Rios voadores
Por Sílvio Mieli
É impossível voltar a viver como os povos tradicionais da Amazônia, mas a ecologia da dádiva praticada por eles há séculos dispõe de um modelo anticapitalista por excelência
Fonte: Brasil de Fato 20/11/2014
Se na nossa sociedade os bens são prioritariamente objetos de comércio e negócio, nas culturas tradicionais constituem “dons recíprocos”, uma realidade de outra ordem e potência. Formas primitivas de trocas não têm somente caráter econômico, mas são um “fato social total” (Marcel Mauss), com significado religioso, mágico, sentimental, jurídico, moral. Muito estudadas no âmbito da antropologia, essas trocas nos remetem a dois textos recentes, que apontam para questões ligadas à reciprocidade.
O primeiro texto é do sempre inspirado Frei Betto. Em “A cigarra e a formiga: fábula petista”, publicado aqui no Brasil de Fato, Betto compara a história do PT com o conto de Esopo. Em síntese, o texto conclui que o PT teria trocado o trabalho de base dos formigueiros militantes pelo canto presunçoso da cigarra (poder). Acrescentaria que na fábula petista, além da evidente falta de reciprocidade para com as formigas, existe uma questão que atinge indistintamente a juventude, os sem-terra e os sem-teto, os povos indígenas e os quilombolas. Trata-se do anacrônico modelo de desenvolvimento do governo Dilma. As recentes falas de Gilberto Carvalho —“não abriremos mão da hidrelétrica de Tapajós” — e a possível indicação da senadora Kátia Abreu (a musa dos ruralistas) para o Ministério da Agricultura, resumem tudo.
O outro texto aborda diretamente a questão da dádiva. Em seu blog Para ler sem Olhar, o economista Diego Viana compara o Egito, dádiva do Nilo, ao Brasil, dádiva da Amazônia. Não só o rio Amazonas, mas a floresta como um todo, “que permite empilhar tantos homens deste outro lado do subcontinente”. Estamos diante de uma ecologia da dádiva, na qual a “natureza entrega fertilidade e umidade, cheias e rios voadores. Mas não quer nada em troca, senão ser deixada em paz”.
O Instituto Socioambiental (ISA) estranhou, em recente editorial, que os governantes não levem a sério os estudos científicos recentes, que vêm desvendando a dinâmica das chuvas amazônicas, responsável pelo abastecimento de água da maior parte da América do Sul por meio dos chamados “rios voadores” — fluxos gigantes de vapor d’água que se espalham regularmente ao Leste da Cordilheira dos Andes, a partir da Amazônia.
É impossível voltar a viver como os povos tradicionais da Amazônia, mas a ecologia da dádiva praticada por eles há séculos dispõe de um modelo anticapitalista por excelência, onde “não há paga, não tem ciclo do valor (…), inclui a reciprocidade, a obrigação de dar, receber, retornar e até iniciar uma outra dádiva, sob pena de uma profunda violência”, conforme define Viana em seu texto inspirado.