>> A dívida neutraliza o tempo, a matéria-prima de toda mudança política e social, Maurizio Lazzarato entrevistado por Agnès Rousseaux


“A dívida neutraliza o tempo, a matéria-prima de toda mudança política e social”

Maurizio Lazzarato entrevistado por Agnès Rousseaux
Fonte: Bastamag.net de 6 de setembro de 2012-09-06
Tradução: Mario S. Mieli





Empréstimo, crédito, credores, devedores, déficits, reembolso, taxa de endividamento, “pacto orçamentário”… A dívida está em toda parte, ela invadiu nossas vidas. Mas a dívida não é somente econômica, ela é antes de mais nada uma construção política. Ela não é uma consequência infeliz da crise: ela está no âmago do projeto neoliberal e permite reforçar o controle sobre os indivíduos e as sociedades. “ O reembolso da dívida é uma apropriação do tempo. E o tempo é a vida”, explica o sociólogo e filósofo Maurizio Lazzarato (A Fábrica do Homem Endividado). Entrevista.

Basta !: Você diz que o ‘Homo debitor’ é a nova face do ‘Homo economicus’. Quais são as características desse “novo homem”?

Maurizio Lazzarato: Vários serviços sociais, como o ensino ou a saúde, foram transformados em seguro individual ou em crédito. O modo de desenvolvimento neoliberal se baseia no crédito e no endividamento. Esta situação agravou-se com a crise dos subprimes de 2007. Um exemplo? O ensino nos EUA: recentemente, a Federal Reserve (Banco Central) estimou que o montante total de empréstimos aos estudantes era de 1.000 bilhões de dólares [1] ! É uma cifra astronômica. Para ter acesso aos serviços, ao ensino, você deve, antes de mais nada, pagar do próprio bolso. Você se torna um devedor. Empreendedor da própria vida, do próprio “capital humano”.


O direito ao ensino ou à moradia foi transformado em direito ao crédito…

É uma lógica que só funciona se a economia estiver em expansão. Mas a dívida privada foi transferida aos Estados, quando estes salvaram os bancos, notadamente, o que faz aumentar a dívida soberana. E nós ficamos todos endividados. Isso não pode continuar infinitamente! Hoje, cada bebê francês nasce com uma dívida de 22.000 euros… Na época da expansão do capitalismo neoliberal, o crédito permitia realizar projetos econômicos, projetos de vida, era uma abertura do tempo e dos projetos. A lógica foi invertida. Hoje, a nossa única perspectiva durante alguns anos, é reembolsar! A dívida é produzida e fabricada pelos bancos privados, e é a população no conjunto que deve pagar. Na Espanha, na Itália, na Grécia, as políticas de austeridade vão aprofundar essa privatização dos serviços e a lógica liberal do endividamento.

Em que medida isso gera uma nova relação social e uma nova relação com o tempo?

Eu retomei a hipótese desenvolvida por Friedrich Nietzsche: a relação social fundamental não é a troca econômica ou a troca simbólica, mas a relação devedor/credor. Uma relação baseada na confiança, na promessa: eu, devedor, me comprometo a repagar o crédito, sou fiador de mim mesmo. Essa promessa, que engaja o futuro, que se joga no futuro, está no centro da relação de crédito. Alguns textos da Idade Média explicam que o crédito é um “roubo do tempo”. Naquela época dizia-se que o tempo pertencia a Deus. E que os credores eram ladrões do tempo de Deus. Hoje, o tempo pertence ao capital. Com o crédito, faz-se uma preempção sobre o futuro. Isso pode ser uma antecipação positiva – como era o caso antes da crise –, mas hoje trata-se de uma antecipação que fecha completamente o futuro, tendo como única perspectiva a de repagar a dívida. A crise continua, o crescimento é fraco, a dívida aumenta. Ficaremos muito tempo bloqueados com “esse reembolso do tempo”. O pagamento da dívida é uma apropriação do tempo. E o tempo é a vida.



Uma dívida não é apenas o dinheiro que deve ser pago, mas comportamentos que precisam ser ajustados, tempo passado a se submeter a imposições, você escreve. Como a lógica do crédito e da dívida impacta nossos modos de vida?

