A virada autoritária do neoliberalismo. Dívida e austeridade: o modelo alemão do pleno emprego precário
Por Maurizio Lazzarato
Fonte: [Prefácio da edição italiana de La Fabbrica dell’uomo indebitato
(A Fábrica do Homem Endividado), Derive Approdi, março de 2012] via uninomade.org
Tradução: Mario S. Mieli
O endividamento do Estado era, por outro lado, o interesse da fração da burguesia que governava e legiferava através das Câmaras. O déficit do Estado era, efetivamente, o verdadeiro e próprio objeto de sua especulação e a fonte principal de seu enriquecimento. A cada ano um novo déficit. Depois de quatro ou cinco anos, um novo empréstimo oferecia à aristocracia financeira uma nova ocasião de trapacear o Estado que, mantido artificiosamente à beira da bancarrota, era constrangido a contratar com os banqueiros nas condições mais desfavoráveis. Cada novo empréstimo era uma nova ocasião de roubar o público, que investe os seus capitais em renda do Estado.
K. Marx, As lutas de classe na França
A saída da crise é feita fora dos caminhos traçados pelo FMI. Essa instituição continua a propor o mesmo tipo de modelo de ajuste fiscal, que consiste em diminuir o dinheiro que se dá às pessoas – os salários, as aposentadorias, os financiamentos públicos, mas também as grandes obras públicas que geram emprego – para destinar o dinheiro poupado ao pagamento dos credores. É absurdo. Depois de quatro anos de crise não se pode continuar tirando dinheiro sempre das mesmas pessoas. É exatamente o que se quer impor à Grécia! O FMI se transformou numa instituição com o escopo de proteger unicamente os interesses financeiros. Quando se está numa situação desesperada, como estava a Argentina em 2001, é preciso saber mudar as regras do jogo.
Roberto Lavagna, ministro argentino da Economia entre 2002 e 2005
Menos de vinte anos depois da “definitiva vitória sobre o comunismo” e há quinze anos do “fim da história”, o capitalismo entrou num impasse histórico. Desde 2007, está vivo graças às transfusões de somas astronômicas de dinheiro público. Ainda assim, continua a girar no vazio. No melhor dos casos, consegue reproduzir-se mas dando um golpe de misericórdia, com raiva, àquilo que sobrou das conquistas sociais dos últimos dois séculos.
Desde quando estourou a “crise das dívidas soberanas” fornece um espetáculo burlesco do próprio funcionamento. As regras econômicas de “racionalidade” que os “mercados”, as agências de rating e os especialistas impõem aos Estados para sair da crise da dívida pública são as mesmas que produziram a crise da dívida privada (por outro lado, na origem da primeira). Os bancos, os fundos de pensão e os investidores institucionais exigem dos Estados o reequilíbrio dos balanços financeiros públicos, quando ainda detêm bilhões de títulos podres, que são o resultado de uma política de substituição de salários e rendas por um sistema de crédito. As agências de rating, depois de ter dado uma avaliação triple A para títulos que hoje não valem mais nada (com uma amostra de 2.679 títulos de um total de 17.000, relativos a empréstimos imobiliários, um banco fez uma análise das avaliações da Standard & Poor’s: 99% tinha um triple A no momento da emissão, mas hoje 90% têm juízos que desencorajam o investimento: “non-investment grade”), ainda têm a pretensão, contra qualquer bom senso, de deter o justo juízo e a boa medida econômica. Os especialistas (professores de economia, consultores, banqueiros, funcionários de Estado, etc.) – cuja cegueira quanto aos desastres da suposta auto-regulação dos mercados e da concorrência que produziu na sociedade e no planeta é diretamente proporcional ao seu servilismo intelectual – foram catapultados dentro de governos “técnicos”, que lembram irresistivelmente as “comissões de negócios da burguesia”. Mais que de “governos técnicos”, trata-se de “técnicas de governo” autoritárias e repressoras que assinalam uma ruptura até com o “liberalismo” clássico.
Mas no auge do ridículo se encontram, provavelmente, as mídias. A “informação” dos telejornais e os talk-shows nos explicam que “a crise é culpa de vocês, porque vocês se aposentam muito cedo, porque vocês gastam muito com saúde, porque vocês não trabalham pelo tempo e do modo como deveriam, porque vocês não são suficientemente flexíveis, porque vocês consomem demais. Resumindo, vocês são culpados de viverem bem além dos próprios meios”.
