>> O GRATUITO É A ARMA ABSOLUTA – Siné Mensuel entrevista Raoul Vaneigem

O GRATUITO É A ARMA ABSOLUTA
Siné Mensuel entrevista Raoul Vaneigem


Fonte: Infoshop.org 7 de janeiro de 2012
Tradução: Mario S. Mieli




O pensamento situacionista definiu a Primavera de Paris em 1968; uma revolta espontânea que quase derrubou o governo francês e ameaçou entrar em erupção transformando-se numa insurreição global contra o capitalismo a partir de seu interior. Protestando contra a alienação, a desigualdade e a sociedade do espetáculo, slogans como “O tédio é contrarrevolucionário” e “Corre, camarada, o velho mundo vem atrás de você!” encheu as bocas e as canções de milhões que, em seu âmago, estavam em revolta aberta contra as demandas da sociedade de consumo. Raoul Vaneigem era membro da Internacional Situacionista de 1961 a 1970, é autor de mais de trinta livros e é um dos pensadores fundamentais do movimento. Ele estava nas ruas em 1968 e oferece suas ideias sobre aquela época e agora em entrevista a Siné Mensuel.



Siné Mensuel: Você poderia dar uma breve definição dos situacionistas?

Raoul Vaneigem: Não. O viver é irredutível a definições. A vitalidade e a radicalidade dos situacionistas continua a se desenvolver por trás das cenas de um espetáculo que tem toda razão de se manter silencioso e de se disfarçar. Por outro lado, a recuperação ideológica a que essa radicalidade foi submetida vivenciou um surto superficial, mas seus interesses não têm nada em comum com os meus.

Siné Mensuel: O que os situacionistas queriam dizer quando falavam que o situacionismo não existe?

Raoul Vaneigem: Os situacionistas sempre foram hostis a ideologias, e falar de situacionismo seria colocar uma ideologia onde ela não existia.

Siné Mensuel: Por que você rompeu com a Internacional Situacionista em 1970? Em retrospectiva, o que você acha de Guy Debord?

Raoul Vaneigem: Eu rompi porque a radicalidade que tinha sido a prioridade em Maio de 1968 estava em processo de dissolução num comportamento burocrático. Cada membro tinha optado por seguir seu próprio caminho sozinho ou abandonar o projeto de uma sociedade de autogestão. Talvez Debord e eu tenhamos sentido mais cumplicidade que afeto, mas a cisão não importa! O que se vive com sinceridade nunca é perdido. O resto é apenas a borra da futilidade.

Siné Mensuel: O que acha do Movimento dos Indignados?[1]

Raoul Vaneigem: É uma reação de segurança pública contra a resignação e o medo que a tirania do capitalismo fornece com seus melhores suportes. Mas a indignação não basta. É menos uma questão de lutar contra um sistema que está desabando que a favor de novas estruturas sociais fundamentadas diretamente na democracia direta. Enquanto o Estado destrói os serviços públicos, somente um movimento autogerido pode assumir a responsabilidade pelo bem estar de todos.

Siné Mensuel: O utopismo ainda está na agenda?

Raoul Vaneigem: Utopismo? De agora em diante, é o inferno do passado. Fomos sempre forçados a viver num lugar que está em toda parte menos naquele lugar, não estamos em lugar nenhum. Essa é a realidade de nosso exílio. Isso nos foi imposto por milhares de anos por uma economia baseada na exploração do homem pelo homem. A ideologia humanista nos fez acreditar que somos humanos, enquanto permanecemos, na maior parte, reduzidos ao estado de animais cujos instintos predatórios são satisfeitos pela vontade de poder e de apropriação. Nosso “véu de lágrimas” foi considerado o melhor dos mundos possíveis. Será que poderíamos ter inventado um modo de vida mais fantasmagórico e absurdo que a toda poderosa crueldade dos deuses, a casta de sacerdotes e príncipes governando povos escravizados, a obrigação de trabalhar que deveria garantir alegria e substanciar o paraíso stalinista, o Terceiro Reich milenarista, a Revolução Cultural Maoísta, a sociedade do bem-estar social (o ‘Welfare state’[2]), o totalitarismo do dinheiro além do que não há nem segurança individual nem social, [e] finalmente a ideia de que a sobrevivência é tudo e a vida é nada? Contra essa utopia, que se faz passar por realidade, está oposta a única realidade que interessa: o que tentamos viver, garantindo nossa felicidade e a felicidade de todos. A partir daí, não estamos mais numa utopia, mas no centro de uma mutação, uma mudança de civilização que está se configurando sob nossos olhos e que muitas pessoas, cegas pelo obscurantismo dominante, são incapazes de discernir. Porque a busca do lucro torna os homens uns brutos predatórios, insensitivos e estúpidos.

Siné Mensuel: Pode nos explicar como aquilo que é grátis e livre, na sua opinião, seja o primeiro passo decisivo em direção ao fim do dinheiro?

