>> A eleição sadomasoquista, por Chris Hedges, e vídeo-trecho de O Balcão de Jean Genet, Teatro Ruth Escobar, São Paulo, 1969


A eleição sadomasoquista, por Chris Hedges, e vídeo-trecho de O Balcão de Jean Genet, Teatro Ruth Escobar, São Paulo, 1969


Arnaldo Pomodoro, As formas do mito: A máquina (Egisto), A ambição (Clitemnestra), O poder (Agamenon) e A profecia (Cassandra), estudo, 1983, bronze, várias dimensões, da Oresteia di Gibellina de Emilio Isgrò, (foto de Carlo Orsi)

A eleição sadomasoquista, por Chris Hedges
Por: Chris Hedges
Fonte: truthdig.org de 5/11/2012
Tradução: Mario S. Mieli




Quando eu tinha dez anos, fui mandado para um colégio interno na Nova Inglaterra, onde judiar dos garotos mais jovens era a principal forma de entretenimento, e aí aprendi que os indivíduos sedentos de poder são uns bastardos psicopatas. Os mandões “valentões” em níveis acima do meu, os sádicos veteranos no andar em que se situavam nossos dormitórios, e os decanos e o chefe dos veteranos da escola se metamorfoseariam depois em bispos, editores de jornais, reitores de faculdades, chefes de estado, titãs de empresas e generais. Aqueles que se deleitam com a habilidade de manipular e destruir são indivíduos dementes e deformados. Esses seres humanos gravemente reduzidos e mentalmente atrofiados – basta pensar em Bill e Hillary Clinton – se encobrem, graças a elaboradas campanhas de relações públicas e a uma imprensa obsequiosa, com atributos de compaixão, patriotismo, dedicação ao serviço público, honra, valentia e visão, sem mencionar quantidades exorbitantes de dinheiro. São, no melhor dos casos, solenes mediocridades e, frequentemente, venais. Conheci muitos deles, para saber muito bem do que estou falando.

Por isso, é com uma certa fascinação mórbida que observo Barack Obama, que se tornou a “dominatrix” principal da classe liberal e nos obriga, nestas eleições, a votar por mais abuso e humilhação. Obama perpetrou um assalto ainda mais descarado contra as nossas liberdades civis, inclusive tornando lei a Seção 1021(B)(2) da NDAA (National Defense Authorization Act, ou Lei de Autorização de Defesa Nacional), do que aquele cometido por George W. Bush. Esta lei, que eu denunciei legalmente em uma corte federal, permite que o exército dos EUA detenha cidadãos estadunidenses, negando-lhes o direito ao processo devido e os mantenha detidos indefinidamente em bases militares. A juíza de Distrito Katherine B. Forrest ordenou a derrogação da lei em setembro. O governo Obama apelou da sentença imediatamente. Além da NDAA, Obama aplicou o Espionage Act (Lei de Espionagem) para silenciar, em seis ocasiões diferentes, os “whistle-blowers”, denunciantes ou delatores de abusos e/ou delitos cometidos por autoridades. Obama defendeu o FISA Amendment Act, tornando legal a espionagem de milhões de pessoas sem que seja necessário obter a devida autorização. Além disso, elaborou listas de assassinatos com o objetivo de exterminar aqueles (inclusive cidadãos dos EUA) que a elite no poder qualifica como terroristas.

Obama nos diz que é melhor sermos capachos seus, a menos que queiramos ter que enfrentar o bruto do outro lado, Mitt Romney. Afinal de contas, quem desejaria que aquelas ‘pessoas do mal’ botassem a mão e controlassem esses novíssimos mecanismos repressivos? Se não nos comportarmos como se deve, acabaremos com um estado de controle e segurança ainda mais avançado, com a finalização do oleoduto XL de Keystone, com a pilhagem descontrolada por parte de Wall Street, com a catástrofe ambiental e até com um sistema de saúde ainda pior. Entretanto, sabemos que até certo ponto, uma vez terminada a campanha eleitoral, Obama, se for reeleito, nos trairá novamente. É parte do jogo. Assumimos obedientes o papel que nos cabe desempenhar. Gritamos aterrorizados. Prometemos obediência. E gozam de nós enquanto vemos as promessas se esmigalharem em pó.



Enquanto nos despojam constantemente de todo poder, desejamos com crescente fervor a vitimização e a escravização. Nossa relação com o poder corporativo é um reflexo cada vez mais fidedigno dos antigos cultos religiosos. Luciano se refere aos sacerdotes de Cibele, os quais, ao serem açoitados, entram num frenesi e se castram, em honra à deusa. As mulheres devotas se cortam os seios. Nós não estamos muito longe disso.