A publicidade, pelo contrário, que vem regularmente calar o bico dos discursos culpabilizantes de economistas, especialistas, jornalistas e políticos, afirma exatamente o contrário: “Vocês são completamente inocentes, nem têm nenhuma responsabilidade”. Nenhum erro e nenhuma culpa mancham suas almas. Todos, sem exceção, merecem os paraísos da nossa mercadoria. É um dever para vocês consumir de modo compulsivo”.
As “ordens” e as injunções veiculadas pelas semióticas significantes do senso de culpa e pelas semióticas icônicas e simbólicas da inocência colidem. Há uma contradição aberta entre a moral ascética do trabalho e da dívida e a moral hedonista do consumo de massas, não é mais possível reconciliá-las.
Mais que de uma saída da crise, toda essa agitação se parece com um círculo vicioso no qual o capitalismo parece estar atolado. A visão das nossas classes dirigentes nunca indo além de suas carteiras, só podemos esperar o pior. A ferocidade com a qual os governos, técnicos ou não, perseguem o reembolso da dívida e a defesa da propriedade privada (os representantes dos bancos e dos fundos credores da dívida grega tentaram, segundo o “New York Times”, levar à Corte Europeia para os Direitos Humanos o Estado grego, por estar violando direitos fundamentais: “property rights are human rights”) e não recua diante de nada. Até a recessão e a depressão (Grécia) são males menores frente à eventualidade de não se manter a promessa de reembolsar a dívida. Em uma recente entrevista, o presidente do BCE propõe, com um cinismo bastante tatcheriano, remédios que não só estão na origem da crise, mas que não farão nada além de agravá-la: diminuição da imposição, para enriquecer os ricos e reduzir as despesas sociais, para empobrecer os pobres. Os políticos estão reduzidos a desempenhar o papel de contadores e “procuradores” (Marx) do capital. Sarkozy propôs que as receitas para pagar “os juros da dívida grega sejam depositados numa conta bloqueada que funcione como garantia de modo que as dívidas dos nossos amigos gregos sejam saldadas”. Angela Merkel, “favorável” à ideia, sustenta que isso consentiria de estarmos “seguros de que eese dinheiro esteja disponível de modo durável”.
Se há uma constante no capitalismo é justamente a de um estado de guerra ao qual o liberalismo parece conduzir de forma quase “automática”. A guerra intercapitalista parece hoje menos intensa que aquela que cada capital nacional conduz contra o próprio inimigo interno. Os diversos capitalismos, em desacordo sobre como dividir a torta da exploração mundial, convergem quanto a como intensificá-la ao interior dos Estados individuais.
Para sair da crise, os tempos se tornam aqueles das “reformas” estruturais: regulamentação das finanças? Redistribuição da riqueza? Redução da desigualdade, da precariedade, do desemprego? Fim da escandalosa “assistência” do Estado social e dos presentes aos ricos e às empresas? As únicas “reformas de estrutura” imaginadas e colocadas em prática são duas: restruturação do mercado do trabalho acompanhada da redução dos salários e dos drásticos cortes das despesas sociais, começando, como sempre, pelos subsídios ao emprego. O modelo de referência é o alemão. Em uma de suas aparições na televisão, Sarkozy citou a Alemanha nove vezes e o governo técnico de Mario Monti seduz a nova «lady de ferro», de quem recebe diretamente “conselhos”.
O modelo alemão
São dez anos que a Alemanha leva adiante políticas de flexibilização e de precarização do mercado do trabalho e rígidos cortes ao Estado social. No parlamento europeu, Daniel Cohn-Bendit chamou a juízo diretamente Angela Merkel: “Como é possível que a população de um país rico como a Alemanha tenha 20% de pobres?»1. O ex-68 é um grande ingênuo ou sofre de amnésia? Melhor dizer um cínico hipócrita, visto que foi o governo “vermelho-verde” de Schröder que introduziu entre 2000 e 2005, a maioria das leis que estão na origem da situação atual: aquelas de um “pleno emprego precário” que transformaram desempregados e “inativos” numa massa impressionante de “working poors”. Servem um mínimo de história e algum dado para encontrar as misérias do modelo alemão que a troika (Europa, FMI, BCE) estão impondo a todos os países europeus.
Entre 1999 e 2005 o governo “vermelho-verde” levou adiante, apoiando-se no slogan «Fördern und fordern» (promover e exigir), quatro reformas da assistência ao desemprego e do mercado de trabalho, uma mais catastrófica que a outra (ler Harzt).
