Dona Ana do Eldorado de Sampa
Mario S. Mieli,
Sampa, 9 de 9 de 2002
Ela, motorista de táxi.
Vive de transportar os outros de cá pra lá.
Passageiros de uma zona a outra.
Viajantes entre bairros.
Cidadãos de um templo de consumo a outro. O dia inteiro.
Sustenta-se com a mobilidade descontrolada
da mega-múltipla-metrópolis do Sul do mundo.
Aquela Sampa que o hemisfério todo está esperando
que se assuma e se promova
de cidade grande a grande cidade,
mas que, acanhada e
caipiristica-mente,
recusa-se a desempenhar a capacidade potencial de
projetar-se sobre o resto do país e do globo.
Contenta-se com imitações e projetos de
super-mega-hiper-shopping-centers
de consumo que acabam fazendo com que se
devore continuamente a si própria.
Dona Ana tem seu ponto de táxi num desses shoppings. No Eldorado.
– Mas que demora pra aparecer freguês hoje. Até que enfim!
– É mesmo? Porque será?
– Sei lá. Hoje não devia, é segunda. A gente nunca sabe. Então, pra onde vamos, freguês?
– Pra Gabriel Monteiro, na altura do Pão de Açúcar.
– Ainda bem! Táva pensando… só faltava o cliente pedir pra ir lá pro Tatuapé… Não que eu não goste de levar o freguês pra bem longe. Quanto mais longe melhor, mais eu ganho. Mas é que daqui a pouco preciso pegar minha filha lá na escola, no Rio Pequeno, e daí que agora não vai dar pra ir muito longe, mas até a Gabriel… tá perfeito…. Vai dar tempo até de sobra. Até de catar umas amorinhas selvagens numa casa que tá há muito abandonada, lá numa travessinha perto da Estados Unidos e da Groenlândia. O jardim da casa tá um matagal, mas tem as amoreiras mais lindas que eu já vi e dá chuchu de montão, também. Cai tudo pra fora do muro. Uma delícia de pegar.
(Ainda no estacionamento do megashopping) Não dá uma pena esse cimento todo pros carros e nenhuma plantinha, nenhuma arvorezinha, nem um pouquinho de verde pra gente e pra água? Nada. Arrancaram tudo que é planta e cimentaram a área toda. Por isso alaga quando chove. Alaga tudo. A água não tem pra onde infiltrar. Em cada vaga do estacionamento deviam plantar uma árvore. Bem aí, entre uma fileira e outra. E ainda por cima deviam botar uma plaquinha de identificação pro povo voltar a aprender o nome das árvores, o nome das plantas. Já pensou se em vez do sujeito se perguntar: – Na fileira de que setor parei o meu carro, no B5 ou no D4?, se perguntasse: – Meu carro está na ala das figueiras ou na ala das mangueiras? Não, estacionei embaixo dos pinheiros… dos cajuzeiros, perto das jacas.
(Já na saída do terreno cimentado, enquanto a voz gravada da máquina engole-cartão agradece o cliente por ter vindo ao Eldorado e declara esperar revê-lo em breve) Tá vendo essa pitangueira aí na calçada, bem em frente dessa casa de muro alto e branco? Fui eu que plantei, faz tantos anos que nem te conto. Tá ainda aí. E vira-e-mexe pego as pitangas dela pra comer enquanto dirijo. Mas guardo sempre as sementes todas. Tem semente dessa árvore que eu espalhei pela cidade inteira. E vingou quase tudo. Cresceram que tá uma beleza. Até na Brasil perto da Rebouças, atrás do Ibirapuera e no Morumbi também. O povo passa e nem sabe o que é, quem plantou. Mas sempre que passo dou uma olhada para ver se elas estão crescendo bem e se ainda estão dando frutas.
