Geoengenharia: testando as águas
Por: Naomi Klein
Fonte: The New York Times de 29/10/2012
Tradução: Mario S. Mieli




Nos últimos quase 20 anos, costumo passar temporadas numa região escarpada da costa da British Columbia (Colúmbia Britânica), chamada Sunshine Coast. Neste verão, tive uma experiência que me fez lembrar do porquê amo este lugar e porquê quis ter um filho nesta parte esparsamente povoada do mundo.

Eram 5 da manhã e meu marido e eu estávamos acordados, junto ao nosso filho de 3 semanas de idade. Olhando para o oceano, percebemos duas barbatanas gigantescas de dorso negro: orcas, ou ‘baleias assassinas’. Logo em seguida, avistamos outras duas. Nunca tínhamos visto uma orca perto da costa, e nunca tínhamos ouvido falar de que elas se aproximassem tanto da praia. Em nosso estado de privação de sono, parecia um milagre, como se o bebê nos tivesse acordado para se certificar de que não perderíamos essa rara visita.

Não me ocorreu a possibilidade de que essa visão fosse consequência de algo bem menos fortuito, isso até duas semanas atrás, quando li relatórios sobre um bizarro experimento oceânico, próximo das ilhas de Haida Gwaii, a várias centenas de milhas do local onde avistamos as orcas nadando.

Naquele experimento, um empreendedor estadunidense chamado Russ George despejou 120 toneladas de pó de ferro do casco de um barco de pesca alugado; seu plano era promover o florescer de um tipo de alga que sequestraria carbono combatendo, assim, a mudança climática.

O Sr. George é apenas um dentre um crescente número de aspirantes a geoengenheiros que apregoam a realização de intervenções de alto risco e em grande escala que alterariam fundamentalmente céus e oceanos para reduzir os efeitos do aquecimento global. Além desse esquema do Sr. George de fertilizar o oceano com ferro, outras estratégias da geoengenharia estão sendo tomadas em consideração, inclusive bombear com sulfatos via aerossol a camada superior da atmosfera para imitar os efeitos de resfriamento de uma erupção vulcânica e “clarear” as nuvens de modo que elas reflitam boa parte dos raios solares de volta ao espaço.

Os riscos são imensos. A fertilização oceânica poderia provocar o aparecimento de zonas mortas e ondas tóxicas. E simulações múltiplas predisseram que a imitação dos efeitos de um vulcão interferiria com as monções na Ásia e na África, com potencial de pôr em risco a segurança alimentar e a disponibilidade de água para bilhões de pessoas.


Até agora, essas propostas têm servido sobretudo de forragem para modelos de computador e trabalhos científicos. Mas no caso da aventura oceânica do Sr. George, a geoengenharia decididamente escapou do laboratório. Se acreditarmos no relato da missão do Sr. George, suas ações criaram um florescer de algas numa área de tamanho equivalente à metade do estado do Massachusetts, a qual teria passado a atrair uma ampla gama de formas de vida aquática, inclusive um vastíssimo número de baleias.

Quando leio a respeito das baleias me pergunto: será que as orcas que vi estavam se dirigindo a um buffet do tipo coma “todos os frutos do mar que você conseguir comer”, patrocinado pela floração de algas do Sr. George? A possibilidade, por mais improvável que seja, fornece um vislumbre de uma das mais preocupantes repercussões da geoengenharia, uma vez que começamos a interferir deliberadamente nos sistemas climáticos da terra – seja reduzindo a incidência dos raios solares, seja fertilizando os mares – todos os eventos naturais podem começar a adquirir um matiz antinatural. Uma ausência, que poderia ter parecido uma mudança cíclica nos padrões migratórios, ou uma presença, que pareceria um presente miraculoso, de repente, adquirem uma conotação sinistra, como se toda a natureza estivesse sendo manipulada por trás das cenas.

A maioria dos relatórios noticiosos caracteriza o Sr. George como um geoengenheiro “trapaceiro”. Mas o que me preocupa mesmo, depois de pesquisar o assunto por dois anos para um livro que estou finalizando sobre mudança climática, é que cientistas bem mais sérios, patrocinados por bolsos bem mais fundos, parecem prontos a interferir ativamente nos complexos e imprevisíveis sistemas naturais que sustentam a vida na Terra – com alto potencial de consequências inesperadas.

Em 2010, o presidente do House Committee on Science and Technology recomendou mais pesquisa em geoengenharia; o governo britânico já começou a gastar dinheiro público nesta área.

Bill Gates aplicou milhões de dólares em pesquisa de geoengenharia. E investiu numa empresa, a Intellectual Ventures, a qual está desenvolvendo pelo menos duas ferramentas de geoengenharia: o “StratShield”, uma mangueira de 19 milhas suspensa por balões de hélio que vomitaria no céu partículas de dióxido de enxofre cujo efeito seria bloquear os raios solares e um instrumento que poderia, supostamente, mitigar a força dos furacões.

