Crônica de uma morte anunciada

Por: Sandro Moiso
Fonte: carmillaonline publicado em 28/6/2012
Tradução: Mario S. Mieli



Estão sendo recolhidos em toda parte.
No México, em Roma, em Bruxelas.
Às vezes são dezenas, outras vezes apenas quatro, ou então somente um que sofre e fala por todos.
A vigília daquele que já entregou a alma a Deus mas que, de vez em quando parece acordar, já começou, enquanto médicos e especialistas ainda se apressam em volta do cadáver para impedir pelo menos uma demasiada rápida e desagradável decomposição.

Como em um drama elizabetano, o clima é sombrio.
Parece sentir-se o odor da morte no ar, mesmo se velas e incenso são acendidos em todas as partes para esconder o aroma ao mesmo tempo ácido e adocicado.
O público está envergonhado, assustado, confuso. As imagens roubadas das igrejas sicilianas, onde estão conservadas as múmias dos falecidos, lotam as mentes de cada um, como num pesadelo fílmico de Werner Herzog.

“Éramos como vocês, vocês serão como nós”, parecem advertir as imagens da televisão, os jornalistas canalhas e homens políticos dedicados ao latrocínio e à traição, através de palavras ameaçadoras e, ao mesmo tempo, desesperadas.
Não se sabe se a peste que causou o fim precoce e inesperado do caro falecido chegou do oeste com o vírus de Lehman ou do oriente, com um vírus grego.



Entretanto, ao redor da coluna infame, procuram-se os ungidores, preparam-se as estacas para o sacrifício, enquanto os poupadores encarregados de transportar e enterrar o doente se agitam pela cidade procurando retirar dos bancos moedas putrefatas e capitais já volatizados.
Os camelôs gritam que o euro morreu e que é preciso abandoná-lo, outros anunciam que, ainda que morto, precisa ser ressuscitado de qualquer jeito.

Os exorcistas no governo declaram ter curas formidáveis: lixo de papel multiplicado por centenas de bilhões para os cofres transformados em câmaras mortuárias e cortes, tantos, aos funcionários públicos, aos trabalhadores e seus salários. Enquanto o sangue jovem deveria ser ainda um medicamento milagroso para a retomada do Lázaro monetário.

“Levanta e anda”, obstinam-se a dizer, sem parar de brigar entre si, em seus sepulcros embrancados, os senhores das finanças, do poder e da guerra. Mas o brinquedo quebrou, não funciona mais. Entre molas e engrenagens dispersas no chão do quarto de uma criança curiosa e rancorosa, choram e se apressam fingindo saber como ter um remédio para tudo. O importante é que o público esteja assustado, mas, ao mesmo tempo, que creia nos sacerdotes e bruxos da religião do capital, da poupança e do salário.

Aqueles que gritam a morte do velho deus monetário europeu vagueiam desbandeirando novos ídolos: a lira, a ameixa, moedas locais e comunais. Outro lixo de papel, útil somente para não fazer perder a confiança no dinheiro e no mercado. Podemos nos insultar, nos bater, atirar uns contra os outros, mas não renunciemos à única verdadeira fé: aquela do capital e de seu fetiche universal.



Todavia, é justamente ele que morreu definitivamente. Morto e sepultado que, como num velho livro de horror de Chelsea Quinn Yarbo, não quer e não sabe ser isso mesmo. Que se faça referência ao euro, ao dólar, ao yen ou ao yuan, o sistema baseado na troca mercantil acabou. Chega, stop, fim dos jogos.
Ainda assim, jogadores compulsivos se precipitam à mesa de jogo, esperando num último lance de sorte.


As fichinhas são os salários dos trabalhadores, suas aposentadorias, seus filhos, suas esperanças.
Parafraseando Marx: a classe operária ou luta ou é uma fichinha. Nas mãos de vários jogadores: os financistas de ataque, os banqueiros de estado, os governos, os sindicatos e os políticos cinza, todos esfomeados de suor operário como zombies.
Que se recusam a morrer junto com seu deus cego e idiota que, como num conto de Lovecraft, dança nu no centro do mundo ao som de uma cacofonia de mídias enlouquecidas.




O tempo do fim do capital e de seus cantores não só chegou, mas já está superado e só uma gigantesco encantamento midiático pode fazer com que milhões de pessoas continuem a se preocupar com aquilo que já perderam, sem verem tudo aquilo que poderiam ganhar.
E não estamos falando do fracasso eleitoral de Syriza na Grécia, cujos medos cuidadosamente dosados e difundidos pela UE e pela mídia contribuíram a derrotar.

Em tempo de campeonatos europeus, e não só futebolísticos, a bola está murcha e nenhum sopro poderá torná-la redonda e adapta ao jogo. O problema é que se continua a jogar, “dando pontapés ao vento” como numa balada de De André. Talvez uma guerra europeia ou mundial poderia trazer de volta a bola à sua justa pressão, mas se analisamos os ciclos históricos de acumulação e domínio imperialistas percebemos que estão fadados a ser progressivamente sempre mais breves.

