‘Dinheiro e Beleza – os banqueiros, Botticelli e a fogueira das vaidades.’ – exposição no Palazzo Strozzi, em Florença

A febre do lucro, cegante e contagiosa por Fabrizio Tonello – ver artigo abaixo

Os banqueiros, Botticelli e a fogueira das vaidades. Artistas como Botticelli, Beato Angelico, Piero del Pollaiolo, os Della Robbia, Lorenzo di Credi, Andrea del Verrocchio, Jacopo del Sellaio, Hans Memling – a elite do Renascimento – a mostra associa os acontecimentos econômicos e a arte, com as mutações religiosas e políticas da época. É contada a história da invenção do sistema bancário moderno e do progresso econômico ao qual deu origem, reconstruindo a vida e a economia europeia da Idade Média ao Renascimento. Os visitantes podem, assim, entrar na vida das famílias que tiveram o controle do sistema bancário, colhendo também o persistente conflito entre valores espirituais e econômicos.

Denaro e Bellezza. I banchieri, Botticelli e il rogo delle vanità
http://youtu.be/nTJdCYDBpiU

i-zoom mostra Denaro E Bellezza

A febre do lucro, cegante e contagiosa

Por Fabrizio Tonello
Fonte: Il manifesto 15 de novembro de 2011
Tradução: Mario S. Mieli

Repercorrendo a ascensão e a ruína do banco Médici, a mostra “Denaro e Bellezza. I banchieri, Botticelli e il rogo delle vanità” (Dinheiro e Beleza. Os banqueiros, Botticelli e a fogueira das vaidades), exposta em Florença no Palazzo Strozzi, revela estreitos elementos de afinidade com o que está acontecendo atualmente.

“Fazer negócios era o imperativo do dia. Mas como?” A pergunta que obceca os bancos Goldman Sachs e J. P. Morgan não é nova. Era a mesma pergunta que também se faziam, seis séculos atrás banqueiros florentinos, como os i Bardi, os Peruzzi ou os Médici e a resposta não era muito diferente daquela encontrada por Wall Street: “Esses homens tinham boas relações com os governantes locais e estavam em posição de negociar empréstimos para reis e duques com dificuldades financeiras de prosseguir somente com as entradas fiscais; empréstimos que, na maioria das vezes, eram reembolsados consentido ao prestador florentino de coletar os impostos ou as tarifas alfandegárias por conta do governo”. Assim escreve Tim Parks em um de seus textos introdutórios à mostra “Denaro e bellezza. I banchieri, Botticelli e il rogo delle vanità” (Dinheiro e Beleza. Os banqueiros, Botticelli e a fogueira das vaidades), em exposição até 22 de janeiro no Palazzo Strozzi de Florença (catálogo de Giunti, organizado pelo próprio Tim Parks e pela historiadora da arte Ludovica Sebregondi, pp. 281, euro 38). Uma mostra na qual o pequeno florim de outo (não maior que uma moedinha de 5 centavos de euro) resplandece com toda a força, ao lado dos quadros mais inquietantes de Botticelli, como “A calúnia” – extremamente útil, portanto, para refletir-se que não há muito de novo na crise financeira atual. (E, de resto, a demonstração de que as ‘receitas’ dos banqueiros são aplicadas a longo prazo, basta pensar que em Chicago, quando se enfia uma moeda no parquímetro, ela acaba diretamente nos cofres do J. P. Morgan, hoje e nos próximos trinta anos).

Tesouros nos céus

O dinheiro não é um problema moderno: dois mil e quinhentos anos atrás, o grego Teógnis refletia amargamente sobre a única virtude – areté – valorizada por seus contemporâneos: “Eis a única qualidade que tem valor para a massa dos homens: o dinheiro. De nada serviria todo o resto: nem ser sábio como Radamanthys ou saber mais que Sísifo”. De Sísifo, filho de Éolo, dizia-se que era o único a ter conseguido descer ao Inferno e sair, graças às suas belas palavras: o dinheiro, portanto, é mais persuasivo de quem soube trapacear até as potências das Trevas.

Há dois mil anos, Horácio congratulava o amigo Iccio porque não cedia à “contagiosa febre do dinheiro”, mas continuava ocupado com questões científicas: “as leis que moderam o mar, o que regula o alternar das estações, se as estrelas se movem errando espontaneamente ou impulsionadas por uma força externa, qual escuridão recobre o disco lunar, e o que o faz retornar à luz, ao que visa e qual a dimensão da concórdia discordante entre as coisas”. A carta do poeta latino faz entender, porém, que Iccio (administrador dos bens de Agrippa) estava muito tentado a abandonar a via da sabedoria por aquela da acumulação.

