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Resumo do documento “Direitos Humanos e a Indústria da Cana”1
O Brasil é o maior exportador mundial de cana-de-açúcar e a indústria da cana foi o setor do
agronegócio que mais cresceu no Brasil em 2005. Enquanto a produção da soja (um dos principais
produtos agrícolas exportados pelo Brasil) cresceu 1,3%, a produção de derivados da cana-deaçúcar
cresceu 26,7% naquele ano. Em 2006, foram produzidos mais de 425 milhões de toneladas
de cana-de-açúcar em seis milhões de hectares de terra. Essa tendência de crescimento deve
continuar. A estimativa da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) para a safra 2008 é de
uma produção que deverá ficar entre 607,8 e 631,5 milhões de toneladas de cana, sendo que em
2007 esta foi de 558,5 milhões. Esses números representam um crescimento bem maior do que o
estimado – em relação a 2007 – para o milho, de 5,5%, e para a soja, de 2%. O Brasil é
atualmente o maior produtor mundial de etanol e atingiu um recorde de 17,4 bilhões de litros em
2006. Em 2008, cerca de 4,2 bilhões de litros de álcool deverão ser destinados à exportação2.
Estima-se que até 2012 a produção anual de etanol no Brasil seja de 35 bilhões de litros.
As regiões do País que, historicamente, têm cultivado a cana em larga escala são o Nordeste e o
estado de São Paulo. Mais recentemente, a indústria se expandiu no norte do estado do Rio de
Janeiro, em Minas Gerais, Espírito Santo, norte do Paraná e estados do Centro Oeste. Em
comparação à safra de 2006, é possível observar que todas as regiões do Brasil aumentaram suas
áreas de cultivo de cana, sendo um crescimento de 24,1% no Sul, 12,5% no Sudeste, 17,5% no
Centro-Oeste, 7,4% no Nordeste e 8,5% no Norte.3
Algumas grandes empresas estrangeiras têm adquirido usinas de cana no Brasil, entre elas Bunge,
Noble Group, ADM e Dreyfus, além de mega-empresários como George Soros e Bill Gates.
Recentemente, em abril passado, o grupo Cosan, por exemplo, um dos maiores produtores de
álcool do Brasil, comprou as operações de distribuição e venda de combustíveis da Esso no Brasil,
que estavam sendo disputadas pela Petrobras. A operação custou a Cosan cerca de 1 bilhão de
dólares4.
A indústria da cana sempre teve grande importância na economia e no processo histórico
brasileiros. A atividade adquiriu dimensão ainda maior no Brasil com a crise internacional dos anos
70, que causou forte alta no mercado petroleiro e impulsionou o setor canavieiro, a partir da
criação do Pró-Álcool. De 1972 a 1995, o governo brasileiro incentivou o aumento da área de
plantação de cana e a estruturação do complexo sucroalcooleiro, com grandes subsídios e
diferentes formas de incentivo. O Instituto do Açúcar e do Álcool, por exemplo, foi responsável
durante quase 60 anos por toda a comercialização e a exportação do produto, subsidiando
empreendimentos, incentivando a centralização industrial e fundiária sob o argumento da
“modernização” do setor, proporcionando terras férteis, meios de transporte, energia, infraestrutura,
insumos etc.
Porém, a expansão de monoculturas para a produção de agrocombustíveis tem trazido sérias
conseqüências para o País. Uma delas é a ampliação da grilagem de grandes áreas de terras
públicas pelas empresas produtoras de soja, além de “legalizar” as grilagens já existentes. O ciclo
da grilagem no Brasil costuma começar com o desmatamento, utilizando-se de trabalho escravo,
depois vem a pecuária e a produção de soja. Atualmente, com a expansão da produção de etanol,
este ciclo se completa com a monocultura da cana. Estas terras poderiam ser utilizadas na reforma
agrária, para a produção de alimentos e para atender a demanda histórica de cerca de cinco
milhões de famílias sem terra.