(Na esquina da Faria Lima com a Rebouças) Mas olha só que nojeira tá essa cidade agora, em plena campanha eleitoral, tá tudo ainda mais sujo. É uma tristeza, uma imundice. Olha só essas faixas, que desgosto. Esses cartazes. Como emporcalham a cidade inteira. Escondem tudo o que é árvore. Árvore é pra dar fruta. Pra dar sombra. Pra dar oxigênio e drenar água. Além de ser uma beleza. Não pra ser usada de suporte pra material de campanha eleitoral, pra afixar a cara de safado desses candidatos. É uma vergonha! Mas tá vendo aquela palmeira lá à direita, que linda? Olha só os cachos de sementes que ela tem. Peguei dessas sementes pra plantar lá em casa faz já um tempinho. Você precisa ver só, já tá bem mais alta do que o meu carro. Tá ficando linda. Se ela ficar bonita como a mãe… Não sei porque, mas acho que nesse bairro, essa palmeira é a mais bonita. Pelo menos pro meu gosto. Não é a mais alta, não é a mais frondosa, mas é a que eu gosto mais. Por isso peguei sementes dela pra plantar no jardim de casa. Antigamente tinha muitas outras espalhadas por aqui, mas quando reformam as casas ou constróem esses prédios todos, lá se vão as palmeiras, as bananeiras, as figueiras. E quando muito botam uma graminha vagabunda no lugar e algumas plantinhas decorativas… como é que chamam elas mesmo? Ornamentais, é… tudo plantinha ornamental…
Sabe freguês, gosto de todas as árvores, mas especialmente das frutíferas.
Faltam frutíferas!!!
Tá certo que tem mais do que a gente pensa, mas mesmo assim faltam frutíferas!!!
É que o povo não conhece nem reconhece mais nada. Acha que fruta nasce em fábrica e cresce no saquinho do supermercado. Ninguém sabe mais que planta é, que fruta dá. Mas eu tento cuidar quando passo, como posso. E planto onde posso, também. Por onde quer que eu passe. Quando não dá pra parar o carro, atiro as sementes na terra dos canteiros. Às vezes os fregueses acham esquisito. Acham que sou louca. Mas não ligo. Atiro sem parar. Sementes. Planto em tudo que é lugar. Na cidade inteira.
(Enquanto falava desenvolta, sábia e apaixonada, Dona Ana, exímia motorista, controlava a presença de todas as suas árvores amigas em nosso percurso, perscrutando todos os canteiros e quintais e jardins do caminho. Seu olhar se tornava ansioso quando um caminhão lhe ocultava a visão de algumas das plantas, aflito quando dava pela falta de algum chorão removido pela prefeitura, esperançoso quando via que o projeto paisagístico de algum novo showroom ou loja tinha tido a presença de espírito de manter em vida os espécimes mais preciosos daquele terreno, ou perigosamente subversivo ao pressentir o infinito prazer vindouro do reapropriar-se de alguns dos espaços invadidos para uma nova vitória quotidiana da vida, alguma ulterior reconquista sub-reptícia, subterrânea e articulada do reino vegetal.)
Taxímetros e sementes.
Corridas e germinação.
Pitangas e buzinas.
Trocos e troncos.
Raízes profundas no meio do trânsito em trânsito.
Ainda há focos de ousadia.
Uma mulher que ainda é motorista de táxi numa das cidades mais violentas e intimidantes do mundo.
Ainda há ameaças de resistência.
Além de dirigir, a mulher arregaça as mangas e promove a escalada da criação entre as brechas do asfalto estéril.
Ainda há surtos de coragem.
Quando se quebra o cordão de isolamento mental e se finca a vida entre as cáries do chão.
Ainda há perigo de poesia.
Quando o próprio ponto no Eldorado não passa de um pivô para se estar do lado da criação.
A viagem terminou.
Mas junto com o trocado
da corrida veio a faísca de transcendência,
a perspectiva de subversão,
a expectativa de rebentação
a certeza de que a viagem não termina nunca
e que a redenção é sempre só a curto prazo.
A salvação dura apenas enquanto se espalham sementes, amparando a vida e emanando os verdadeiros Eldorados de uma breve existência… simplesmente… frutífera.