“Seja quem for que queira controlar os homens, tenta antes de mais nada humilhá-los para despojá-los de seus direitos e de sua capacidade de resistência, até que acabem ficando tão desamparados quanto animais”, escreveu Elias Canetti em “Massa e Poder”. “Ele os usa como animais e, ainda que não lhes diga que o são, dentro de si tem sempre a certeza de que significam muito pouco para ele; quando se refere a eles em seu círculo íntimo os chama de rebanho ou gado. Seu objetivo principal é incorporá-los, sugando-lhes toda a substância. O que sobra deles, depois disso, pouco lhe importa. Quanto pior os tiver tratado, mais os desprezará. Quando não tiverem mais qualquer utilidade, os eliminará como se elimina um excremento, só cuidando para que não contaminem o ar de sua casa”.

Nossos amos dependem de nosso trabalho para se tornarem ricos, de nossos filhos para usá-los como bucha de canhão na guerra e de nossos cantos coletivos para adulação. Se não fosse por isso, ficariam muito felizes de alimentar-nos com veneno de rato. Quando se retiram para seus recintos sagrados, mantidos ocultos ao público, falam com as frias palavras da manipulação, do poder e do privilégio, palavras que revelam sua visão de si mesmos como seres ‘diferenciados’ e especiais, situados além da moral e da lei.

A elite produziu poucos manuais sobre o poder. “A opinião pública” de Walter Lippmann, a obra de Leo Strauss e “A rebelião de Atlas” (Atlas Shrugged) da medíocre novelista Ayn Rand expressam o profundo desprezo da elite pelos sans-culottes. Esses escritores defendem a ideia de que as massas são incapazes de reagir racionalmente diante das complexidades do poder. Eles defendem o papel de uma reduzidíssima elite que controla o poder e usa habilmente a propaganda e os símbolos para, conforme Lippmann escreveu, “manufaturar o consenso”. Eles advogam que a elite dominante opere secretamente. Os sistemas de propaganda da elite são concebidos para amplificar a emoção e destruir a capacidade de pensar criticamente. Kafka tinha razão: O mundo moderno converteu o irracional em racional.



“As massas têm sempre estado sob a influência das ilusões”, escreveu Gustave Le Bon, um dos primeiros pioneiros do estudo da psicologia de massas, acrescentando: “Quem possa fornecer-lhes ilusões será facilmente seu amo; quem tente destruir suas ilusões, será sempre sua vítima”.

Quanto mais acreditarmos nas mentiras que saturam as ondas eletromagnéticas, mais elogiaremos nossos “heróis” no Iraque ou no Afeganistão, mais militarizaremos os valores sociais e políticos, mais aterrorizados ficaremos, mais nos humilharemos implorando para sermos escravizados e maior será o desprezo das elites. Para essas elites, somos vermes. E temos que ser controlados, e em certos momentos, aplacados. Outras vezes, devemos ser reprimidos e até assassinados. Somos uma dor de cabeça. Nossa existência interfere com os privilégios da classe dominante.

“Aqueles que às pessoas lhe arrancaram os olhos, lhes recriminam sua cegueira”, escreveu John Milton.

Há poucos escritores e artistas que nos oferecem uma visão do coração escuro e corrupto do poder. Entre as exceções, o filme “A classe dirigente”, de 1972, uma comédia de humor negro baseada numa peça de Peter Barnes e a peça de Jean Genet “O balcão”. Igualmente, Noam Chomsky, Elias Canetti em “Massa e Poder”, C. Wright Mills em “A Elite do Poder”, Karl Marx em “O Capital”, Thomas Pynchon em “O Arco-íris da Gravidade”, Marcel Proust em “Em busca do tempo perdido” e Louis-Ferdinand Céline em “De Castelo em Castelo”. Todavia, as astutas explorações da patologia do poder estão sepultadas pela avalanche da cultura popular tipo Disney e pelos cantos nacionalistas. A elite tem um profundo medo de qualquer forma de arte, literatura, filosofia, poesia, teologia e teatro que desafie os pressupostos e as estruturas da autoridade. Essas disciplinas só podem ser apresentadas ao público através de formas distorcidas, empacotadas como banalidades, entretenimento ou trivialidades sentimentais celebrando sempre a hierarquia estabelecida.



Em “O Arco-íris da Gravidade”, Pynchon retrata o Brigadeiro Ernest Pudding, comandante de uma unidade especial de operações psicológicas na Segunda Guerra Mundial e veterano da Primeira Guerra Mundial, como o representante arquetípico da elite. Pudding alcança a glória no campo de batalha em 1917, quando “conquista uma remota terra de ninguém, de não mais que 40 jardas, perdendo só 70% de sua unidade”. Ele tem uma série de encontros secretos com “a Senhora da noite”, nos quais ele se despe, beija as botas dela, é açoitado por ela, bebe a urina dela e come o excremento dela. Ele morre “de uma maciça infecção da bactéria E/ Coli”, resultado de seus rituais noturnos coprofágicos.