Apesar da propaganda de “eficiência”, a indústria de agroenergia está baseada na exploração de
mão-de-obra barata e até mesmo escrava. Os trabalhadores são remunerados por quantidade de
cana cortada e não por horas trabalhadas. No estado de São Paulo, maior produtor do país, a meta
de cada trabalhador é cortar entre 10 e 15 toneladas de cana por dia.No estado de São Paulo, os trabalhadores recebem R$2,92 por tonelada de cana cortada e empilhada. Segundo dados do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cosmópolis, em São Paulo,atualmente o piso salarial é de R$ 475,00 por mês e para receber esse valor, os trabalhadores têm que cortar uma média de 10 toneladas de cana por dia. Para isso, são necessários 30 golpes de facão por minuto, durante oito horas diárias de trabalho.
Novas pesquisas com cana de açúcar transgênica, mais leve e com maior nível de sacarose,
significam mais lucros para os usineiros e mais exploração para os trabalhadores. Segundo
pesquisa do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), “antes 100m² de cana somavam 10
toneladas, hoje são necessários 300m² para somar 10 toneladas”.
Esse padrão de exploração tem causado sérios problemas de saúde e até a morte dos
trabalhadores. Entre 2004 e 2007 foram registradas 21 mortes por exaustão no corte da cana. “O
açúcar e o álcool no Brasil estão banhados de sangue, suor e morte”, afirma a pesquisadora Maria
Cristina Gonzaga, da Fundacentro, um órgão do Ministério do Trabalho.
Em 2005, outras 450 mortes de trabalhadores foram registradas pelo MTE nas usinas de São Paulo.
As causas destas mortes são assassinatos, acidentes no precário transporte para as usinas, em
conseqüência de doenças como parada cardíaca, câncer, além de casos de trabalhadores
carbonizados durante as queimadas.
O trabalho escravo é comum no setor. Os trabalhadores são geralmente migrantes do nordeste ou
do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, aliciados por intermediários ou “gatos”, que selecionam
a mão-de-obra para as usinas. Em 2006, a Procuradoria do Ministério Público fiscalizou 74 usinas
no estado de São Paulo e todas foram autuadas. Em março de 2007, fiscais do MTE resgataram
288 trabalhadores em situação de escravidão em seis usinas de São Paulo. Em outra operação
realizada em março, o Grupo de Fiscalização da Delegacia Regional do Trabalho em Mato Grosso do
Sul resgatou 409 trabalhadores no canavial da usina de álcool Centro Oeste Iguatemi. Entre eles,
havia um grupo de 150 índios.
Segundo a Comissão Pastoral da Terra, 53% dos 5.974 trabalhadores libertados pelo Grupo
Especial de Fiscalização Móvel, ou seja, 3.117 trabalhadores trabalhavam nas usinas sucroalcooleiras
dos estados do Pará, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás, São Paulo e Ceará. No
dia 8 de abril de 2008, uma fiscalização do Grupo identificou 1.500 trabalhadores em condições
degradantes nos municípios de Campo Alegre de Goiás e Mineiros, ambos em Goiás, e Alto Taquari,
em Mato Grosso.
Superexploração do trabalhador e mortes – A Pastoral dos Migrantes estima que cerca de 200 mil
trabalhadores migrantes trabalhem em São Paulo no período da safra da cana, laranja e café. No
setor canavieiro do estado, o número de migrantes por safra é estimado em 40 mil. As condições
de trabalho dessas pessoas violam sistematicamente os direitos humanos.
Para milhares de trabalhadores essa situação “temporária” torna-se permanente por falta de
alternativas de emprego em suas regiões de origem. Eles iniciam um círculo vicioso: “O trabalho
aqui é o mais bruto que existe, mas é o único que temos”, afirma um trabalhador pernambucano
em Dobrada, São Paulo. Mesmo dizendo que não voltariam mais a trabalhar no corte da cana,
muitos acabam se submetendo indefinidamente a essa situação de extrema exploração. Na
entressafra, um número mais reduzido de mão-de-obra é utilizado para o preparo da terra e plantio
em algumas áreas, além da aplicação de agrotóxicos. O desemprego causado pelo modelo agrícola
baseado na monocultura e no latifúndio aumenta o contingente de trabalhadores que se submetem
a trabalhar em lugares distantes de sua origem, em condições precárias.