Em janeiro de 2003, a lei Harzt II introduziu os contratos “mini-job”, uma espécie de contrato de trabalho no ‘mercado negro legalizado’ (aliviam os empregadores das contribuições sociais e não garantem aos empregados nem cobertura contra o desemprego nem aposentadoria), e os contratos “midi-job” (salário entre os 400 e os 800 euros), forçando todos a se tornarem empreendedores da própria miséria.
Em janeiro de 2004, a lei Harzt III reestrutura as agência nacionais e federais para o emprego, com o objetivo de intensificar o controle dos comportamentos e da vida, assim como promover o acompanhamento individual dos trabalhadores pobres. Uma vez prontos os dispositivos da “governança” dos trabalhadores pobres, o governo vermelho-verde aprova uma série absurda de leis para “produzi-los”. A lei Hartz IV, que entrou em vigor em primeiro de janeiro de 2005, prevê:
– Redução da duração da indenização, de três anos para um ano; enrijecimento das condições de acesso e obrigação de aceitar qualquer trabalho proposto. Para ter direito ao subsídio desemprego, é preciso ter estado empregado por pelo menos doze meses no curso dos dois anos precedentes à perda do emprego. Depois de um ano do subsídio, o desempregado recebe a ajuda social (o equivalente de uma renda de solidariedade) equivalente a 359 euros por pessoa, reavaliado para 374 euros. Uma relação da agência federal para o emprego indica que um em cada quatro trabalhadores que perde seu lugar de trabalho recebe diretamente a ajuda social (Arbeitslosengeld II: ALG II) e não a indenização de desemprego (ALG I). O motivo está na tipologia de emprego que o trabalhador acabou de perder: precário ou mal pago.
– Redução da indenização depositada aos desempregados de longo prazo que recusam aceitar trabalhos subqualificados.
– Os desempregados devem aceitar empregos ao salário de 1 euro por hora (adicional ao subsídio desemprego que recebem).
– Possibilidade de reduzir as indenizações dos desempregados que têm poupanças e, portanto, possibilidade de acesso às contas bancárias dos “assistidos”. Possibilidade de avaliar o padrão de moradia do “assistido” e de solicitar, se necessário, uma transferência.
Estima-se que os beneficiários da ajuda social Hartz IV sejam 6,6 milhões, dos quais 1,7 milhões são crianças. Os restantes 4,9 milhões de adultos são, na realidade, “working poors” empregados por menos de 15 horas por semana. Em maio de 2011, as estatísticas oficiais declaravam cinco milhões de contratos mini-job, com um aumento de 47,7%, precedidos somente pelo boom da interinal (+134%). Trata-se de formas de contrato muito difundidas também entre os aposentados: 660.000 aposentados acumulam as aposentadorias com um mini-job2. Uma parte importante da população, 21,7% em 2010, é empregada em tempo parcial.
O instituto de estatística alemão mediu o aumento da precariedade e das formas que ela assume: entre 1999 e 2009, todas as formas de trabalho atípico cresceram em pelo menos 20%.3 As mais atingidas foram as famílias monoparentais (as mulheres) e os idosos. Na moldura do pleno emprego precário, a taxa de desemprego oficial exibida como um sinal do “milagre econômico alemão” não significa muito! O exército de “working poors” em continua expansão não é formado unicamente por precários, mas também por trabalhadores com um contrato de duração indeterminada. Em agosto de 2010, um relatório do instituto do trabalho da Universidade de Duisburg-Essen estabeleceu de fato que mais de 6,55 milhões de pessoas na Alemanha recebem menos de 10 euros brutos por hora, com um aumento de 2,26 milhões em dez anos. A maioria consiste em idosos desempregados que o sistema Hartz conseguiu “ativar”: aqueles com menos de 25 anos, os estrangeiros e as mulheres (69% do total). Por outro lado, dois milhões de empregados ganham menos de 6 euros por hora, enquanto na ex-República Democrática Alemã são muitos os que se viram com menos de quatro euros por hora, ou seja, 720 euros por mês, em tempo integral. Resultado: os “working poors” representam 20% dos empregados alemães.4
Durante a crise financeira, o governo recorreu maciçamente ao desemprego parcial, que consente à empresa depositar só 60% da retribuição normal e pagar só a metade das contribuições sociais. Um outro resultado da virada iniciada pelo Schröder: com respeito ao produto interno bruto, desde 2002 a quota dos salários diminuiu em 5% além-Reno. As mudanças exigidas pelos “vermelhos-verdes” são significativas: depois de anos de proliferação caótica e selvagem da precariedade, do subemprego e do subsalário, tinha chegado o momento de introduzir uma regulamentação e uma racionalização da pobreza e da precariedade, constituindo um “verdadeiro” e “coerente” mercado do trabalho de “miseráveis”, que forçará à flexibilidade e à adequação da razão econômica até aqueles que se encontram melhor empregados. É a população em sua totalidade – precários, “working poors”, trabalhadores qualificados – a se tornar flutuante, disponível à flexibilidade permanente. As diferentes componentes da “força trabalho” social são agora uma simples variável de ajuste da conjuntura econômica.