Peter Barnes retrata a mesma demência em “A classe dirigente”, na qual Ralph Gurney, o 13. conde de Gurney, se enforca acidentalmente em seu dormitório, vestindo um tutu, enquanto pratica jogos eróticos com uma corda no pescoço. Seu sucessor, Jack Gurney, acredita ser Deus e só fala de amor e caridade. Ninguém acredita nele. Chamam um psiquiatra para ajudá-lo a se adaptar a seu papel de representante da classe dirigente. Quando o psiquiatra termina o tratamento, Jack está curado de seu delírio de ser Deus. Agora, crê que é Jack, o estripador. Assume seu posto na Câmara dos Lordes. Denuncia os desempregados, os homossexuais e os socialistas. Defende Deus, a rainha e o país, assim como o castigo corporal e a pena de morte. Por debaixo do pano, assassina mulheres inocentes, inclusive sua esposa, e se converte em um respeitado membro da classe dominante.

Genet, como Pynchon e Barnes, equipara a cobiça de poder com a depravação sexual, ambientando “O Balcão” em um bordel. Os clientes usam as vestimentas do poder, entre elas a de um juiz, um bispo e um general. O “bispo”, que fora do bordel trabalha para uma companhia de gás, ouve as confissões das prostitutas e se deleita com o poder da absolvição. O “juiz” castiga com penas severas delitos triviais para manter a lei e a ordem. O “general”, que cavalga sobre sua prostituta como se ela fosse o seu cavalo, exige sacrifício pessoal, honra e glória para a pátria. Enquanto isso, um funcionário de banco, no bordel, deflora a Virgem Maria. E para além das portas do bordel está acontecendo uma revolução, na qual são assassinados os verdadeiros governantes, padres, generais e juízes. Os clientes saem do recinto do bordel junto com Irma, a madame, que é nomeada a nova rainha, e todos assumem na sociedade os papeis que antes apenas representavam, encabeçando a contrarrevolução.


Irma, no final da peça, olha para o público e diz:

“Daqui a pouco precisarei começar tudo de novo… acendam novamente as luzes… vistam-se.. (ouve-se um galo cantar)… Vistam-se… ah! Os disfarces? Voltar a distribuir os papéis… assumir o meu… (detém-se no meio do palco, encarando a plateia.)

Preparem seus papéis… juízes, generais, bispos, camareiros, rebeldes que permitem que a rebelião se paralise. Vou preparar meus vestidos e meus salões para amanhã… E agora, vocês, voltem pra suas casas, onde tudo – vocês podem ter certeza – será mais falso que aqui… Vocês precisam ir embora, caiam fora agora… Saiam pela direita, por aquele beco. (Ela apaga a última luz.) Já está amanhecendo. (Ouve-se um crepitar de metralhadora.)


Para a elite, a única base reconhecida da autoridade política e moral é alcançar o sucesso material e o poder. Não importa como se consiga. As elites acreditam que a função da educação é nos treinar vocacionalmente para ocuparmos as posições que nos foram atribuídas e garantir uma adequada deferência para com os ricos. As disciplinas que nos estimulam a pensar são – e as elites cheias de desprezo não se enganam quanto a isso – “políticas”, “esquerdistas” ou “subversivas”. E as escolas e universidades de todo o país estão fazendo escassear essas disciplinas. As elites sabem, como escreveu Canetti, que quando paramos de pensar nos tornamos um rebanho. Reagimos diante de cada novo estímulo como se fôssemos ratos amontoados numa jaula. Quando as elites apertam o botão, pulamos. Isso é um sadomasoquismo coletivo. E teremos ocasião de vê-lo, de corpo inteiro, no Dia das Eleições.


N. do T.: a seguir cena de “O Balcão” de Jean Genet, peça detalhada por Hedges para ilustrar a patologia do poder, encenada por Victor Garcia no Teatro Ruth Escobar, São Paulo, 1969, e filmada por José Agrippino de Paula. Jean Genet, que esteve em São Paulo por ocasião da encenação de sua peça, considerou-a a melhor encenação da peça em absoluto, em todo o mundo.

O Balcão – José Agrippino de Paula – vídeo de 2 minutos



Trechos do espetáculo teatral O Balcão, de Jean Genet, filmado por José Agrippino de Paula. “Em 1969 o encenador franco-argentino Victor García, envolvido com o vanguardismo e o teatralismo, monta O Balcão, numa ousada produção que remodela radicalmente a arquitetura interna do Teatro Ruth Escobar. São destruídos a platéia e o balcão, o que permite a obtenção de um vão livre de 20 metros de altura. Segundo o projeto arquitetônico de Wladimir Pereira Cardoso, um enorme cilindro em ferro é construído neste espaço, para acomodação circular do público e, no seu centro vazio, dá-se a movimentação dos atores. Estes utilizam passarelas, balancins e plataformas como suportes para ações. A encenação de Victor García, pela ousadia e engenho, motiva a vinda de Jean Genet ao Brasil, que a considera a melhor montagem do seu texto, tornando-a uma referência internacional nos estudos genetianos.” Fonte: Itaú Cultural.

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