Quantos séculos a Europa empregou para se tornar o centro do mundo?
E em quanto tempo desabaram suas fortunas? E quanto durou “o século americano”? Cinquenta, setenta?
E quanto durará o predomínio chinês?
E a Alemanha, quando entenderá que sua posição, na encruzilhada da Eurásia, a condena ao desenvolvimento e à destruição antes de poder se sobressair, ainda que por uns quinze minutos históricos, sobre o resto do mundo? … Imagine-se então “in saecula saeculorum…”




Incluídas as igrejas e as religiões cujo ópio televisivo, há tempo, no Ocidente, arrancaram o poder de mediação entre o alto e o baixo, entre terra e céu, entre frustração e esperança, entre males terrenos e justiça divina. A esperança no além foi substituída pelas promessas das publicidades.
Guy Debord, demasiadamente cedo suicida, hoje não acreditaria no que estariam vendo os seus olhos.
Espetáculo e publicidade tornaram-se a única forma de comunicação política, econômica e social. Dessa forma, milhões de pessoas ainda podem acreditar que a dívida pública seja o problema e que ela seja constituída das despesas correntes do estado: administração, serviços, saúde, instrução… Todos com a intenção de discutir onde se poderiam ainda efetuar cortes. Imbecis? Ao quadrado!! Ao cubo!!!

“O sistema de crédito público, ou seja, das dívidas estatais, cujas origens podem ser encontradas na Idade Média, em Gênova e Veneza, estendeu-se no período da manufatura para toda a Europa […] A dívida pública – ou seja, a alienação do estado – despótico, constitucional ou republicano – imprime a sua marca à era capitalista.
A dívida pública se transforma em uma das mais poderosas alavancas da acumulação originária. Como por magia, ela confere ao dinheiro, improdutivo, a capacidade de procriar e assim o converte em capital, sem que tenha que enfrentar o risco e o cansaço que, necessariamente, comportam o investimento industrial ou aquele usurário”.

Quem diz isso? Ora… Marx, no capítulo XXIV do primeiro livro do Capital, no ano de 1867. Recomendo que seja removido, já que somos modernos, precisamos de multidões, de cômicos bagaceiros, de economistas presunçosos, e de sindicalistas fervidos… a teoria não serve, não é? Assim, em vez de negar qualquer futuro a um modo de produção falimentar e indolente, preferimos ser corpos sem cabeça, classes sem história e espécies sem futuro.

Onze meses antes de sua morte, Friedrich Engels escreveu a Karl Kautsky: “A guerra entre China e Japão assinala o fim da velha China, a completa, embora gradual, revolução dos fundamentos de sua inteira economia, inclusive a abolição dos velhos vínculos entre agricultura e indústria nos campos a favor das grandes indústrias, das ferrovias, etc. e portanto, o êxodo em massa dos coolies chineses para a Europa: como consequência, uma aceleração, para nós, da debacle e o agravamento dos antagonismos em uma crise. É, de novo, a maravilhosa ironia da história. Somente a China deve ainda ser conquistada pela produção capitalista, mas tal processo levará à impossibilidade de existência dessa última também em nossa pátria…”



Seis semanas depois, Adolf Sorge escrevia: “A guerra na China deu o golpe de misericórdia à velha China. O isolamento tornou-se impossível; a introdução de ferrovias, máquinas a vapor, eletricidade e de indústrias modernas em grande escala tornou-se uma necessidade, pelo menos por motivos de defesa militar. Mas, com ela, também o velho sistema econômico da pequena agricultura camponesa, onde a família produzia por si mesma também os próprios produtos industriais, está se despedaçando, e com ele, o inteiro sistema social que tinha permitido existir uma população relativamente homogênea. Milhões de pessoas serão obrigadas a mudar de vida e a emigrar; esses milhões irão para outros países, entre os quais a Europa, e o farão em massa. Mas assim que a competição chinesa se imporá em grande escala, levará as coisas a um ponto limite seja em nossa nação [a Alemanha] seja nas nações vizinhas [a Inglaterra], e assim a conquista da China por parte do capitalismo fornecerá, ao mesmo tempo, o impulso para a derrubada do próprio capitalismo na Europa e na América” (10 de novembro de 1894).

Muito bem, havia também o outro louco, um só não era suficiente.
Mas o que será que eles fumavam para ter essas visões? Albert Hofmann ainda não tinha nascido e o ácido lisérgico não tinha sido sintetizado… e então o ópio, a cocaína… ou talvez só uma dedicação absoluta à causa da revolução e do capotamento do mais odioso dos modos de produção? Se voltassem a viver por um momento, seria inevitável reencontrá-los, na mesa de uma cervejaria, rindo, zoando e brindando ao fim do monstro.

Porque isso não merecerá mais que um funeral de terceira classe, enquanto milhões de despertados poderão bailar e dançar, tocar e cantar como em um funeral de New Orleans ou ao som da música dos Area e de Demetrio Stratos.
A nós, finalmente, a felicidade e a revolução… aos senhores de hoje o medo, o cansaço e o suor!




“Canto para ti que vens escutar-me
toco para ti que não queres entender-me
rio para ti que não sabes sonhar
toco para ti que não queres entender-me
[…]
Minha metralhadora é um contrabaixo
que te dispara na cara
que te dispara na cara
aquilo que penso da vida.”

(Felicidade e revolução – 1975)


AREA Demetrio Stratos GIOIA E RIVOLUZIONE


Canto per te che mi vieni a sentire
suono per te che non mi vuoi capire
rido per te che non sai sognare
suono per te che non mi vuoi capire […]
Il mio mitra è un contrabbasso
che ti spara sulla faccia
che ti spara sulla faccia
ciò che penso della vita
(Gioia e rivoluzione – 1975)

Nota: Imediata manteve as ilustrações publicadas no post original.

Leave a Reply