É uma nova forma de controle. As sociedades do século XIX e do começo do século XX eram sociedades disciplinares, conforme descrito por Michel Foucault. O controle das pessoas era efetuado em lugares fechados – escolas, prisões, fábricas… Podia-se controlar os gestos do operário ou do estudante, a quem se atribuía um lugar específico. Com o crédito, o espaço é aberto, o controle é totalmente diferente. Você é obrigado a devolver uma quantia de dinheiro todos os meses. Você deve regular sua vida com relação a esta obrigação, ter uma disciplina de vida compatível com o reembolso. Nós estamos numa fase de adaptação. Em breve, será necessário adaptar-se em tempo real aos movimentos da Bolsa! E esse controle não é somente sobre os indivíduos, mas sobre inteiros países: hoje é o pagamento da dívida que “decide” os cortes salariais, a redução dos serviços sociais, as despesas públicas. Isso influencia os estilos de vida e impede de considerar qualquer ruptura ou bifurcação. A dívida neutraliza o tempo, matéria-prima de toda mudança política ou social. Isso também permite impor formas regressivas de organização social. Tudo isso por uma dívida que não será paga nunca: de um ponto de vista econômico, é uma loucura!

A taxa de endividamento por unidade familiar, com relação à receita disponível é de 120% nos EUA e de 140% na Grã-Bretanha. Essa situação é sustentável?

O endividamento da Itália é de 120% de seu PIB. Não é possível pagar essas quantias, mesmo em 10 ou 15 anos. Seria necessário fazer sangrar as pessoas de modo abominável. O pagamento dos juros da dívida francesa chega a 50 bilhões de euros por ano. Quer estejamos em recessão ou em crescimento, será sempre necessário pagar esses 50 bilhões (ou seja, 1.200 bilhões desde 1974 [2]). É o segundo item orçamentário do Estado francês. Uma espécie de dízimo, de retirada forçada, que se acrescenta aos cortes das políticas de austeridade. E por outro lado, privatiza-se, continua-se a vender bens do Estado. Na Itália, estão previstas vendas anuais de bens do Estado da ordem de 20 a 25 bilhões de euros. Em dez anos, teremos privatizado tudo!

A dominação atual dos bancos, das finanças, é um sinal da centralidade dessa relação devedor/credor?

Marx o tinha dito: não são os industriais que vão dirigir o capitalismo, são os banqueiros. O dinheiro depositado nos bancos é uma forma abstrata de riqueza. Mas é também uma potencialidade: ele pode ser investido em qualquer setor. Ao passo que o capitalismo industrial é “determinado”. Portanto, o poder do dinheiro é mais importante. O capitalismo é fundamentalmente industrial, mas é o capitalismo financeiro que lhe dá a sua forma. Esse poder do capitalismo financeiro foi mantido sob as rédeas durante os Trinta Gloriosos, mas o poderio financeiro hoje tomou a dianteira. Desde 1988, na França, a dívida pode ser vendida e comprada. Essa “securitização” da dívida, a possibilidade de transformação da dívida em títulos negociáveis nos mercados, determinou a situação atual. E isso se torna um multiplicador de endividamento, de investimentos financeiros e, portanto, de risco.


Você cita o filósofo Jean Baudrillard: “Com o crédito, voltamos a uma situação propriamente feudal, aquela de uma fração de trabalho devida de antemão ao senhor, ao trabalho subserviente”. A lógica atual do crédito nos leva a uma regressão?

A lógica de partida dessa crise é que se empobreceram as pessoas ao mesmo tempo que lhes foi dada a possibilidade de se endividarem. Com o pretexto de democratizar e ampliar o crédito… Mas para pessoas que não tinham possibilidade de pagar por esses créditos. O mesmo ocorreu com o crédito aos estudantes: se os estudantes se tornam cada vez mais pobres, como poderão pagar a dívida? Você está endividado antes mesmo de entrar no mercado de trabalho. Você é obrigado a se comportar, aos 20 anos, como uma empresa individual, de se proteger e de calcular os custos e os investimentos. Você se torna uma empresa. É contra isso que os estudantes chilenos e canadenses se mobilizaram, recentemente.

Culpam-se os indivíduos pelo endividamento coletivo, como por exemplo, a culpabilização dos gregos. Mas nós vivemos também no âmbito de uma incitação permanente para consumir e viver de crédito…

Duas morais se telescopam atualmente, a moral da dívida e a moral do consumo. No telejornal dizem às pessoas que elas são responsáveis pela dívida: vocês consomem demais, vocês não trabalham o suficiente, vocês apelam demais para os Serviços de Assistência Social. E, por outro lado, dizem às pessoas que elas merecem todas as mercadorias que lhes são propostas. A moral hedonista do consumo e a moral de culpabilização da dívida e do trabalho, que eram agenciadas antes da crise, tornam-se agora contraditórias. Podemos reencontrá-las na lógica da austeridade e na lógica do crescimento. Nenhuma das duas constitui uma solução para a crise.


Você evoca as análises de Nietzsche [3], que explica que a dívida permite a passagem da sociedade selvagem à sociedade civilizada, porque a dívida obriga o homem a construir uma memória e, portanto, uma capacidade de prometer. O crédito é um processo socialmente positivo?