Alguns anos depois, do outro lado do Mediterrâneo, um marceneiro errante dizia a quem se parava para ouvi-lo: “Não acumulem tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem destroem, e onde os ladrões arrombam e futam; mas acumulem tesouros nos céus, onde a traça e a ferrugem não destroem, e onde os ladrões não arrombam nem furtam. (…) Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro.” (Mateus 6,19).

O cristianismo nasceu convidando fiéis a se retirarem do mundo (“acumulem tesouros nos céus”) porque o fim dos tempos era iminente mas, depois do ano mil, tinha se tornado a religião dos papas, dos reis, dos comerciantes e dos banqueiros: a condenação da adoração ao Dinheiro sobrevivia só nas leis que proibiam a usura, ou seja, do empréstimo com juros. Um dos importantes méritos da mostra de Florença é explicar como essa proibição foi contornada sem maiores dificuldades: o nascimento de uma moeda forte como o florim (ouro de 24 quilates) permitiu camuflar os créditos nas operações de câmbio.

O mecanismo era relativamente simples: um empréstimo de 1.000 florins era concedido em troca de uma carta de câmbio descontável, suponhamos, em Londres, especificando uma certa taxa de conversão em libras esterlinas. Em Londres, noventa dias depois, a carta era descontada em libras e reconvertida em florins, com um ganho que correspondia a um juro “justo” sobre a quantia emprestada.

Muitos outros truques eram possíveis, por exemplo, os empréstimos “à discrição” onde os juros estavam camuflados como “doação” espontânea do devedor.

Global ante litteram

O florim nasce em 1252. “Durante todos os séculos XIV e XV” escreve Tim Parks, “os banqueiros florentinos sondaram os limites daquilo que o dinheiro podia conseguir. Compraram o consenso da Igreja e do governo” porque o dinheiro que se gasta para corromper quem tem poder é sempre dinheiro bem gasto. Como observa o comerciante Francesco di Marco Datini (há um belo retrato dele na mostra, de autoria do artista Trombetto) “as doações cegam os olhos dos sábios e mudam as palavras dos justos”. E as figuras cegadas pelo lucro certamente não faltam, na mostra do Palazzo Strozzi: o Prestador sob penhor (uma miniatura do livro das horas do duque de Rohan), Santo Antonio que faz reencontrar no cofre o coração do usurário (predella de Pesellino), Os usurários e O cambista e sua esposa, de Marinus van Reymerswaele, O avaro de Jan Provost.

A atualidade da exposição florentina pode ser entendida sem dificuldades: é a história da ascensão, esplendor e ruína das finanças, protagonizada neste caso pelo banco Médici. Fundado em 1397 por Giovanni de’ Médici, que tinha aprendido o ofício no instituto criado pelo seu primo Vieri, o banco tem uma ascensão espetacular na primeira metade do século XV, sob a direção de Cosme o Velho (o documento de 1435 que reorganiza a empresa está exposto na mostra). A palavra de ordem é globalização: há filiais em Londres, em Bruges, em Genebra, em Lyon, em Roma, Nápoles e Veneza. Os lucros são estonteantes: 10, 20, até 30 por cento ao ano, no caso de Roma, onde os Médici são os tesoureiros dos papas.

Durante décadas, as coisas vão muito bem: empresta-se dinheiro aos reis da Inglaterra, aos príncipes alemães, a quem quer que possa oferecer garantias de poder pagar de volta. E depois é a entrada na política, porque como disse Lorenzo (apelidado de O Magnífico), “em Florença, pode-se viver mal rico, sem o Estado”. Eis o Estado: as finanças podem existir só se forem controladas as instituições, comprando ou intimidando os políticos, constringindo a coletividade a pagar pela sua megalomania (quadros, igrejas e palácios, naquela época, arranha-céus atualmente) e, naturalmente, seus erros (os empréstimos ao rei da Inglaterra no séc. XV, ou à Grécia de hoje), Será justamente Lorenzo que levará o banco à bancarrota, um fim que foi adiado durante algumas décadas, graças ao poder político que conseguiu obter.

A herança dos banqueiros

Será justamente o poder político, no fim, a levar ao crack financeiro: Lorenzo morre e o filho Piero pensa poder sobreviver a Savonarola e à invasão francesa de 1492. Os Médici voltarão em 1512, derrubando a república com a ajuda do Vaticano, mas o banco nunca mais ressurgirá com o porte de antigamente.

A Goldman Sachs tem obtido lucros estonteantes nos quatro cantos do mundo, e protegeu esses lucros colocando seus homens no ministério do Tesouro/ e na Federal Reserve durante décadas: se os banqueiros florentinos deixaram em herança Botticelli (por sinal, seguidor de Savonarola), Wall Street deixa atrás de si o desastre da Grécia, as casas embargadas e os bairros transformados em ruínas nos Estados Unidos.

Para ler o texto original em italiano:
http://temi.repubblica.it/micromega-online/la-febbre-del-guadagno-accecante-e-contagiosa/

Leave a Reply