É fácil entender o apelo. A geoengenharia oferece a promessa tentadora de “ajustar” a mudança climática de modo que possamos continuar indefinidamente o nosso estilo de vida baseado na exaustão dos recursos. E há também o medo. Cada semana parece trazer novas notícias climáticas terrificantes, dos relatórios sobre o derretimento das camadas de gelo, mais precoce do que se esperava, à acidificação dos oceanos, mais rápida que o esperado. Ao mesmo tempo, a mudança climática tem sido tão ignorada pela agenda política que nem sequer foi mencionada durante os debates entre os candidatos presidenciais. De modo que não causa surpresa a ninguém que muitos depositem sua esperança em opções do tipo “quebre o vidro em caso de emergência” que cientistas têm cozinhado em seus laboratórios.

Mas com geoengenheiros canalhas à solta, está na hora de fazermos uma pausa e nos perguntarmos, coletivamente, se queremos seguir esse caminho traçado pela geoengenharia. Porque a verdade é que a geoengenharia é, em si, uma proposição canalha. Por definição, as tecnologias que interferem com a química dos oceanos e da atmosfera afetam a todos. Ainda assim, é impossível obter algo como um consenso unânime para essas intervenções. Nem um tal consenso poderia se basear em informações, já que nós não conhecemos e não podemos conhecer todos os riscos envolvidos, até que essas tecnologias de alteração planetária sejam efetivamente implementadas.

Enquanto procedem as negociações das Nações Unidas, com base na premissa de que os países têm que concordar com uma resposta conjunta a um problema inerentemente comum, a geoengenharia levanta um prospecto totalmente diferente. Por bem menos que um bilhão de dólares, uma “coalisão de dispostos e voluntariosos”, ou um único país, ou mesmo um único rico indivíduo poderia decidir tomar a questão climática em suas próprias mãos. Jim Thomas, do Grupo ETC, organização ecológica, coloca o problema da seguinte forma: “A geoengenharia diz ‘bem, vamos simplesmente fazer o que achamos que deve ser feito e depois, vocês que vivam com os efeitos’ ”.

O aspecto mais assustador dessa proposição é que os modelos sugerem que muitas das pessoas que poderiam ser afetadas por essas tecnologias já estão desproporcionalmente vulneráveis aos impactos da mudança climática. Imagine-se isso: A América do Norte decide enviar enxofre na estratosfera para reduzir a intensidade dos raios do sol com a esperança de salvar suas plantações de milho, apesar da possibilidade real de provocar secas na Ásia e na África. Em poucas palavras, a geoengenharia nos daria (para alguns de nós) o poder de exilar grandes faixas da humanidade para zonas de sacrifício, através de um simples toque de interruptor virtual.

As ramificações geopolíticas são assustadoras. A mudança climática já está tornando difícil saber se eventos meteorológicos previamente compreendidos como “acts of God” (atos de Deus) – como um calor absurdo em pleno mês de março ou um ‘Frankenstorm’ durante o Halloween) ainda pertencem a essa categoria. Mas se começarmos a interferir com o termostato do planeta – transformando deliberadamente os oceanos em verde musgo para absorver carbono ou branqueando os céus de branco fosco para defletir os raios do sol – estaremos levando a nossa influência a um novo nível. Uma seca na Índia será vista – acuradamente ou não – como resultado de uma decisão consciente de engenheiros no outro lado do planeta. O que era má sorte, antigamente, poderia agora ser vista como complô malévolo ou ataque imperialista.

Haverá outras consequências viscerais e alteradoras da vida. Um estudo publicado nesta primavera pelo Geophysical Research Letters revelou que se injetamos aerossóis de enxofre na estratosfera para enfraquecer os raios solares, o céu não só se tornaria mais esbranquiçado e brilhante, como nós também teríamos pores-do-sol mais intensos e “vulcânicos”. Mas que tipo de relacionamentos poderíamos ter com esses céus hiper-reais? Sentiríamos temor – ou só um leve receio? Nos sentiríamos os mesmos, quando belas criaturas atravessam nossos caminhos inesperadamente, como aconteceu com minha família neste verão? Em um conhecido livro sobre mudança climática, Bill McKibben nos advertiu de que nos defrontamos com “O Fim da Natureza”. Na era da geoengenharia, poderíamos nos deparar com o fim dos milagres, também.

O Sr. George e seu experimento de alteração oceânica fornece uma oportunidade de debate público sobre uma questão essencialmente ausente do ciclo eleitoral: Quais são as soluções reais para a mudança climática? Não seria melhor mudarmos nosso comportamento – ou reduzir o uso de combustíveis fósseis – antes de brincar com os sistemas de suporte fundamentais da vida do planeta?

A menos que mudemos de curso, podemos estar certos de que ouviremos muitos outros relatórios sobre proteção contra raios solares e supostos manipuladores dos oceanos como o Sr. George, cujas explorações com despejos de ferro fizeram bem mais que testar uma tese sobre fertilização oceânica: também testaram as águas para futuros experimentos de geoengenharia. E a julgar pelo silêncio das respostas a esses ‘experimentos’, até o momento, os resultados do teste do Sr. George são claros: que procedam os geoengenheiros, e que se dane a cautela.
© 2012 The New York Times

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