O programa “vermelho-verde” conquistou o nome que ostenta: “Agenda 2010”5; porque dez anos depois da primeira lei Hartz os resultados são, apesar da metáfora, mortais. Na Alemanha, a expectativa de vida dos mais pobres – daqueles que chegam só aos 75% de renda média – diminui. Para as pessoas com baixa renda, segundo as cifras oficiais, diminuiu de uma média de 77,5 anos em 2001 para 75,5 em 2011. Nos Länder do Leste do país, é ainda pior: a expectativa média de vida diminui de 77,9 para 74,1 anos.
A Alemanha é o primeiro país europeu a seguir os Estados Unidos na via do progresso liberal. Ainda duas décadas de esforços para “salvar o sistema de aposentadoria” e a idade da morte coincidirá com a idade da aposentadoria. Também a guerra interna tem seus “bombardeios cirúrgicos” focados. Se nada mudar, na ex-Alemanha do Leste a expectativa de vida diminuirá para 66 anos, só um ano antes do direito à aposentadoria. Mors tua, vita mea! Mas pouco importa: a economia é saudável, as “agências” dão pareceres positivos, os credores farreiam e a expectativa de vida da parte mais rica da população continuará aumentando.
Serve uma breve digressão sobre Peter Hartz, promotor das leis sobre o regime do desemprego e da reforma dos auxílios sociais; porque sua condenação a dois anos de cadeia e ao pagamento de uma multa de 576.000 euros é um exemplo da “corrupção” consubstancial ao modelo neoliberal. Peter Hartz, ex-responsável pelos recursos humanos da Volkswagen e grande moralizador dos Anspruchdenker, dos “aproveitadores do sistema”, admitiu ter depositado a Klaus Volkert, sindicalista da IG Metall e ex-presidente do conselho de fábrica do construtor de automóveis alemão, várias propinas, para pagar prostitutas e viagens exóticas. Klaus Volkert, pelo contrário, foi trazido à justiça por abuso de confiança, exatamente como o ex-diretor de pessoal Klaus-Joachim Gebauer, acusado de cumplicidade.
Fazer da pobreza e da precarização uma variável estratégica da flexibilidade do mercado de trabalho é, por trás da chantagem da dívida, o que está acontecendo na Itália, em Portugal, na Grécia, na Espanha, na Inglaterra e na Irlanda.6 A França se empenhou nesse sentido com a chegada ao poder de Sarkozy, ainda que aqui os resultados não são tão impressionantes como na Alemanha. Graças, mais uma vez, a um homem de centro-esquerda, Martin Hirsch, contratado pelo presidente de direita por ocasião de sua abertura à “esquerda”, na França será experimentada a transformação do auxílio social (Renda Mínima de Inserção – RMI –, a 417 euros por pessoa) em arma de produção de “working poors” (Renda de Solidariedade Ativa – RSA). É com as tecnologias de governo dos pobres que se testam dispositivos de poder e de controle que, em um segundo momento, serão estendidas ao conjunto da sociedade, coisa que não parece interessar nem a esquerda nem os sindicatos. A Renda de Solidariedade Ativa comporta a superação dos dualismos fordistas (desemprego / emprego, salário / renda, direito ao trabalho / direito à assistência social, lei / contrato) e organiza a sua sobreposição e o seu modo de concatenar graças à figura do “working poor”. Fixa de maneira estável o estatuto de um trabalhador / assistido que permite acumular salário de atividade com renda de “solidariedade”. Essa confusão entre “salariado” e “assistido”, entre trabalho, desemprego e assistência social, entre direito ao trabalho e direito ao Welfare (assistência social), é a condição da construção de um grande segmento do mercado do trabalho, que tem como norma o subemprego e o subsalário. A Renda de Solidariedade Ativa assinala assim o oficial abandono do objetivo do pleno emprego e a instituição de políticas de “plena atividade”, entendida como uma atividade para todos, independentemente da duração e da qualidade do emprego.7
Também a reforma do mercado do trabalho que o “governo técnico” italiano está se apressando a aprovar se inspira diretamente no modelo alemão. A ministra para as Políticas Sociais, Fornero, em uma carta ao jornal “La Stampa” de 4 de março, afirma isso com letras claras. A tradução da realidade alemã na Nova Língua com a qual se exprime a “governança”, é uma obra prima de hipocrisia e de falsidade:
“O exemplo mais recente de uma reforma geral do mercado do trabalho e dos instrumentos de proteção social – exceto o percurso começado pela Espanha – é oferecido pelas intervenções realizadas na Alemanha no início da década passada, quando o País era considerado o “doente da Europa”, incapaz de crescer e de superar o choque da reunificação. As reformas alemãs disseram respeito a todos os aspectos do trabalho e do Welfare: melhoria dos instrumentos de instrução profissionalizantes e facilitação da transição escola-trabalho; apoio da participação no mercado do trabalho e do emprego, mesmo que em tempo parcial, das faixas mais desfavorecidas; reforço da ligação entre o usufruto de particulares tratamentos e a efetiva ação de requalificação e de busca de emprego; potencialização das atividades dos centros de emprego; introdução de maior flexibilidade, seja através de novas tipologias contratuais seja por espaços de contratação entre empresa e trabalhador”.
Por trás da chantagem da dívida, o Estado pretende levar a termo essa transição, inaugurada nos anos 80, do Welfare (direitos e serviços sociais) ao Workfare (subordinação das políticas sociais à disponibilidade e à flexibilidade do pleno emprego precário). A virada autoritária do neoliberalismo está a ponto de acabar com o “modelo social europeu” porque, como afirma Mario Draghi, não podemos mais nos permitir de “pagar as pessoas que não trabalham”.
A cada mudança de fase econômico-política, voltamos a encontrar sempre o Estado e a sua administração no comando das operações. Justamente como favoreceu e forçou as políticas neoliberais do crédito nos anos 80 e 90, é ao Estado que cabe a organização da continuidade dessas políticas nas novas formas autoritárias e repressoras do reembolso da dívida e da figura do homem endividado. Cai, assim, uma outra ilusão da esquerda, aquela que opõe à lógica da propriedade privada do mercado a lógica de um “público” estatal”. Não há autonomia do político, nem neutralidade do Estado. As suas administrações agem em profundidade sobre a economia, a “sociedade” e a subjetividade, como a construção do mercado do trabalho demonstra de modo paradigmático.
Crise das finanças ou crise do capitalismo?
Não se trata tanto de demonstrar a onipotência do capitalismo como de revelar a sua fraqueza, a médio e longo prazos. Se as contra reformas estruturais atingirão dramaticamente uma grande parte da população, por outro lado não traçam para isso nenhuma via de saída para a crise. Os especialistas, os mercados, as agências de rating e os políticos, não sabendo nem para onde ir nem como, através da chantagem dos déficits de balanço, perseguem as políticas neoliberais de produção e de intensificação das diferenças de classe que são a verdadeira origem da crise.
A máquina capitalista se obstruiu não porque não estivesse bem regulada, não porque havia excessos ou porque os financistas fossem ávidos (uma outra ilusão da “esquerda” reguladora!). Tudo isso é verdade, mas não identifica a natureza da crise atual, que não começou com o desastre financeiro. Essa última crise é, sobretudo, o resultado da falência do programa neoliberal (fazer da empresa o modelo de qualquer relação social) e da resistência que a figura subjetiva por ele promovida (o capital humano e o empreendedor de si mesmo) encontrou. É essa resistência que, embora passiva, obstruindo a realização do programa neoliberal, transformou o crédito em débito. Se o crédito e o dinheiro exprimem sua natureza comum de “dívida”, é porque a acumulação está bloqueada, é incapaz de garantir novos lucros e de produzir novas formas de sujeição, não o contrário.
Entre 2001 e 2004, nos Estados Unidos, o crescimento de 10% do PIB foi possível unicamente porque as medidas para relançar a atividade injetaram na economia 15,5 pontos de PIB, o crédito imobiliário passou de 450 a 960 bilhões (1300 antes da crise de 2007) e aumento das despesas públicas de 500 bilhões.