A dívida é um mecanismo, e não é negativo em si. É um instrumento para construir novas escolas, novos hospitais… Mas na lógica capitalista, isso se torna um instrumento de poder. Hoje, a dívida tem a única função de enriquecer o credor. Reembolsar, é enriquecer os investidores institucionais. As pessoas acreditaram nesse sistema, ele é atraente. E funcionou durante vinte anos: teve-se a impressão de um eldorado que se abria diante de nós, permitindo diferir os pagamentos. Durante muitos anos, o consenso foi comprado. Nos Estados Unidos, você pode ter dezenas de cartões de crédito no bolso. Isso funcionou durante um tempo. Mas isso não pode ser diferido indefinidamente. Todavia, o capitalismo introduziu o infinito na economia. O consumo não tem como objetivo a satisfação, mas fazer as pessoas passarem a um outro consumo. De modo que é uma frustração. Assim, nunca se acaba de consumir, de pagar a dívida…

E, portanto, o crédito permite possuir antecipadamente bens aos quais não se teria acesso de outra forma, e melhorar as condições materiais de vida?

É em torno do lema “Todos proprietários” de George Bush, retomado por Nicolas Sarkozy, que a crise estourou, com os subprimes. É o fiasco dessa ideia, que deveria ser o símbolo da “desproletarização”. A desproletarização era uma ideia dos neoliberais: transformar cada indivíduo em uma empresa individual. Os neoliberais alemães dos pós-guerra tinham um programa que visava construir unidades de produção não-proletárias: favorecer o artesanato, a pequena empresa… Nós estamos vivendo uma nova proletarização com o endividamento: as classes médias e populares se empobrecem desde 2007 de uma maneira incrível. Por um lado, cortam-se os salários, por outro, os serviços de assistência social. Na Alemanha, a expectativa de vida diminui. [4]. A lógica do crédito que almejava uma desproletarização, produziu uma nova proletarização.

É preciso anular uma parte das dívidas dos Estados?

Passaremos forçosamente pela anulação da dívida, como é o caso frequentemente. Seria lógico: se estivéssemos numa perspectiva liberal, os bancos perderiam dinheiro. Mas depois da crise dos subprimes, os banqueiros recomeçaram como antes, pois sabiam que não estão arriscando nada, mesmo se perdem dinheiro. O banco Barclays, que manipulou o Libor (London Interbank Offered Rate) não vai pagar nada pelo escândalo. São os ingleses que vão pagar por seus bancos.

Como se pode lutar contra essa imposição da dívida?

O terreno da luta de classes, que estava centrado na relação capital/trabalho, em volta da produção, foi deslocado para o terreno credor/devedor. Esta nova relação de poder foi superposta às outras. É um nível de enfrentamento bem mais abstrato, mas que atravessa completamente a sociedade. Quer você seja assalariado, grevista ou aposentado, você deve contribuir ao pagamento da dívida. Durante um século e meio, o movimento operário se organizou em torno da questão do trabalho. Ele inventou formas de organização das lutas para contrabalançar o poder do capital. É mais complicado lutar no campo da dívida. Esse deslocamento deixa as pessoas desarmadas, pois ainda não se encontrou a forma eficaz de oposição a ele. Seria preciso expropriar os expropriadores, como o fez o New Deal. Uma eutanásia do anuitante! Como quando Roosevelt taxou os contribuintes ricos em até 90% – e não em 75%, como proposto por François Hollande… A relação credor/devedor está organizada em torno da propriedade, dos títulos. Para repensar o crescimento – e não o conteúdo do crescimento, seja ele verde, amarelo ou outro! – são as relações de propriedade que deveriam ser colocadas em questão.

Notas
[1] Dívida acumulada pelos jovens nos EUA para financiar seus estudos. A taxa de inadimplência desse tipo de crédito é de cerca 9%, comparada a 6% de dez anos atrás. Dette accumulée par les jeunes aux États-Unis pour financer leurs études. Le taux de défaut sur ce type de crédit est d’environ 9 %, contre 6 % il y a dix ans.

[2] “Calculou-se que a soma de todos os juros da dívida pagos a partir de 1974 (data na qual introduziu-se, na França, a obrigação, para o Estado, de se financiar nos mercados) representa quase 1.200 bilhões de euros, dos 1.641 bilhões do conjunto da dívida pública. Os juros da dívida constituem a medida da predação que os mercados operam contra a população há quarenta anos”, em “La Fabrique de l’homme endetté” (A fábrica do homem endividado), Maurizio Lazzarato.



[3] Friedrich Nietzsche, Genealogia da moral.

[4] ler nosso artigo (em francês).

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