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O Cassino do Sistema Alimentar Global – o direito à alimentação deve estar acima da fome de lucros

Por: Vandana Shiva
Fonte: Asian Age 14/09/2012
Tradução: Mario S. Mieli




Os alimentos são a nossa nutrição. São a fonte da vida. As atividades de plantar alimentos, processá-los, transformá-los e distribui-los envolve 70 por cento de toda a humanidade. Comer alimentos diz respeito a todos nós. Apesar disso, não é a cultura ou os direitos humanos que estão moldando a economia alimentar dominante hoje em dia. É sobretudo a especulação e os lucros que estão definindo a produção e a distribuição de alimentos. Colocar alimentos no cassino financeiro global é receita certeira para a fome.

Depois da crise dos sub-primes nos EUA e do colapso de Wall Street, investidores se lançaram nos mercados das commodities, especialmente petróleo e commodities agrícolas. Enquanto a produção real não aumentou entre 2005-2007, a especulação com commodities do setor de alimentos aumentou 160 por cento. A especulação fez subir os preços e os altos preços levaram um número adicional de 100 milhões de pessoas à fome. Barclays, Goldman Sachs, JP Morgan estão todos jogando no cassino alimentar global.


Uma publicidade de 2008 do Deutsche Bank dizia: “Você gosta da subida dos preços? Todo mundo fala de commodities – com o Fundo Euro para a Agricultura, você pode se beneficiar com o aumento de valor de sete entre as mais importantes commodities agrícolas”.

Quando a especulação faz subir os preços, os investidores ricos se tornam ainda mais ricos e os pobres morrem de fome. A desregulamentação financeira que desestabilizou o sistema financeiro mundial está agora desestabilizando o sistema alimentar mundial. O aumento dos preços não é apenas o resultado da oferta e da demanda. É consequência sobretudo da especulação. Entre 2003 e 2008, o índice de especulação com commodities aumentou de 1.900 por cento, passando de um valor estimado de 13 bilhões de dólares para 260 bilhões de dólares. Trinta por cento desses fundos indexados são investidos em commodities alimentares. A Agribusiness Accountability Initiative (Iniciativa para a Responsabilidade do Agrobusiness) afirma que “Vivemos em um admirável mundo novo, com um trading eletrônico 24 horas por dia, desencadeado por algoritmos de índices de preços compostos, ajustes de ‘falta de confiança’ do investidor e ‘dark pools’, ou seja, investimentos coletivos comuns, de mais de 7 trilhões de dólares em trades de derivativos de commodities em mercados de balcão”.

O trading mundial de commodities não tem relação com alimentos, sua diversidade, seus cultivadores ou com quem vai comê-los, com as estações, com a semeadura ou a colheita. A diversidade alimentar está reduzida a oito commodities e é empacotada no “Composite Price Index” (Índice Consolidado de Preços). As estações foram substituídas pelo ‘24-hour trading’. A produção de alimentos, impulsionada pela luz do sol e pela fotossíntese foi deslocada para os “’dark pools’, ou fundos de investimentos comuns”. A tragédia é que esse mundo irreal está criando fome para pessoas no mundo real.


Em ‘The Food Bubble: How Wall Street Starved Millions and Got Away with it’ (A Bolha Alimentar: como Wall Street levou milhões à fome e conseguiu sair impune) — uma matéria de capa da Harper’s — Fredirick Kaufman afirma: “A história dos alimentos teve uma transformação sinistra em 1991, numa época em que ninguém estava prestando muita atenção. Naquele ano, o Goldman Sachs decidiu que o nosso pão de cada dia poderia ser um excelente investimento”.

E a entrada de investidores como Goldman Sachs, AIG Commodity Index, Bear Sterns, Oppenheiner and Pimco, Barclays, que permitiu que o agrobusiness aumentasse seus lucros. No primeiro trimestre de 2008, a Cargill atribuiu seu aumento de 86% aos lucros com o trading em commodities. A ConAgra vendeu seu ramo de trading para um fundo de hedge por 2,8 bilhões de dólares.

