Desfazendo as pregas da mentira: paliativos resistentes numa era de excessos oligárquicos e devastação no Antropoceno
Por: Phil Rockstroh
Fonte: open.salon.com
Tradução: Mario S. Mieli
Wall Street está novamente nivelada com o fac-símile daquilo que outrora era conhecido como dinheiro. Mas essa é uma Recuperação Botox: um procedimento superficial, realizado com um veneno que paralisa o nervo, reservado aos ricos, compelidos pela própria vaidade a transformarem seus rostos em caricaturas da corrupção… para adquirir um semblante, congelado como o de uma boneca inquietante, incapaz de mostrar emoções – um simulacro grotesco do rosto humano.
Um rosto distorcido pelo botox revela um indivíduo com uma visão distorcida da existência: que os limites da vida, nesse caso, o processo de envelhecimento, devem ser escondidos e, fazendo-se assim, o artificialismo triunfa sobre a realidade. Do mesmo jeito a vida, com a nossa atual estrutura política e econômica sob o efeito botox, parece uma arrepiante distorção da própria vida – um truque desesperado para esconder a carnificina imposta pelos monstruosos excessos da exploração da população e do planeta pela oligarquia no Antropoceno.
Depois de ver o rosto de um narcisista cujas características foram intencionalmente desfiguradas pelo botox, a pergunta óbvia é: será que pelo menos a pessoa se olhou no espelho?
Sim. Mas assim como acontece com o 1%, a pessoa vê somente aquilo que está desesperadamente procurando ver. A pessoa conseguiu enganar-se a si mesma, consequentemente, crê estar enganando a todos aqueles que têm o azar de pousar o olhar sobre ela.
Uma verdade gaguejante ecoa mais forte no coração que uma mentira bem contada. Infelizmente, uma mentalidade habitualmente dissimulante visualizará a situação ao inverso. Com muita frequência, os sistemas interiorizados de visualização de um evento em curso determinam a compreensão que o indivíduo tenha a respeito de uma dada situação. Se as instituições (por exemplo: familiares, religiosas, governamentais, de comunicações de massas) que influenciaram o método de percepção das pessoas estiverem elas mesmas comprometidas com a internalização, pelos preconceitos auto-ressonantes, daí acontece um efeito de tipo espelho deformante de parque de diversões (tanto em âmbito individual quanto cultural de ampla escala), no qual as distorções refletem as distorções que, por sua vez, refletem aquelas distorções… ao infinito.
A realidade se torna grotesca e as enormes distorções são percebidas como realidade.
Por isso é essencial, no nível individual, desenvolver um método de visualização que inclua o coração, o estômago, e todos os sentidos. Uma mentira engana apenas a mente; em vez disso, a verdade ressoa no ser como um todo.
“All I have is a voice / To undo the folded lie.” — W.H. Auden
Tudo o que tenho é uma voz/para desfazer as pregas da mentira. — W.H. Auden
Atualmente, somente um pouco mais de 40% da população dos Estados Unidos aceita a realidade verificável do caos climático global. A barragem constate de propaganda na forma de falsa ciência, inventada e divulgada pelas enormes e obscenamente ricas multinacionais do setor da energia, é um dos motivos desse número sombrio, e que continua a piorar, de pessoas que não conseguem discernir entre a pesquisa científica da busca da verdade e a dissimulação do grande esquadrão de politicantes e charlatões das relações públicas corrompidos pelo dinheiro.
Esse desenvolvimento, já por si suficientemente inquietante, é emblemático de um dilema maior. Essa falsa consciência penetrante, gerada pela atomização, natureza artificial da existência no interior do estado corporativo/consumidor – por exemplo, a Era da Mídia que usurpa os inatos desejos do coração humano e os transforma em ânsias desesperadas dos consumidores – não só deixou os verdadeiros fiéis do consumismo destituídos da capacidade de elaborar as informações honestamente – como tornou muitas pessoas incapazes de individuar a fonte de seu próprio sofrimento.
É impossível saciar um apetite vazio através de um consumo ainda mais vazio. Pelo contrário, o vazio no centro do estado de anomia pode ser remediado somente por um despertar do coração.
Como fazer para tomar esse curso de ação? A resposta não é nem recôndita nem inacessível: através do respeito das modalidades da dor, da gratidão, e adotando o entusiasmo pelo empenho social e político. No presente, o atual estado da sociedade e dos governos nos dá amplas oportunidades de prática.
Pode-se começar com: afligir-se pelo abuso, de nossa parte, da flora e da fauna deste planeta vivo; depois afligir-se pelo sofrimento que causamos a nós mesmos com essas ações insensíveis. Já que, enquanto acreditarmos ser nosso direito de nascimento explorar o planeta, a consequência é que continuaremos a achar admissível nos explorarmos os uns aos outros impiedosamente, através dos mesmos métodos sem coração.
Não é necessário um deus vingativo lá em cima para nos punir pelas nossas transgressões… há tempo já o estamos fazendo nós mesmos. Arrastar-nos pela vida destituídos do calor emanado por um coração compassivo equivale a privar-nos de nossa própria alma – ou seja, nos tornarmos não completamente vivos dentro da própria vida. Que espécie horrível de punição é essa: construir no espaço íntimo no interior de si mesmo, onde deveria estar o coração, um calabouço onde a pessoa se torna o torturador e o torturado – tudo ordenado por um déspota impiedoso (a mente obstinada, não temperada pelo conselho de um coração que tenha compaixão) que assenhoreia no deserto de equívocos que a pessoa, por mal entendido, compreendeu como se fosse a inteira existência.
