais compaixão ou preocupação que um emissário dos EUA quando enviado para alguma área pré-capitalista da África equatorial ou da América do Sul. O emissário vive no meio do atraso, mas não pertence a ele. É exatamente assim que eu me sinto quanto às minhas relações com os EUA, onde devo viver por força.
Quem podia imaginar, no começo do século, que depois de uma breve estadia no exterior, eu teria voltado para essas margens e encontrado grande parte de Los Angeles, Detroit e Washington em ruinas fumegantes, saqueadas e pilhadas? Quem podia prever o nível atual de consumo de drogas da população, as ondas de criminalidade, os tumultos, a ferocidade policial? Cada vez me pergunto, incrédulo: mas essa é mesmo a minha casa?
Esta nação afluente, drogada, debochada, corrompida, poluída, iludida é um país que eu nunca poderia ter imaginado em minha juventude. É uma terra estranha e hostil. Cada vez que retorno a ela, não posso dizer alegremente “Estou voltando pra casa”. Em vez disso, preciso preparar a mim mesmo para voltar a um ambiente estrangeiro e nada agradável.
Nenhuma pessoa razoável pode encarar os fatos do presente sem se dar conta da urgência da situação. É o despontar dessa consciência a causa principal da onda de protestos, rupturas e destruição que está assolando o planeta no presente. A reação é mais evidente entre os jovens. Eles têm a vida pela frente. Os pais, membros de uma geração precedente, estão mais acostumados com a situação. Para a maioria deles, as coisas nunca foram melhores no passado.
O homem perturba e destrói o equilíbrio da natureza. A natureza responde, reestabelecendo o equilíbrio. Passamos a vida construindo represas e diques mas, antes que possamos perceber, a natureza já está ali, erodindo e rompendo. A água já começa a escorrer. A natureza é incansável, persistente, implacável.
Ensinar é minha profissão. Ensinar, no sentido mais amplo do termo, significa procurar a verdade, transmiti-la a todos os que estão dispostos a ouvi-la e incorporá-la na vida da comunidade. A verdade é, frequentemente, desagradável, entediante e insípida para aqueles que detêm uma quantidade desproporcional de bens materiais, para aqueles que são famintos de poder e que defendem suas causas em detrimento da maioria. De modo que tentam evitar a verdade, encobertá-la, para se esquecerem dela. É função dos profissionais de ensino, entre os quais sou um membro permanente, continuar a descobrir a verdade, lembrando os ricos e poderosos do caráter e significado dessa verdade, leva-la à atenção pública e procurar torna-la a pedra miliar da vida pública local, regional, nacional e planetária.
Tive o raro privilégio de estar presente e, em parte, assistir ao processo de destruição de um sistema social, e ao começo do desenvolvimento de um padrão alternativo de sociedade humana. Se essa tivesse sido, para mim, a única coisa que a vida me tivesse dado, já teria valido a pena. Sou grato pela oportunidade que tive e espero que o povo possa persistir até a vitória nessa luta perigosa, tirando cada vez mais vantagem das infinitas possibilidades de experimentos criativos e melhorias duradouras.”
As palavras precedentes, como aquelas de Mencken, ressoam em mim. Foram escritas por Scott Nearing e publicadas em 1972 em sua autobiografia, “The Making of a Radical”. Na época, ele tinha 89 anos. As referências à sua juventude e ao começo do século oferecem sua perspectiva a partir do início do século XX.
Um inteiro século depois, uma forma similar de radicalismo me aflige, como aquela que afligiu Nearing. Sou ignorado ou denigrado quando denuncio as ações tomadas para escorar um império em declínio, incluindo ações militares sem precedentes no Oriente Médio e norte da África.
Da mesma forma, sou ignorado ou denigrado quando aponto os óbvios sinais de rebelião da população e os prováveis resultados dessas rebeliões, além das causas das mesmas. As chamadas aumentam em número e tenacidade quando aponto a aparentemente óbvia necessidade de destruir a civilização industrial, o sistema que está levando à extinção vários milhares de espécies todos os dias, e que nos adoece, nos leva à insanidade e nos mata, enquanto dizimamos a população humana e nos espoliamos de nossa única casa.
Imaginem este cenário: Você passa em frente de uma casa todos os dias. Nessa casa, um velho assassina 200 bebês enquanto você está passando. O que você deveria fazer? A resposta que costumo ouvir: Você passa em frente à casa, tape os ouvidos para não ouvir os gritos e feche os olhos para não ver.
Não se trata de um cenário hipotético, e é muito pior do que eu indiquei. Não são somente 200 bebês que esta velha civilização assassina a cada dia. São 200 espécies. Em outras palavras, é um genocídio. A maioria das pessoas responde que prefere que esse sistema continue para sempre. Uma pequena minoria gostaria que esse sistema homicida terminasse, preservando, assim, um habitat para os seres humanos por mais alguns anos. Somente pouquíssimas pessoas estão motivadas para o tipo de ação que poderia preservar a vida, inclusive o habitat para os seres humanos.
Quão radical é você? Você ama a vida? Está disposto a lutar por ela?
Guy McPherson é professor emérito em recursos naturais e meio-ambiente na Universidade do Arizona. Além de pesquisador, é autor de mais de 100 artigos e dez livros, entre os quais “Walking Away from Empire” (Abandonando o Império), concentrando seu trabalho na conservação da biodiversidade. Seu site: guymcpherson.com.
Palestra de Guy McPherson sobre O Mito da Sustentabilidade (em inglês)
Myth of Sustainability by Dr. McPherson