Domenico-di-Michelino-Dante-Alighieri-and-the-allegory-of-the-Divine-Comedy-and-the-town-of-Florence-1465
Retrato de Dante, por Domenico di Francesco, também conhecido pelo pseudônimo Michelino di Benedetto, 1465, Santa Maria del Fiore, Florença

Um manuscrito inédito de Dante Alighieri
Por: Sandro Moiso
Fonte: Carmilla on line 24/06/2014
Tradução: Mario S. Mieli

N.doT.:
Sandro Moiso apresenta a publicação pela Edizioni TABOR de Turim, do incrível manuscrito de Dante Alighieri, encontrado na Sacra di San Michele Arcangelo, Piemonte, Itália. No manuscrito, que são variações para passagens do Inferno, Dante põe na boca de Virgílio – seu guia no Inferno – a explicação daquilo que estava vendo, através de uma fresta… uns diabos em obra… A tradução para o português dos trechos apresentados foi posta logo abaixo dos originais e tem apenas o objetivo de revelar o conteúdo o mais fielmente possível, e não de colocar em forma poética ideal esses trechos.

Dante Alighieri, Inferno – Canto XXXIII Bis – L’incredibile manoscritto ritrovato in Val Susa, Edizioni TABOR, Valle di Susa (TO) 2013, pp. 64, € 6,00

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Já são conhecidas há séculos as profecias contidas na Comédia de Dante, como bem sabem os estudantes do ensino médio, obrigados a estudá-las e a escrever nos sites das escolas, valorizando suas respectivas instituições e seus professores. Mas, felizmente, o manuscrito encontrado entre os documentos depositados na Sacra di San Michele abre para os estudiosos novas possibilidades de pesquisa quanto às capacidades de adivinhação do Poeta. Não só no que diz respeito à sua vida e a seu exílio, mas também quanto ao destino da espécie humana como um todo.

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Sacra San Michele Arcangelo

Da sofrida exclusão de sua terra natal nasceu, na verdade, o grande papel profético de Dante como portador de real e nobre virtude, mas se as profecias de Ciacco, Farinata degli Uberti, Brunetto Latini e do ancestral Cacciaguida eram todas voltadas sobre a vida do poeta e seu exílio, ou aos acontecimentos políticos de Florença, entre os séculos XIII e XIV, aqui estamos diante de uma descoberta sensacional, não só do ponto de vista da história literária, já que o Poeta Divino descreve com precisão qual será o destino da humanidade como um todo e do Vale em que ele estava caminhando para chegar até Paris, onde, em torno de 1308, ele teria frequentado por algum tempo a Faculdade de Teologia.

Deve ser realmente elogiado, portanto, o compromisso com o qual o professor Philip Mollea Ceirano enfrentou a difícil tarefa de reconstruir o texto na íntegra e pelo trabalho que, em primeiro lugar, dedicou à elaboração e, em seguida, à decisão de abandoná-la à crítica corrosiva dos ratos. Trabalho filológico que, como é bem explicado na introdução, teve de lidar com os cortes, cada vez mais frequentes, que ocorreram com as despesas universitárias, por parte de um governo que não parece compreender, nem remotamente, a importância do trabalho realizado pelo Departamento de História dirigido pelo professor quanto às origens da literatura italiana.

Além disso, o fato de que a Universidade que diz respeito ao Departamento acima mencionado permaneça anônima é, sem dúvida, devido ao desejo de se querer evitar a explosão de curiosidade e suposições que poderiam ter sido, e ainda podem, danificar a confiabilidade do trabalho científico realizado pelo professor e sua equipe interna e fidelíssima, os quais temem o assédio da mídia e de serem apresentados como novos Dan Brown.

Mas falemos agora sobre o texto em si. Em primeiro lugar, é preciso dizer que, como quase todos os textos de Dante, trata-se de um texto relacionado com as experiências do próprio poeta e que, como quase todos os textos de sua fase madura, trata-se de um texto político. Militante, poderíamos quase dizer. Dante, no exílio, estava atravessando as terras do Conde Amedeo de Savóia durante o período em que, a pedido do Papa Clemente V e do rei Filipe, o Belo da França, estava-se providenciando a melhoria da estrada que ligava a França com Turim e Asti (importante centro de atividades comerciais e econômicas naquela época), o marquesado de Saluzzo e a região de Monferrato.

Tal projeto, no entanto, entrava em confronto com a resistência dos povos das montanhas e dos camponeses, os quais se opunham à estrada tanto devido às expropriações forçadas de terras pertencentes a pequenos proprietários independentes, quanto ao trabalho forçado, exigido pelo conde de Savóia para a realização do projeto. E Dante, bem perto de Sant’Ambrogio, acabou sendo envolvido em uma disputa entre os aldeões e os capangas do conde, terminando por ser duramente e injustamente espancado e, finalmente, preso sob a acusação de ter acirrado os ânimos com suas palavras.
Depois de solto, e em condições miseráveis, foi hospedado pelos monges da Sacra di San Michele, os quais o curaram com uma mistura que o próprio poeta descreve nos papéis encontrados:

”eravi nella nomata potione di certo aliquanta santoreggia, e della artemisia absinte, e poca digitale e laudano in buona mensura; eranvi di poi li fiori di una particulare spezie di canapa, che dicesi venga dalle lontane Indie, ma che bene forte s’accresce anco nello giardino de’ divoti frati, che spesso l’usano per fare de’dolciumi, manducati li quali spesse volte li fa visita Nostra Signora la Madonna; eranvi di poi una radice di genziana, et multi essiccati pezzi del fungo, che trovasi nelli boschi attigui, che chiamasi ammanita […] et essi anco sono di molto aiuto alle lor preci, imperrocché ingollata la giusta dose mai fu vana l’attesa di una divina apparizione”.