Esses trabalhadores muitas vezes iniciam suas atividades já endividados. Uma das dívidas
contraídas antes de iniciar o trabalho é com o transporte (em grande parte, clandestino, chamado
de “excursão”) que custa em média R$ 200,00 por trabalhador que migra do Nordeste para São
Paulo. Os trabalhadores migrantes são aliciados por “gatos” ou “turmeiros”, que, muitas vezes, são
também os donos dos caminhões ou ônibus que realizam o transporte.
Na região dos canaviais aumentam as chamadas “cidades-dormitórios”, onde os trabalhadores
migrantes vivem em cortiços, barracos ou nas “pensões”. Apesar da situação precária, os custos
com moradia e alimentação são muito acima da média paga pela população em geral.
Tanto os alojamentos das usinas quanto as “pensões” são barracos ou galpões improvisados,
superlotados, sem ventilação ou condições mínimas de higiene.
A incorporação de novas tecnologias no setor canavieiro aprofundou a dinâmica de exploração do
trabalho, através de formas precárias de arregimentação, contratação, moradia, alimentação etc.
As colheitadeiras funcionam em áreas planas e contínuas, mas causam maior compactação do solo
e prejudicam as mudas que deveriam rebrotar. A mecanização gera superexploração do trabalho
porque cria novas exigências como o corte rente ao solo (para maior aproveitamento da
concentração de sacarose) e a ponteira da cana bem aparada. Isso aumenta o esforço dos
trabalhadores e a jornada de trabalho. Com a mecanização do setor, foi transferido para os
trabalhadores o corte da cana em condições mais difíceis, onde o terreno não é plano, o plantio é
mais irregular e a cana é de pior qualidade.
Um estudo apresentado por pesquisadores da Universidade Metodista de Piracicaba e do Centro de
Referência de Saúde do Trabalhador, Erivelton Fontana de Laat e Rodolfo Vilela, respectivamente,
mostra uma situação assustadora quanto às condições físicas em que ficam o cortador de cana:
Em 10 minutos o trabalhador derruba 400 quilos de cana, desfere 131
golpes de podão, faz 138 flexões de coluna, num ciclo médio de 5,6
segundos cada ação. O trabalho é feito em temperaturas acima de 27º
C com muita fuligem no ar e ao final do dia terá ingerido mais de 7,8
litros de água, em média, desferido 3.792 golpes de podão e feito
3.994 flexões com rotação da coluna. A carga cardiovascular é alta,
acima de 40%, e em momentos de pico os batimentos cardíacos
chegam a 200 por minuto.5
Além disso, o estudo mostra que na atividade do corte da cana existem cerca de 30 fatores que
podem causar um acidente de trabalho, o que é confirmado pelo elevado índice de acidentes e
mortes pela exaustão.
O pagamento por produção é um complicador na situação do trabalho na cana-de-açúcar. Esse
sistema colabora com a superexploração da mão-de-obra. Essa situação foi destacada pela missão
internacional que esteve no Brasil no início de abril deste ano para verificar os impactos dos
agrocombustíveis sobre o direito humano à alimentação.
No pagamento por produção, as usinas usam um complicado sistema
de medidas que impossibilita ao trabalhador ter um controle sobre a
quantidade cortada e sobre o valor do pagamento. Como a quantidade
de cana cortada é medida em metros lineares e o valor é definido em
toneladas, torna-se necessário a conversão do valor de tonelada para o
valor de metro de cana cortada. Este procedimento é feito pela usina.
A falta de controle da produção e do valor do pagamento pelos
trabalhadores é o principal meio de pressão dos usineiros para
aumentar a produtividade do trabalho, pois se os trabalhadores
soubessem quanto ganhariam teriam a possibilidade de interromper o
trabalho quando tivessem chegado ao limite de sua resistência física.6
O relatório final da missão pontua que as conseqüências desse modelo são assustadoras,
apontando o elevado número de acidentes de trabalho. “Somente em 2006, segundo dados do
Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho do Ministério da Previdência Social (2007), ocorreram
14.332 acidentes em usinas de açúcar e álcool, destas 8.789 no cultivo da cana.”7 Esta é, conforme
mostra o documento, uma das atividades econômicas que registra o maior número de acidentes de
trabalho no país. Além disso, os registros são de trabalhadores formais, com registro em carteira;
portanto, não contabiliza os acidentes ou as doenças de empregados informais, que são em grande
número.