Seja a depressão econômica que a depressão chamada psicológica são geradas por algumas fontes comuns: o agarrar-se a um sistema de crenças moribundo (como o culto da morte no capitalismo recente) e a recusa de se aceitar o fim das coisas; a dor que aflige quem se recusa de honrar os mortos através de um fecho fornecido por uma sepultura decente. Assim não se permite aos defuntos descansar… empenhando-os numa conversa obsessiva e unilateral… exigindo que eles façam o que não podem fazer… levantar e confortar os vivos.
Além disso, a depressão pode nascer do se estar sujeito à desumanizante repressão face às forças degradantes da exploração. Frequentemente, pela força do hábito, os indivíduos sujeitos à depressão reprimem a raiva, a fantasia, o eros – forças vitais de propulsão e intenção. Por isso, sentimentos se infiltram na psique.
Ao contrário do que afirma a propaganda altamente lucrativa dos gigantes da indústria farmacêutica, a depressão, na grande maioria dos casos, não é causada por um desequilíbrio químico. Os antidepressivos servem de paliativos para a desmoralizada mão-de-obra do sistema capitalista. E esses compostos são ineficazes. Estudo após estudo revelam que os antidepressivos (os SSRIs, especialmente) não são mais eficazes que o placebo. Ainda que essas substâncias não sejam tão inócuas quanto pílulas de açúcar. Na maioria das vezes, os antidepressivos criam dependência. A abstinência com relação a essas drogas é dolorosa e perigosa, como para o uso excessivo de qualquer outro medicamento.
O modelo neurológico demonstrou ser uma falácia egocêntrica e reducionista. Independentemente da abstrusa (demonstravelmente falsa) linguagem relativa aos receptores neuronais, a depressão é um estado mental – aquilo que concerne o imaginário subjetivo – um meio para dar forma e descrever os mistérios do ser e do mundo.
Uma vez que a depressão (mais acuradamente, tristeza, ou dor, ou melancolia, ou tédio, ou atribulação) seja aceita como uma condição mutante do multiverso da mente humana, sua força de aperto diminui. Uma alma sofredora deseja simplesmente dialogar… deixar a sua torre decrépita (depois de um necessário período de luto, obviamente) e viajar por outras regiões da psique; só que sozinha, em seu isolamento, esqueceu como fazê-lo.
Se a pessoa estiver deprimida a ponto de pensar em suicídio, sua alma não a está aconselhando de se matar a si mesma. Está sugerindo matar a falsa consciência que a induziu a crer nos conceitos que a aprisionam, aplicando-os na totalidade de si mesma e na sua concepção de vida. Que não cometa suicídio e, em vez disso, descubra e deponha o usurpador que trama da sala do trono do seu coração.
Enviar mensagens tanto da paisagem urbana de sua alma quanto de suas regiões mais remotas; dar voz às exaltações do próprio espírito e aos sofrimentos do seu coração. A estéril paisagem do nada da depressão passa a florescer em uma vida vivaz através da adoção de imagens vivas que nascem de um coração aberto. E os pensamentos em decomposição são um adubo excelente.
Caso contrário, chega o desespero. Por exemplo, a fantasia gerada pelo desespero… de estarmos em êxtase em direção aos céus, ou sua contrapartida leiga… de estarmos aliviados do estresse e das incertezas, infligidas por uma vida mercantilizada, ganhando na loteria. Profundamente, percebemos que temos poucas possibilidades de fugir da natureza da ordem presente, mortificante e baseada na exploração. Portanto, os cidadãos do estado corporativo se agarram a essas desesperadas fantasias de liberação das próprias exigências amplamente abrangentes e opressivas.
Com o capitalismo recente, as pessoas se sentem presas pelas circunstâncias sociais e financeiras; um grande número delas não acreditam poder mudar o curso da própria vida por meio da iniciativa e do trabalho. Os operadores do 1% (forjadores da consciência cultural) são ludibriadores de sonhos… usurpadores de desejos. Bem sabem que a linguagem do coração se expressa no léxico da transformação, do desejo que habita no profundo do humano de alcançar o sublime na experiência quotidiana, um modo de ser que chamamos de liberdade; por exemplo, o desejo de se ter um caráter próprio e único, forjado pelas nossas escolhas de vida próprias, como se negociássemos a casualidade do desenrolar do destino.
A mania pela loteria e as fantasias sobre o fim do mundo revelam que a premissa central do capitalismo é uma mentira. Assim, as pessoas compreenderam que no atual sistema não poderão nunca ser livres o suficiente para levar adiante a vocação de seus corações. Só uma virada altamente improvável da Roda da Fortuna ou de uma fábula semelhante, implorando a ajuda do céu, poderá liberá-las.
Essas são as fantasias de um povo destruído – as vis crenças e os remédios paliativos que são colhidos por uma população governada por instituições guiadas pela entropia, que perderam qualquer escopo que não seja a autoperpetuação. De modo que é necessário estarmos prontos para agir assim que a estrutura desmoronar.
Devemos, portanto, construir dentro de nós mesmos uma estrutura interna autêntica, como fazemos exteriormente nossa parte para procurar imaginar e criar novos modelos políticos e culturais. Em poucas palavras, é preciso agir como se o inevitável colapso já tivesse ocorrido.
Phil Rockstroh é um poeta, compositor e filósofo que vive na cidade de Nova York. Seu website é: http://philrockstroh.com
E pode ser contatado no endereço: phil@philrockstroh.com