>> A Ciência do Genocídio, por Chris Hedges

A Ciência do Genocídio
por Chris Hedges
Fonte: truthdig de 6 de agosto de 2012
Tradução: Mario S. Mieli



A foto acima mostra o olho de uma vítima que olhou a explosão. O olho ficou opaco próximo à pupila. Fonte: http://www.connectionworld.org/hiroshima-como-voce-nunca-viu/


Neste mesmo dia [6 de agosto], em 1945, os Estados Unidos demonstraram estar falidos em termos morais, como a máquina nazista que tinha sido há pouco conquistada e o regime soviético com o qual tinham sido aliados. Sobre Hiroshima, e três dias depois sobre Nagasaki, explodiram um dispositivo atômico, a arma de genocídio mais eficiente da história humana. A explosão matou milhares de homens, mulheres e crianças. Foi um ato de aniquilação em massa indesculpável tanto estratégica quanto militarmente. Os japoneses estavam à beira de se renderem. Hiroshima e Nagasaki não tinham importância militar. Foi um crime de guerra pelo qual ninguém foi jamais julgado. As explosões, que foram o ponto culminante de três séculos de física, assinalaram a ascendência do técnico e do cientista como os nossos mais potentes agentes de morte.

“Na Segunda Guerra Mundial”, Auschwitz e Hiroshima mostraram que o progresso através da tecnologia fez escalar os impulsos destrutivos do ser humano numa forma mais precisa e incrivelmente mais devastadora”, disse Bruno Betttelheim. “Os campos de concentração com suas câmaras de gás, a primeira bomba atômica… nos confrontaram com a dura realidade da morte esmagadora, não tanto a própria morte – esta, cada um de nós deve enfrentar, mais cedo ou mais tarde e, por mais inquietante, a maioria entre nós consegue manter sob controle seu próprio medo – mas a desnecessária e intempestiva morte de milhões de pessoas… O progresso não somente fracassou em preservar a vida, como privou milhões de pessoas de suas vidas, mais eficazmente que tinha sido possível antes. Quer reconheçamos isso ou não, depois da Segunda Guerra Mundial, Auschwitz e Hiroshima se tornaram monumentos da incrível devastação que o homem e a tecnologia juntos produziram

A explosão atômica, detonada para, em grande medida, enviar uma mensagem à União Soviética, era um lembrete de que a ciência é moralmente neutra. Ciência e tecnologia servem as ambições da humanidade. E poucos nas ciências enxergam além das pequenas tarefas que lhes são estipuladas por corporações ou governos. Eles empregam suas artes obscuras, com frequência cegamente quanto às consequências, para cimentar sistemas de segurança e controle, assim como sistemas de destruição ambiental que resultarão em escravização coletiva e extermínio em massa. Se quisermos nos desviar do colapso ambiental, devemos nos opor a muitos desses experts, cientistas e técnicos cuja lealdade é para com instituições que lucram com a exploração e a morte.

Durante as cinco últimas décadas, cientistas e técnicos nos Estados Unidos construíram 70.000 armas nucleares a um custo de US$5,5 trilhões. (A União Soviética tinha um arsenal nuclear com capacidade similar.) Até 1963, segundo Seymour Melman, professor da Columbia University, os EUA tinham capacidade de aniquilar as 140 principais cidades da União Soviética mais de 78 vezes. Ainda assim, continuamos a manufaturar ogivas nucleares. E aqueles que questionavam publicamente a racionalidade desse acúmulo nuclear maciço, como J. Robert Oppenheimer, que no laboratório do governo de Los Alamos, Novo México, tinha supervisionado a construção das duas bombas usadas no Japão, eram com frequência e zelosamente perseguidos, com o pretexto de serem comunistas ou simpatizantes do comunismo. Tratava-se um plano de guerra que pressupunha um ato calculado de enorme e criminoso genocídio. Construímos mais e mais bombas com o único propósito de matar milhões e milhões de pessoas. E aqueles que as construíram, com poucas exceções, nunca pararam para pensar em suas criações suicidas.