O aumento da meta do corte da cana causou grande diminuição no número de mulheres que
realizam esse trabalho. Além disso, a dupla jornada (obrigação com o trabalho na cana, com o
serviço em casa e com o cuidado e educação dos filhos) significa um esforço muito maior para as
mulheres que, mesmo com todas as dificuldades, enfrentam o trabalho bruto. Mas as usinas
restringem esse trabalho com a exigência adicional de que as mulheres sejam “operadas”, ou seja,
impossibilitadas de ter filhos.
Como apontado no relatório da missão internacional, a maioria dos trabalhadores não tem controle
da pesagem ou da metragem de sua produção diária, que é exercida pela usina. Muitas denúncias
apontam para a manipulação e fraude desses dados pelas usinas, que pagam menos do que os
trabalhadores teriam direito. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Dobrada, por exemplo,
denunciou casos em que trabalhadores recebiam o equivalente ao corte de 10 toneladas de cana
por dia, quando essa quantidade era de 19 toneladas.
Em Pernambuco, os trabalhadores ganham em média dois salários mínimos por mês, se conseguem
atingir a meta de cortar seis toneladas de cana por dia. Eles também denunciam fraudes na
pesagem da cana, além de maus tratos e falta de segurança no trabalho. “Quando tem serviço, a
safra dura de três a quatro meses. O resto do tempo a gente passa fome. Eu tenho 55 anos e
ninguém quer me contratar porque acham que sou “sucata”. Também não posso me aposentar
porque ainda não completei 35 anos de serviço”, relata o trabalhador José Santos, que hoje espera
o processo de desapropriação para ser assentado na falida Usina Aliança.
O setor sucroalcooleiro é responsável por grande parte dos número de trabalho escravo no Brasil.
O caso de maior dimensão ocorreu em Ulianópolis (PA) onde foram
libertadas no ano passado 1.064 trabalhadores na Usina Pagrisa. O
relatório do MTE aponta servidão por dívidas, jornadas diárias de até
14 horas, falta de qualidade da água e da alimentação, falta de uso de
equipamento de proteção, transporte inadequado, alojamentos
superlotados, etc. Em junho de 2007, o Ministério do Trabalho
resgatou 42 trabalhadores de uma usina do grupo Cosan, a maior do
setor sucroalcooleiro, em Igarapava, São Paulo.8
A situação de trabalhadores vivendo em condições subumanas permanece, como podemos
observamos nos relatórios das ações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do
Trabalho e Emprego. Na ação do dia 8 de abril de 2008, que identificou 1.500 trabalhadores em
condições degradantes em municípios de Goiás e Mato Grosso, além de os trabalhadores serem
resgatados, uma fazenda teve o cultivo de cana interditado. O Ministério Público do Trabalho
decidiu ajuizar três ações civis públicas por danos morais coletivos contra a empresa, no valor de
R$ 5 milhões cada.
Os indígenas também estão incluídos nos casos de superexploração do trabalho em fazendas de
cana-de-açúcar e usinas. Dados do Conselho Indigenista Missionário mostram que, em março de
2007, 150 indígenas que trabalhavam no corte de cana na Destilaria Centro Oeste Iguatemi Ltda
(Dcoil) foram libertados por fiscais da Delegacia Regional do Trabalho de Mato Grosso do Sul.
Alguns meses depois, em novembro, o Grupo Móvel descobriu 1.011 indígenas vivendo em
condições degradantes na usina Debrasa, sendo que a maioria dos resgatados pertencia ao povo
Guarani Kaiowá e inúmeros pertenciam ao povo Terena. Além da situação em que estavam os
índios, informa a pesquisadora Lúcia Rangel, “há registros de quatro assassinatos de indígenas
ocorridos em alojamentos de usinas. Menores de idade falsificam seus documentos para irem
trabalhar no corte de cana, enganados por falsas promessas de ganhar muito dinheiro, deixam a
escola da aldeia ou da cidade, burlando a fiscalização e deixando seus pais preocupados”9.
