Contra o trabalho – vídeo-entrevista com Philippe Godard, e “O não-trabalho é um modo de viver a revolução” – fragmentos de outra entrevista com o autor
Contra o trabalho – vídeo-entrevista com Philippe Godard
Não se trata de uma escolha ou de uma teoria ‘radical chic’, mas de uma verdadeira filosofia de vida que o escritor francês, teórico no novo anarquismo, explica em seu livro “Contra o trabalho”. Entrevistado por Terra Nuova, por ocasião do lançamento da versão italiana, publicada pela editora Elèuthera.
Transcrição traduzida: Mario S. Mieli
Ser contra o trabalho, num mundo onde o trabalho parece ser uma coisa importantíssima pode parecer uma coisa totalmente louca. Para mim, a crítica ao trabalho é importantíssima porque se não a fizermos, o mundo vai morrer, de certa forma. Porque trabalhamos demais, operários, camponeses, todo o mundo dá uma grande parte de sua vida ao trabalho. Não temos tempo de ficar com as crianças, com os amigos, com os companheiros e companheiras, de fazer o que queremos, simplesmente.
A outra coisa é que trabalhamos para consumir, para destruir as coisas que fizemos. Produzimos carros, produzimos celulares, produzimos livros, e depois precisamos consumir, consumir cada vez mais.
É única coisa que o sistema capitalista pode nos dar.
Há mercadorias mais úteis que outras. Por exemplo, é melhor fazer livros que fazer carros. Mas precisamos escolher. E as coisas que precisamos escolher, do meu ponto de vista, são aquelas mais próximas da vida humana. Por exemplo, as coisas que precisamos fazer em conjunto. O capital faz fabricar coisas totalmente inúteis, perigosas… as armas, por exemplo, ou trens e carros de alta velocidade, como a Ferrari, a Maserati. Essas produções precisam ser paradas. E precisamos dar mais valor a outras. Coisas humanas que realizam a profunda ligação entre os humanos com a natureza.
A natureza não é algo reacionário, algo do passado, mas uma parte essencial do ser humano, onde podemos abolir as relações de dominação, podemos abolir o machismo, a dominação de um sexo sobre o outro, dos adultos sobre as crianças.
Para podermos fazer tudo isso, precisamos abandonar a ideologia do trabalho, pois no trabalho se encontra todo o contrário disso: há dominação, há hierarquia, há a ideia de que precisamos produzir para depois consumir e destruir as coisas que fizemos antes. O trabalho é o nosso tempo, que o capital nos rouba. E também toda uma ideologia que vai contra as nossas vidas, simplesmente.
O que posso dizer, sobretudo com relação à França, já que sou francês e vivo na França, apesar de me sentir cidadão do mundo, é que constato que há muitos movimentos, ainda que pequenos no momento, mas que se posicionam contra o trabalho. Por exemplo, quando fazemos hortos, sobretudo hortos coletivos, ou quando fazemos cooperativas de coisas culturais: livros, filmes, CDs. Também quando organizamos debates. Não precisamos de especialistas ou da televisão que nos faz ouvir a voz do poder. Podemos nós mesmos dar a nossa voz, construir a nossa cultura, e tudo isso sem esperar o financiamento do Estado.
Até agora esses movimentos são pequenos, mas são novos, porque até cinco anos atrás não havia quase nada. Podemos ser um pouco mais otimistas porque precisamente a crítica do trabalho e do sofrimento do trabalho, na França, é ótima. Há muitos livros sobre o sofrimento acarretado pelo trabalho e a França é o país no mundo onde as pessoas tomam mais antidepressivos. Os médicos dizem que a causa disso é a pressão do trabalho sobre os indivíduos.
De uns cinco anos para cá, essa consciência está cada vez mais alta, mais forte. Acredito que precisamos continuar a lutar contra o trabalho.
O não-trabalho é um modo de fazer a revolução? Não, de vivê-la.
