Contemplar a mudança
Por: Paolo Bartolini
Fonte: megachip 11 de agosto de 2012
Tradução: Mario S. Mieli
Talvez alguns poucos encontrão alguma coisa interessante nestas minhas linhas, todavia creio que seja necessário reafirmar – especialmente para aqueles que pretendem entender o alcance ético e espiritual da crise de civilização que estamos atravessando – o nexo profundo que liga os destinos de uma mudança possível (coletiva) à transformação interior dos seres humanos; transformação que, na minha opinião, não pode não dizer respeito à esfera religiosa e contemplativa, amplamente entendida, também, além dos tradicionais percursos confessionais.
A urgência, nesta fase inédita de Transição para a humanidade e para o nosso planeta, parece-me inicialmente a de colher profundamente o alcance do desafio que a Crise está nos lançando: estamos, na realidade, diante da necessidade de reinventar novas visões do mundo, realmente alternativas à única dominante, caracterizada pelo poder indisputado da violência, do controle tecnocientífico sobre as mentes e a natureza, e da acumulação quantitativa universal (motor perpétuo do atual e insustentável capitalismo global).
O mito no qual vivemos, que funciona como pano de fundo para as nossas alegrias e os nossos tormentos quotidianos, é e permanece, infelizmente, um mito separativo que, em vez de unir e de promover paz e harmonia, multiplica a guerra de todos contra todos, amplifica os egoísmos e reforça aquele sentido de separação dos outros e da realidade circundante que nos torna, quase sem percebermos, diligentes competidores numa vida agora reduzida a livre mercado.
Penso que se Marx falou expressamente de uma “religião da vida quotidiana” referindo-se ao poder transfigurador do capital, ele pode fazê-lo porque soube compreender os mecanismos secretos do seu peculiar fetichismo, explicando-nos acuradamente que os homens, sem a consciência e o controle sobre a produção e sobre o andamento das relações sociais em toda sua complexidade, estão naturalmente destinados a viver de um modo passivo a conexão interpessoal de todos e de tudo, tornada possível pela circulação das coisas e do dinheiro. Eis então que a mercadoria assume, aos olhos do indivíduo/consumidor uma realidade em si, desconectada de todas as passagens (sociais, naturais, de trabalho) que contribuíram a fazê-la existir. Em outras palavras, o mundo das coisas se faz auto evidente cancelando qualquer consciência do processo humano subjacente. São mostradas, diante de olhos cruéis e de mentes confusas, somente coisas e preços, como se fossem sólidas certezas e realidades indiscutíveis.
O valor de troca, em síntese, supera ontologicamente o valor de uso e abre as portas à reificação (“objetificação”) das pessoas e à personificação das coisas.
À espera de uma revolução que não chega, e que é frequentemente procurada no lugar errado, gosto de reler essas afirmações do monge zen vietnamita Thich Nhat Hanh que, no seu famoso “Ser Paz” começa assim um breve capítulo intitulado programaticamente “Inter-ser”:
“Um poeta, olhando esta página, percebe logo que dentro dela há uma nuvem. Sem a nuvem, não há chuva; sem chuva, as árvores não crescem; e sem árvores, não podemos fazer o papel. A nuvem é indispensável à existência do papel. […] Olhando mais profundamente esta página, veremos brilhar também a luz do sol. Sem a luz do sol as florestas não crescem. Nada cresce na ausência da luz solar, nem nós. Eis porque nesta folha de papel brilha o sol. O papel e a luz do sol inter-são. Continuemos a olhar: eis o lenhador que abateu a árvore e a transportou à fábrica onde foi transformada em papel. Sabemos que a existência do lenhador depende do seu pão quotidiano, portanto, nesta folha de papel há também o trigo que acabou no pão do lenhador…”.
O leitor sensível terá já compreendido que essa lúcida consciência das interconexões vitais que levaram à “folha de papel” pode alargar o seu raio até incluir os pais do lenhador, seus antepassados e todas as condições que, na noite dos tempos, fizeram com que a folha de papel pudesse um dia “manifestar-se”.
Pois bem, esse olhar sábio (aqui budista, mas comum, inquestionavelmente, a todos os grandes caminhos contemplativos antigos e modernos), que penetra em profundidade a realidade das coisas, sem acreditar cegamente na religião do dinheiro e no seu espetáculo alienante, para mim parece propedêutico a qualquer projeto de mudança da história.
Com isso não estou defendendo – apesar da tentação ser forte– que, para mudar o mundo seja necessário ser poetas visionários ou místicos mas, pelo menos, que é preciso reconhecer – aqui e agora – a importância de formar o caráter e de cultivar a espiritualidade de quem quer que tenha a intenção de superar o estado presente das coisas. Cada dia estou mais convencido de que seja essa a premissa irrenunciável para se começar a sair das trevas que nos envolvem e construir um novo tempo de paz e de luz, para todos e tudo.