A mecanização da colheita da cana-de-açúcar vem aumentando e preocupando os trabalhadores,
uma vez que tem o desemprego como sua principal conseqüência. Em São Paulo, em dez anos, de
1997 a 2007, o avanço foi de 4% para 40%. O relatório da missão internacional apontou dados
preocupantes da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (ÚNICA):
Com a mecanização serão desativados todos os 189 mil postos de
trabalho manuais em São Paulo até a safra 2010/21. Por outro lado,
serão criados 55 mil postos em funções mecânicas e, possivelmente,
outros 20 mil nas usinas. Ou seja, o desemprego atingirá, no mínimo,
114 mil trabalhadores somente em São Paulo até a safra 2020/2110.
Há dúvidas, porém, sobre a possibilidade de se massificar a mecanização do setor, uma vez que os
baixos salários e a precariedade das condições de trabalho tornam mais lucrativo para as empresas
manter o corte manual do que investir em maquinário. Atualmente, mais de 60% da colheita da
cana é feita manualmente no Brasil.
As 21 mortes registradas por exaustão no corte da cana ocorreram durante ou imediatamente após
a jornada de trabalho. Antes de morrer, os trabalhadores apresentaram câimbras, tontura, dores de
cabeça e, em alguns casos, sangramento nasal. A Pastoral dos Migrantes argumenta que a causa
das mortes é excesso de trabalho. Os atestados de óbito registram parada cardíaca e respiratória
como principal causa das mortes.
“Além das mortes ocorridas nos canaviais, há aquelas não registradas, e que ocorrem ao longo de
um tempo determinado. Doenças como câncer, provocado pelo uso de veneno, fuligem da cana,
além de doenças respiratórias, alérgicas, da coluna, aliadas a quase total impossibilidade de serem
tratadas em razão da inexistência de recursos financeiros para a compra de remédios conduzem à
morte física ou social de muitos trabalhadores, cuja depredação de suas forças impede-os de
continuar no mercado de trabalho”, explica a professora da UNESP, Maria Aparecida de Moraes.
Os movimentos repetitivos no corte da cana causam tendinites e problemas de coluna,
descolamento de articulações e câimbras, provocadas por perda excessiva de potássio. As
freqüentes câimbras seguidas de tontura, dor de cabeça e vômito são chamadas de “birola”. Muitos
trabalhadores usam medicamentos (como injeções chamadas de “amarelinhas”) e drogas (como
crack e maconha) para aliviar a dor e estimular o rendimento. Para cortar 10 toneladas de cana por
dia, estima-se que cada trabalhador precise repetir cerca de 10 mil golpes de facão.
Os ferimentos e mutilações causados por cortes de facão, principalmente nas pernas e nas mãos,
também são freqüentes. Porém, raramente a empresa notifica aos órgãos competentes esses
acidentes de trabalho e praticamente não há controle por parte desses órgãos governamentais.
Muitos trabalhadores doentes ou mutilados, apesar de impedidos de trabalhar, não conseguem
aposentadoria por invalidez.
São diversas as dificuldades apontadas pelos trabalhadores em relação às condições penosas em
que trabalham. Em visita ao Sindicato dos Empregados Rurais de Cosmópolis, no estado de São
Paulo – e que tem cerca de 4.000 membros, sendo 1.300 cortadores de cana e, do total de
afiliados, apenas 25% são mulheres -, vários trabalhadores foram ouvidos. Verificou-se, a partir dos
depoimentos, que:
Um dia de trabalho começa às 4h, quando os trabalhadores acordam e
fazem o almoço; às 5h30 pegam o ônibus da usina; às 6h começam o
trabalho na lavoura de cana; das 10h às 11h, almoçam; das 13h30 às
14h têm um intervalo para o café e, às 16h30, pegam o ônibus de
regresso. Eles destacaram que o principal problema é que quem
trabalha por produção ganha mais (…) Isto faz com que os
trabalhadores queiram trabalhar o máximo possível, inclusive
renunciando a pausas para descansar, tomar água ou comer, com o
objetivo de ganhar o máximo possível e cumprir com a meta mínima
de corte. A falta de alimentação adequada, a hidratação insuficiente e
10 TOLEDO, Marcelo apud Os Agrocombustíveis no Brasil
o calor excessivo ao trabalhar sob sol intenso somam-se à jornada
excessiva de trabalho e produz em muitos casos câimbras seguidas de
tontura, vômito, dor de cabeça e desmaios devido à perda de potássio
e falta de reposição de sais. A jornada excessiva de trabalho é