Na passagem do século, a Alemanha estava na mesma situação. O crescimento do PIB alemão entre 2000 e 2006 foi de 354 bilhões de euros. Mas se comparada aos número da dívida para o mesmo período (342 bilhões), não é difícil constatar que o resultado real é um “crescimento zero”.
Foi o Japão a entrar primeiro – depois da explosão da bolha imobiliária nos anos 90 (e a sucessiva explosão da dívida para reordenar o sistema bancário) – em um “crescimento zero”, que beira agora a recessão. Melhor que outros países, o Japão revela a natureza da crise contemporânea. As razões do impasse do modelo neoliberal não devem ser procuradas unicamente nas contradições econômicas, embora muito reais, mas também e sobretudo naquilo que Guattari chama de “crise da produtividade de subjetividade”.
O milagre japonês, que foi capaz de forjar uma força trabalho coletiva e uma força social “muito integrada ao maquinismo” (Guattari), parece girar no vazio, tomado, ele também como todos os países desenvolvidos, nas malhas da dívida e de seus modos de subjetivação. O modelo subjetivo “fordista” (emprego vitalício, antes unicamente dedicado ao trabalho, o papel da família e a sua divisão patriarcal dos papeis, etc.) está esgotado, e não se sabe com o quê substitui-lo. A crise da dívida não é uma loucura da especulação, mas a tentativa de manter em vida um capitalismo já doente. O “milagre econômico” alemão é um resposta regressiva e autoritária ao impasse que já tinha se manifestado antes de 2007. É por esse motivo que a Alemanha e a Europa são tão ferozes e inflexíveis com a Grécia. Não só em nome do “I want my money back” (aquele dos credores), mas também e sobretudo porque a crise financeira abre uma nova fase política na qual o capital não pode mais contar com a promessa de uma futura riqueza para todos como nos anos 80. Não pode mais dispor de espelhinhos para as cotovias da “liberdade” e da “independência” do capital humano, nem daqueles da sociedade da informação ou do capitalismo cognitivo. Para dizê-lo como Marx, pode somente contar com a extensão e o aprofundamento da “plus valia absoluta”, ou seja, um alongamento do tempo de trabalho, um incremento do trabalho não retribuído e dos baixos salários, cortes nos serviços, precarização das condições de vida e de emprego, diminuição da esperança de vida. A austeridade, os sacrifícios, a produção da figura subjetiva do devedor não representam um momento difícil que precisa ser superado tendo em vista um “novo crescimento”, mas tecnologias de poder, de que só o autoritarismo, que não tem mais nada de “liberal”, pode garantir-lhe a reprodução. O governo do pleno emprego precário e a armadilha de saldar a dívida requerem a integração no sistema político democrático – que a partir dos anos 80 funciona sobre bem outra coisa que a representação – de inteiros blocos do programa das extremas direitas. A resistência passiva que não aderiu ao programa neoliberal representa a única esperança de fugir das “tecnologias de governo” dos “governos técnicos” da dívida. Diante da feira dos horrores dos planos de austeridade impostos à Grécia, há quem teria que se dizer, de um jeito ou de outro, de te fabula narratur!
É de você que estamos falando.
Berlim, 5 de março de 2012
Notas
1. As estatísticas revelam um aumento da pobreza de 12,2% da população em 2005 para 15,6% em 2010. Dados importantes e importante sobretudo a progressão. É sabido que os números da pobreza não diminuem com o “crescimento”, pelo contrário. Algo revelador sobre a natureza do crescimento.
2. Se, com respeito ao total, representam somente 3%, em termos de fluxo, estão em constante aumento. Em 2000 eram somente 416.000. Mas em dez anos, seu número aumentou em 58%. Em 2007, o governo alemão elevou a idade de aposentadoria de 65 para 67 anos, quando a idade real de aposentadoria é de 62 para os homens e de 61 anos para as mulheres, coisa que comporta uma precarização e um abaixamento travestido do nível das prestações.
3. Em 11 de janeiro de 2012, o Destatis publica o relatório “Sombras e luzes sobre o mercado do trabalho”, no qual se lê: “O número de empregos considerados atípicos – em tempo parcial com menos de vinte horas semanais, incluindo as atividades marginais, os empregos temporários e a interinal – entre 1991 e 2010, aumentou de 3,5 milhões, enquanto o número de trabalhadores ativos que dispõem de um emprego regular despencou para cerca de 3,8 milhões.