Especular com o preço do trigo para obter lucros roubou comida a 250 milhões de pessoas. A especulação promoveu a separação entre o preço de um alimento do valor daquele mesmo alimento. Como Da-mani, corretor de trigo de Austin, disse a Fred Kaufman: “Nós negociamos trigo, mas é trigo que nunca veremos. Trata-se de uma experiência cerebral”.

Comida é uma experiência ecológica, uma experiência sensorial, uma experiência biológica. Com a especulação, ela foi removida de sua própria realidade. Os mercados de grãos têm sido transformados, com o trading de futuros, pelos gigantes de Chicago, Kansas City e Minneapolis e em combinação com a especulação por parte de investidores.

E como afirma o Sr. Kaufman: “Trigo imaginário comprado de qualquer lugar do mundo afeta o trigo real comprado em todo o mundo”. Assim, se não de-commoditificarmos os alimentos, cada vez mais dinheiro será despejado no cassino global; os processos artificiais de especulação estão fazendo subir os preços dos alimentos e tornando-os inacessíveis a milhões e milhões de pessoas.

As regras da Organização Mundial do Comércio, os programas de ajustes estruturais do Banco Mundial e do FMI e os acordos bilaterais de livre comércio forçaram a integração de economias alimentares locais e nacionais no mercado global. E agora o sistema financeiro internacional está especulando com commodities alimentares, influenciando os preços e o direito à alimentação das pessoas mais pobres nos cantos mais remotos do mundo.

O pico mundial no preço dos alimentos começou a reaparecer em 2011. Segundo a FAO, da ONU, em janeiro de 2011, o índice dos preços de alimentos subiu 3,4 por cento desde dezembro de 2010. O índice dos preços dos cereais subiu de três por cento desde dezembro, e estava em seu nível mais alto desde julho de 2008, embora ainda 11 por cento inferior ao seu pico de abril de 2008.

Na Índia, o preço da cebola pulou de 11 rúpias por kg em junho de 2010 a 75 rúpias por kg em janeiro de 2011. Enquanto aumentava a produção de cebolas, de 4,8 milhões de toneladas em 2001-2002 para 12 milhões de toneladas em 2009-2010, os preços também subiram, indicando que em um mercado impulsionado pela especulação não há correlação entre produção e preços. A diferença de preço entre o atacado e o varejo era de 135 por cento.

Os alimentos que foram postos no cassino global estão servindo muito bem os investidores especuladores e o agrobusiness, mas não estão servindo as populações. Precisamos banir os alimentos do cassino global e colocá-los de volta nos pratos das pessoas. A democracia alimentar e a soberania alimentar só podem ser alcançadas colocando-se um ponto final na especulação financeira.

Josette Sheeran, diretora executiva do World Food Programme (Programa Alimentar Mundial), estabeleceu uma relação entre a revolução no Egito em 2010 e o aumento no preço dos alimentos. “Em muitos protestos, os demonstrantes brandiam pães ou carregavam bandeiras demostrando sua ira contra o aumento no custo dos alimentos básicos, como as lentilhas. Quando se trata de comida, as margens entre estabilidade e caos são perigosamente tênues. A volatilidade dos mercados pode traduzir-se rapidamente em volatilidade nas ruas e precisamos todos permanecer vigilantes”.

A preocupação crescente quanto à especulação com alimentos forçou alguns bancos a pararem de investir em commodities alimentares. O Commerzbank da Alemanha e o Volksbanken da Áustria removeram os produtos agrícolas dos demais produtos que compõem seus índices de fundos. O Deutsche Bank tinha feito o mesmo um pouco antes. Está na hora que cada governo e cada instituição financeira coloque o direito à alimentação dos povos acima da fome de lucros.

© 2012 The Asian Age



Só quando a última árvore tiver sido abatida, o último rio tiver sido envenenado, o último peixe tiver sido pescado, compreenderemos que não podemos comer dinheiro.

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