tamanha que os cortadores sofrem freqüentemente de doenças como
hérnia de disco, tendinites, problemas de coluna e descolamento de
articulações. Assim, a vida útil do cortador é de 15 a 20 anos(…)
Os trabalhadores relataram à Missão que os equipamentos protetores
que têm para o corte de cana não são apropriados. A luva arrebenta a
mão do trabalhador; os óculos protetores produzem dor de cabeça,
porque embaçam com o suor, forçando a vista, ou seja, não foram
feitos para o corte da cana. Além disto, a fuligem causada pela queima
da cana provoca muita coceira. Segundo os trabalhadores, a
Universidade de Piracicaba colheu amostras de urina durante a safra e
detectou células cancerígenas, por agrotóxicos.11
Com as sistemáticas denúncias destas condições de trabalho e dos alarmantes casos de morte por
exaustão nas lavouras de açúcar, a Pastoral do Migrante avalia que houve uma pequena melhora
no quadro geral. De acordo com Padre Antônio Garcia, membro da equipe da Pastoral do Migrante
em Guariba, São Paulo, o Ministério Público do Trabalho tem intensificado fiscalizações e autuações
das empresas; a imprensa local e nacional tem dado importante visibilidade para o tema e isso faz
com que as empresas tenham receio de serem autuadas, uma vez que não querem ter seu nome
ligado à situação degradante de trabalho; além disso, por meio das audiências públicas que têm
realizado na região, algumas em parceria com a Relatoria Nacional para o Direito Humano ao
Trabalho, tiveram conquistas como a pausa no trabalho, o café com pão e a barraca contra o sol
para poderem almoçar. Mas os problemas estruturais, afirmou Padre Garcia, permanecem. Essa
situação de pequenas melhorias, no entanto, é específica dessa região de São Paulo. De forma
geral, a superexploração permanece como regra no setor.
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1 Texto: Evanize Sydow, jornalista e membro da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos; Maria Luisa Mendonça, coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos; Marluce Melo, coordenadora da Comissão Pastoral da Terra – NE. O documento “Direitos Humanos e a Indústria da Cana” foi preparado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, buscando analisar, do ponto de vista do Brasil, os desdobramentos do agronegócio e da indústria da cana nos direitos humanos, incluindo direitos civis, sociais e ambientais – mais especificamente nos estados de São Paulo e Pernambuco. Além da parceria com organizações que trabalham com este tema e que também nos servem de fontes, como Comissão Pastoral da Terra e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o documento foi feito tendo como suporte acadêmico análises de professores que estudam estas questões e suas implicações, como Maria Aparecida de Moraes, da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Pedro Ramos, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Horácio Martins de Carvalho, engenheiro agrônomo, especialista em ciências sociais e assessor da Via Campesina, Mônica Martins, da Universidade Federal do Ceará, e Francisco Alves, da UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos). Importante também destacar que a Rede Social de Justiça e Direitos
Humanos acompanhou, além de atuar na organização e registrar os dados e depoimentos, a missão
internacional que esteve no Brasil no início de abril deste ano para verificar os impactos dos agrocombustíveis sobre o direito humano à alimentação, daí a presença de dados compartilhados com o informe final Os Agrocombustíveis no Brasil.
2 Os Agrocombustíveis no Brasil – Informe da Missão de Investigação sobre os impactos das políticas públicas de incentivo aos agrocombustíveis sobre o desfrute dos direitos humanos à alimentação, ao trabalho e ao meio ambiente, das comunidades campesinas e indígenas e dos trabalhadores rurais no Brasil. Maio, 2008
3 Id.
4 O Globo, 24 de abril de 2008
5 Corte de cana é exaustivo, diz pesquisa. Oeste Notícias, 4 de maio de 2008. Disponível em:
http://www.oestenoticias.com.br/oeste_2.php?id=56885&data_capa=2008-05-04. Acesso em 5/5/2008
6 Os Agrocombustíveis no Brasil, op. cit.
7 Id.
8 Ibid.
9 Ib.
10 TOLEDO, Marcelo apud Os Agrocombustíveis no Brasil
11 Os Agrocombustíveis no Brasil, op. cit.