“O que pensar de uma civilização que sempre considerou a ética como uma parte essencial da vida humana [mas] que não foi capaz de falar sobre a perspectiva de matar quase todo mundo, exceto em termos prudenciais ou em termos teóricos de jogo?” Oppenheimer perguntou depois da Segunda Guerra Mundial.

Max Born, o grande físico e matemático britânico-alemão que foi fundamental no desenvolvimento da mecânica quântica, em suas memórias deixou claro que desaprovava o trabalho de Oppenheimer e de outros físicos que construíram as bombas atômicas. “É gratificante ter tido pupilos tão espertos e eficientes”, Born escreveu, “mas eu gostaria que eles tivessem mostrado menos esperteza e mais sabedoria”. Oppenheimer respondeu ao seu velho professor. “No decorrer dos anos, senti uma certa desaprovação de sua parte pelo meu trabalho. Isso sempre me pareceu bastante natural, já que se trata de um sentimento que compartilho.” Mas, é claro, era tarde demais.

Foram a ciência, a indústria e a tecnologia que tornaram possível a matança em escala industrial do século XX. Essas forças ampliaram a inata barbárie humana. Elas serviram o imoral. E há muitos cientistas que continuam a trabalhar em laboratórios em todo o país, em sistemas de armamentos que têm a capacidade de exterminar milhões de seres humanos. Será esse um empreendimento “racional”? Será que é moral? Será que ele faz avançar a espécie humana? Será que ele protege a vida?

Para muitos de nós, a ciência suplantou a religião. Acalentamos uma fé primitiva no poder divino da ciência. Como o conhecimento científico é cumulativo, embora moralmente neutro, isso dá a ilusão de que a história e o progresso humanos também sejam cumulativos. A ciência é, para nós, o que os totens e as fórmulas encantatórias eram para nossos ancestrais pré-modernos. É pensamento mágico. Alimenta nossa arrogância e senso de direito divino. E confiar no seu terrível poder significará nossa extinção.

O mito do Iluminismo do século XVII do progresso humano através da ciência, razão e racionalidade deveria ter sido obliterado para sempre, com a carnificina da Primeira Guerra Mundial. Os europeus testemunharam o suicídio coletivo de uma geração. As visões mais sombrias da natureza humana foram materializadas nas obras de Fyodor Dostoevsky, Leo Tolstoy, Thomas Hardy, Joseph Conrad e Frederick Nietzsche, antes que a guerra encontrasse sua expressão moderna no trabalho de Sigmund Freud, James Joyce, Marcel Proust, Franz Kafka, D.H. Lawrence, Thomas Mann e Samuel Beckett, juntamente com os compositores atonais e dissonantes como Igor Stravinsky e pintores como Otto Dix, George Grosz, Henri Matisse e Pablo Picasso. Esses artistas e escritores compreenderam que o progresso humano era uma piada. Mas houve muitos mais que adotaram entusiasticamente as novas visões utópicas de progresso e glória, propagadas por fascistas e comunistas. Esses sistemas de crença desafiavam a realidade. Fetichizaram a morte. Procuraram utopias inalcançáveis por meio da violência. E capacitados pela ciência e tecnologia, mataram milhões de pessoas.