“A dita poção continha certamente carta quantidade de segurelha e de ‘artemísia absinthium’, um pouco de ‘digitalis’ e láudano em boa medida; havia também flores de uma espécie particular de cânhamo, que se diz vir das distantes Índias, mas que cresce bem e forte também no jardim dos devotos monges, que muitas vezes o utilizam para fazer doces, bons bocados pelos quais muitas vezes são visitados por Nossa Senhora a Virgem Maria; havia também uma raiz de genciana, e muitas partes secas do fungo que se encontra nos bosques adjacentes, e que é chamado ammanita […] e eles também são de grande ajuda para as suas orações, pois quando tomados na dose certa, nunca foi em vão a espera de uma aparição divina”.

É incrível a reconstrução do ambiente que Dante, num espírito mais próximo ao do antropólogo que do escritor, é capaz de passar séculos mais tarde. Mas ainda mais extraordinário é a profecia sobre o futuro do vale e da humanidade contidas nos versos de um canto que o próprio poeta, talvez assustado com sua própria visão, quis deixar entre as paredes da Sacra. Visão certamente não estranha ao consumo da poção mencionada.

O canto tem mais do que o dobro dos versos normalmente contidos nos demais, e talvez isso mesmo tenha levado Dante a deixá-lo fora, para não faltar contra a unidade estilística do seu trabalho, mas o início do canto é “clássico”. O poeta vê, por uma fresta, os demônios trabalharem para preparar o que parece ser um novo círculo do Inferno e, naturalmente, será seu companheiro, Virgílio, quem lhe dará a explicação:

“Si puniranno in cotesta contrada?quei peccatori che avran disianza?di trasformare, a seconda ch’aggrada,
del mondo la natura e la sostanza?e impiegheran l’ingegno e la fatica?per appagar la loro tracotanza” (vv. 64 – 69)

“Serão punidos neste círculo aqueles pecadores que terão o desejo de transformar, a seu bel prazer,
a natureza e a substância do mundoe empregarão inteligência e esforços para satisfazer sua prepotência.”

Vendo o poeta perturbado, Virgílio continua:

“Questo è distinato
a castigare il tristo tradimento?di chi in imperio suo vorrà ogni umano?per costringerlo a un folle movimento.
Questi imporran lo sforzo inane e vano?di mover di continuo cose e genti?sempre più in fretta e sempre più lontano.
Lo bieco fine degli spostamenti?sarà crear profitti con l’inganno?promettendo vantaggi inesistenti” (vv. 84 – 93)

“Isso se destina

a castigar a triste traição de quem, em seu próprio império, desejará cada humano, para forçá-lo a um louco movimento.
Esses vão impor o fútil e vão esforço de mover continuamente coisas e gentes cada vez mais depressa e cada vez mais longe.
O errôneo fim dos deslocamentos será o de criar lucros através do engano, prometendo vantagens inexistentes.”

Mas o que poderia ter perturbado tanto a Dante, daquilo que que tinha entrevisto no trabalho dos diligentes demônios?

“Una strada ponean tratto per tratto?sovra la terra, fatta in duro acciaro,?sì come ‘l fabbro forma il catafratto.
Due barre parallele paro paro?li diavoli avvitavano a traverse?fitte in la terra nel verso contraro.
Così un sentiero sovra il pian s’aderse,?non di ghiaioso fondo, o lastricato,?ma di ferree rotaie lisce e terse” (vv. 73 – 81)

“Uma Estrada colocavam, trecho por trecho por cima da terra, feita de duro aço, sim, como o ferreiro forma o catafracto.
Duas barras paralelas par a par os diabos parafusavam para atravessar densas na terra em sentido contrário.
Assim um caminho sobre o plano se aderiu não um fundo de cascalhos ou pavimentado mas de trilhos de ferro límpidos e lisos.”

O que impressiona não é apenas a previsão das ferrovias ultra rápidas que eles teriam que arar através do Vale no futuro, mas o castigo tremendo, típico da retaliação, o que sobre aqueles trilhos será consumado contra os administradores, políticos, empresários, mafiosos e financistas que estarão envolvidos século após século naquele horrível projeto. Todos facilmente reconhecíveis até hoje.

Mas, a fim de não perturbar ainda mais o leitor e, sobretudo, para não estragar sua diversão, é melhor encerrar por aqui; lembrando de que o trabalho é distribuído por uma pequena, corajosa e meritória agência de distribuição de livros de Turim que há anos tem o compromisso de promover em âmbito nacional as publicações de editoras antagonistas e independentes.

N.doT.: A descoberta desse antigo manuscrito coincide com a construção de uma ferrovia de alta capacidade e alta velocidade que ligaria Turim a Lyon, na França. Tanto na Itália como na França, há inúmeros movimentos e manifestações dos habitantes das regiões envolvidas totalmente contrários a esta ferrovia, por ser desnecessária, por envolver altos riscos éticos, estéticos e ecológicos, entre outros, o que torna ainda mais contundentes as palavras e premonições de Dante Alighieri.

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Vide No Tav.

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