Fonte: comune-info.net
Via: oltrelacoltre
Fragmentos de entrevista realizada por Claudia Benatti com Philippe Godard, ensaísta francês, autor do livro “Contra o trabalho” (publicado na Itália pela editora: Elèuthera). O artigo de onde foram retirados os fragmentos foi publicado pela revista mensal “Terra Nuova”.
O trabalho impede a invenção e a experimentação de relações mais ricas e articuladas, nos priva da alegria do saber fazer tantas atividades diferentes, e de fazê-las não porque devemos, mas porque nos parecem justas e necessárias (…). A maior parte dos homens não se dedicou espontaneamente ao trabalho entendido como produção de bens destinados a mercados anônimos e desconhecidos, ou seja, destinados a alimentar a economia monetária. Foi com a chegada dos Estados modernos e do capitalismo que os seres humanos foram transformados na matéria-prima destinada a uma máquina que transforma o trabalho em dinheiro.
A exaltação do trabalho apresenta, para quem tem o poder, a enorme vantagem ideológica de reunir sob a mesma bandeira os exploradores e os explorados. Acaba-se, assim, por considerar o trabalho com um valor; mas se for assim, então quer dizer que essa sociedade considera também o processo de produção-consumo como um valor fundamental, o que é, em si, uma perspectiva assustadora. Por outro lado, é uma brincadeira que permite esmagar as liberdades, exceto aquelas necessárias ao valor do trabalho: poder produzir e consumir livremente. O trabalho, portanto, tornou-se um modelo de sociedade na qual só sobra o consumo.
O sindicalismo para os direitos dos trabalhadores? Ele não libera do trabalho, quer simplesmente substituir o trabalho para os patrões com o trabalho coletivo para a comunidade, em sentido abstrato. Todos, ninguém excluído, negam a possibilidade de uma cooperação espontânea, humana e pacífica; o sistema capitalista faz de tudo para tornar essa cooperação cada vez menos realizável (…).
Capitalistas, comunistas e até mesmo anarquistas sempre contaram que a técnica, conforme a direção que teria sido dada, teria podido ser colocada a serviço da emancipação, ao invés da opressão. Iludidos são também os modernos ecologistas soft, que esperam e acreditam que a tecnologia, sinônimo de milagrosa eficácia, máxima produtividade e mínimo consumo, possa nos salvar do mundo brutalizado, brutalizante e poluído. E ainda a história nos ensinou que os saltos tecnológicos vêm sempre acompanhados de um aumento da pressão sobre os seres humanos, uma maior limitação de suas liberdades, uma ênfase do domínio e da repressão contra quem quer que conteste esses mecanismos (…). Agora é preciso ir além do decrescimento também, é necessária uma crítica radical contra tudo o que nos torna servos.
Aqueles que nós consideramos “selvagens” dedicam à produção de alimentos, em média, não mais que três, quatro, no máximo cinco horas por dia; a produção, por outro lado, é interrompida por pausas frequentes. O resto (do tempo) é dedicado para as relações, para si mesmo e para a comunidade. E eles não vivem na miséria, como gostariam de nos fazer acreditar, mas se encontram, pelo contrário, numa sociedade da abundância. É a nossa sociedade contemporânea que criou carestias e pobreza em larga escala. E é a nossa sociedade que interiorizou a tal ponto o trabalho, que não pode mais questioná-lo, a não ser questionando-se o sentido mesmo da vida. Muito bem, está na hora de fazê-lo.
Para liberar-se é preciso parar de produzir. A nossa única escolha é entre o trabalho e a liberação. Frente a um input tão drástico, muitos se assustam. Mas não devemos nos assustar (…). Podemos inventar uma existência diferente, da qual o trabalho seria banido. O não-agir é exatamente o oposto do não-intervir. Não se trata de se retirar do mundo, mas de uma crítica contra qualquer ação deletéria contra o ambiente. Não é um modo para se fazer a revolução, mas de vivê-la.