Os motivos humanos são muitas vezes irracionais e, como notou Freud, contêm poderosos anseios de morte e autoimolação. A ciência e a tecnologia potencializaram e ampliaram os desejos de guerra, violência e morte. O conhecimento não liberou a humanidade da barbárie. O verniz civilizado apenas mascarou as ânsias sombrias e rudimentares que afligem todas as sociedades humanas, inclusive a nossa. Freud temia o poder destrutivo desses impulsos. Ele advertiu em “A Civilização e seus Discontentes” que se não conseguíssemos regular ou conter esses impulsos, os seres humanos, assim como os estoicos previram, se consumiriam numa ampla conflagração. O futuro da raça humana depende de nomear e controlar esses impulsos. Fingir que eles não existem é cair na auto-ilusão.
O colapso do controle social e político durante os períodos de tumulto político e econômico faz com que esses impulsos passem a reinar supremos. Nossa primeira inclinação, como Freud observou corretamente, é não nos amarmos como irmãos e irmãs, mas “satisfazer [nossa] agressividade contra [o nosso próximo], para explorar sua capacidade de trabalhar sem recompensa, para usá-lo/a sexualmente sem seu consentimento, agarrar suas posses, humilhá-lo/a, causar-lhe dor, torturá-lo/a e matá-lo/a”. A guerra na Bósnia, com a violência das milícias sérvias, campos de estupro, centros de tortura, campos de concentração, cidades arrasadas e execuções em massa, foi um dos numerosos exemplos da sabedoria de Freud. Freud sabia que, na melhor das hipóteses, podemos aprender a conviver com isso, regular e controlar nossas tensões e conflitos interiores. A estrutura das sociedades civilizadas estaria sempre repleta dessa tensão interior, ele escreveu, porque “… o instinto natural agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e de todos contra cada um, opõe este programa de civilização”. O fardo da civilização vale a pena. A alternativa, como Freud sabia, é a autodestruição.

Um mundo racional, um mundo que protegerá o ecossistema e construirá economias que aprendam a distribuir a riqueza, em vez de permitir que uma elite predatória a concentre, nunca será desenvolvido por cientistas ou técnicos. Quase todos eles trabalham para o inimigo. Mary Shelley nos advertiu quanto a nos tornarmos Prometeu, enquanto procuramos desafiar o fado e os deuses no domínio da vida e da morte. Seu Victor Frankenstein, quando sua criação de 8 pés de altura, feito em parte de pedaços de corpos retirados de sepulturas, veio sinistramente à vida, teve a mesma reação que Oppenheimer, quando o cientista americano descobriu que sua bomba tinha incinerado escolares japoneses. O cientista Victor Frankenstein viu o “enfadonho olho amarelo” que sua criatura abriu e um “esbaforido horror e repugnância” preencheu seu coração”. Oppenheimer disse, depois da primeira detonação da bomba atômica no deserto do Novo México: “Lembrei dos versos da escritura hindu, o Bhagavad-Gita. Vishnu tentando persuadir o Príncipe de que ele deveria fazer seu dever e, para impressioná-lo, toma sua forma de múltiplos braços e diz: ‘Agora me tornei a Morte, o destruidor dos mundos’. Suponho que todos nós pensamos nisso alguma vez”. O crítico Harold Bloom, com palavras que poderiam ser aplicadas a Oppenheimer, chamou Victor Frankenstein de “um idiota moral”.

Todas as tentativas de controlar o universo, de se fazer passar por Deus, de nos tornarmos os árbitros da vida e da morte, têm sido executadas por idiotas morais. Eles incansavelmente fazem avançar, exploram e saqueiam, aperfeiçoando suas terríveis ferramentas de tecnologia e ciência, até que suas criações os destroem e nos destroem. Eles fazem as bombas nucleares. Eles extraem petróleo das areais betuminosas. Eles transformam as Apalaches em terrenos baldios para extrair carvão. Eles servem os males do globalismo e das finanças. Eles operam o setor dos combustíveis fósseis. Eles inundam a atmosfera com emissões de carbono, destroem os oceanos, derretem as calotas polares, fazem desencadear as secas e as enchentes, as ondas de calor, as tempestades anômalas e os furacões.

Agora me tornei a Morte, o destruidor de mundos.

Robert Oppenheimer – Eu me Tornei a Morte, o Destruidor de Mundos!
http://youtu.be/-yf1UuTpkuo

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