4. As últimas estatísticas falam de 4,1 milhões de trabalhadores que ganham menos de 7 euros; 2,5 milhões menos de 6 e 1,4 milhões menos de 5 euros brutos por hora. A maioria desses trabalhadores são mulheres, jovens, pessoas sem formação e imigrantes. http://www.focus.de/finanzen/news/23-prozent-billig-arbeitskraefte-jeder-vierte-deutsche-schafft-fuer-niedriglohn-_aid_723968.html
5. A socialdemocracia, depois de ter se convertido à economia de mercado (ordoliberalismo) no Pós-guerra, em primeiro de junho de 2003 converteu-se ao neoliberalismo, aprovando a Agenda 2010 com uma maioria de 80% de delegados. Em 15 de junho de 2003, o congresso dos Verdes adotou com uma maioria equivalente a 90% o mesmo programa, que prevê também um sistema de aposentadoria por capitalização, a privatização dos serviços públicos, etc.
6. A Europa procede em marcha forçada para o modelo americano de demissão livre. O governo espanhol aprovou em 10 de fevereiro de 2012 leis que perseguem a mesma lógica: facilitação das demissões, redução das indenizações de desemprego e corte nos salários. As indenizações de desemprego passam de um máximo de 42 para 24 mensalidades. As demissões por motivos financeiros, com benefícios de desemprego limitados a 12 mensalidades, serão facilitados. Para demitir por motivos financeiros, é suficiente que a empresa verifique três semestres consecutivos de queda nas vendas, mesmo se continuar a ter lucros. Depois de três semestres de queda nas vendas, as empresas podem impor rebaixamentos de salário unilaterais. A recusa implica a demissão.
7. Com a Renda de Solidariedade Ativa, passa-se de uma lógica estatutária e institucional (direitos iguais a todos!) para uma lógica contratual e discricionária (para aceder aos direitos, o beneficiário deve assinar um contrato preventivo) que, tendo em foco situações específicas, aprofunda o sulco de cada política social: a individualização. O contrato de inserção é um híbrido entre “lei” e “contrato” que, segundo Alain Supiot, não expressa a igualdade e a autonomia dos contratantes, mas a afirmação de uma assimetria de poder: “Seu objeto [dos contratos de inserção] não é trocar bens determinados, nem estabelecer uma aliança entre iguais, mas legitimar o exercício do poder”, visto que o contratante, para obter o subsídio, é obrigado a assinar. Passa-se de uma lógica de direito de “ter-se direito” a uma lógica que subordina o subsídio a um investimento subjetivo, cuja primeira prova está representada por um “trabalho sobre si mesmo”, voltado a demonstrar que se “está disponível ao subemprego e ao subsalário”. A Renda de Solidariedade Ativa efetua uma virada da lógica do auxílio social, ou seja, uma virada do “débito”. Acaba de uma vez por todas com a brecha abeta pela Renda Mínima de Inserção sob o direito à assistência social: um subsídio não vinculado ao “trabalho” e isento de “contrapartida” direta. A Renda Mínima de Inserção afirmava, embora de modo ambíguo, uma dívida da “nação” para com os “cidadãos mais desfavorecidos”. A Renda de Solidariedade Ativa, pelo contrário, tem como objetivo indexar o subsídio a um subemprego, à disponibilidade, à empregabilidade e a um contrato de inserção. Além de instituir o “working poor”, provoca-lhe o senso de culpa, já que o trabalhador é implicitamente considerado responsável pela própria condição e, portanto, em dívida para com a sociedade e o Estado.
* Para ler a versão italiana do texto:
http://uninomade.org/la-svolta-autoritaria-del-neoliberismo-debito-e-austerita/
* Para ler a versão francesa do texto:
http://www.cip-idf.org/article.php3?id_article=6023
Recomendamos também a leitura dos textos de Maurizio Lazzarato:
“Do Biopoder à Biopolítica” (aqui, em espanhol):
http://www.cpp.panoramafestival.com/del-biopoder-a-la-biopolitica/
e de
“Tradición cultural europea y nuevas formas de producción y transmisión del saber”
http://www.enmedio.info/tradicion-cultural-europea-y-nuevas-formas-de-produccion-y-transmision-del-saber/#.T4YZB-21nww