Raoul Vaneigem: O dinheiro não está simplesmente se desvalorizando, e a diminuição do poder de compra o comprova; ele se investe de um modo tão selvagem na especulação da bolha do mercado acionário que está fadado a implodir. O tornado do lucro a curto prazo destrói tudo em seu caminho; esteriliza a terra e endurece a vida com o objetivo de extrair lucros inúteis. Humanamente concebida, a vida é incompatível com a economia que explora o homem e a terra por fins lucrativos. Ao contrário da sobrevivência, a vida não cansa de se dar, se doar. Aquilo que é gratuito constitui a arma absoluta contra a ditadura do lucro. Na Grécia, está se desenvolvendo um movimento chamado “Não Pague”. Em seu início, os motoristas recusavam de pagar pedágios; eles tinham o apoio de uma coletiva de advogados que processaram o Estado, acusado de vender as rodovias a empresas privadas. Hoje é uma questão de nos recusarmos de pagar por transporte público, de exigirmos assistência médica e educação grátis, de não pagarmos mais impostos e taxas que só servem para resgatar bancos que nos defraudam e para enriquecer os acionistas. A luta pelo prazer ao interior de si mesmo e no mundo não passa através do dinheiro mas, pelo contrário, em sua absoluta exclusão.
É absurdo que uma greve obstrua a livre circulação de pessoas, enquanto poderia decretar o transporte público, a assistência médica e a educação gratuitos para todos. É preciso compreender – antes que ocorra o colapso financeiro – que o que é grátis é a arma absoluta da vida contra a economia. Não é uma questão de arrebentar os seres humanos, mas de arrebentar o sistema que os explora e as máquinas que os forçam a pagar.


Siné Mensuel: Você defende a desobediência civil. O que ela significa para você?



Raoul Vaneigem: É o que está acontecendo na Grécia, na Espanha, na Tunísia e em Portugal. É o que sumariza o título do panfleto que escrevi para nossos amigos libertários em Thessaloniki: O Estado é Nada; Nós Somos Tudo. A desobediência civil não é um fim em si mesmo. É o caminho em direção à democracia direta e à autogestão generalizada, ou seja, à criação de condições que sejam propícias para a felicidade individual e coletiva.
O projeto de autogestão começa a se realizar quando uma assembleia decide ignorar o Estado e, em sua própria iniciativa, põe em prática as estruturas capazes de responder às necessidades individuais e coletivas. De 1936 a 1939, os coletivos libertários da Andaluzia, Aragon e Catalunha experimentaram sistemas de autogestão com sucesso. Foram esmagados pelo Partido Comunista Espanhol e pelo exército de Lister, abrindo caminho às tropas de Franco.
Para mim, nada parece mais importante hoje em dia que a implementação de coletivos autogeridos capazes de desenvolver-se enquanto o colapso monetário faz o dinheiro desaparecer e, juntamente com isso, uma maneira de pensar implantada em nosso comportamento por milhares de anos.

Siné Mensuel: Fale-nos sobre os direitos dos animais, que os pensadores revolucionários deixaram de levar em conta por muito tempo.

Raoul Vaneigem: É menos uma questão de direitos dos animais que uma reconciliação do homem com a natureza terrestre que ele tem explorado para fins lucrativos até hoje. O que tem impedido a evolução do ser humano em direção a uma verdadeira humanidade tem sido a alienação do corpo posto a trabalhar, a exploração da força vital transformada em força produtiva. Nossa animalidade residual tem sido reprimida em nome de um espírito que é somente a emanação de um poder celestial e temporal encarregado de domar a matéria terrestre e corpórea. Hoje, a aliança com as energias naturais está se preparando para suplantar a pilhagem de recursos planetários, vitais. Redescobrir nossa relação com o reino animal significa nos reconciliarmos com o animal dentro de nós; significa refiná-lo, em vez de oprimi-lo, reprimi-lo e condená-lo às crueldades da tensão e angústia. Nossa humanização implica reconhecer o direito do animal de ser respeitado, em sua especificidade.

Siné Mensuel: Na Bélgica é obrigatório votar, pelo menos na teoria. Você já votou alguma vez? Você paga multas?

Raoul Vaneigem: Nunca voto. Nunca recebi uma multa.

Siné Mensuel: Que lições podemos aprender desse longo ano em que a Bélgica não teve governo?[3]

Raoul Vaneigem: Nenhuma. Durante o lucrativo período de sono dos políticos – aqueles 55 ministros do governo não têm problemas de fazer face às despesas – as máfias financeiras continuaram a promulgar leis e se deram muito bem com os “capachos servis” que estão sob seu comando.

Siné Mensuel: Como você vê as “revoluções” em curso nos países árabes? Você crê que o Islã seja uma ameaça a elas?

Raoul Vaneigem: Onde o social leva a melhor, as preocupações religiosas desvanecem. A liberdade que está atualmente se livrando da tirania secular não está disposta a se acomodar à tirania religiosa, o Islã tentará se democratizar e provará o mesmo declínio que o Cristianismo. Gosto do slogan da Tunísia: “Liberdade para rezar, liberdade para beber!”

Siné Mensuel: Finalmente, você permanece um irredutível otimista, não?

Raoul Vaneigem: Eu me contento com a fórmula de Scutenaire:[4] “Pessimistas! O que vocês esperavam?” Mas não sou um otimista ou um pessimista. Não dou a mínima para definições. Quero viver começando de novo a cada dia. Será necessário que a denúncia e a rejeição de nossas insuportáveis condições cedam lugar à realização de uma sociedade humana que rompa em absoluto com a sociedade de mercado.



(Observações coletadas por Jean-Pierre Bouyxou. Publicado em 24 de novembro de 2011 por Siné Mensuel.
[1] Uma série de demonstrações espontâneas ne Espanha, envolvendo milhares de pessoas, iniciadas em 15 de maio de 2011.
[2] Em inglês, no original.
[3] Dividida em dois, geográfica e politicamente – Flandres e Wallonia, a Bélgica não tem tido governo oficial desde al eleições parlamentares de 13 de junho de 2010.
[4] Nota por Siné Mensuel: o escritor belga Louis Scutenaire (1905-1987) é o autor de Mes inscriptions. Raoul Vaneigem dedicou um livro a ele: “Poets Today” Collection (Seghers, 1991).

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