Camouflage Botticelli (Birth of Venus), 1963-64, por Alain Jacquet
A VÊNUS DE NAGASAKI
por Artur d’Amaru
Errado seria dizer
que a isso se chegou
por causa de uma estética da retaliação.
Vai além, vai muito além…
até o ódio tem limites e se definha
Se a do Botticelli brota única e nua
de concha marinha ativa e primitiva,
e sua pele é sagrada pelo manto da primavera
A de Nagasaki é protótipo múltiplo e precursor
de horrores detonados de concha míssil mercenária termonuclear radioativa
e sua pele é sacrilegamente
material escarnificável.
Matéria escarnificada.
Feita para demarcar e demonstrar
domínio total sobre tudo o que existe.
Também não é só cultura da vingança.
Aparência de integridade cívica-militar
para camuflar a desintegração moral e nuclear.
Se a do Botticelli era o despertar do humanismo renascentista e da mulher no centro do universo,
a de Nagasaki é só prólogo das Novas Sataníadas
onde qualquer noção de humano é detonada de partida.
Se a do Botticelli era a elevação
para e por nós idealizada,
a de Nagasaki é o abismo das trevas
ao qual já tínhamos sido intimados.
Afetados pela desnecessariedade da
explosão repugnante
Vitimados pela semeadura de
padecimentos vãos
impingidos por um imp(rop)ério
sem propósitos além de
Deter poder absoluto
de traficar e desferir perversidades.
Se a do Botticelli é flora, fauna e primavera,
a de Nagasaki é plano e modelo de uma
Transdesumanidade cobaia
desfalcada,
mas detalhadamente gerenciada.
A Vênus de Nagasaki é Hibakusha
Desbrotada por detonação gratuita
Eternamente estigmatizada por
funesto experimento diabólico-nuclear
Perene portadora de
imediata discriminação universal.
Testemunha viva da derrota
Do que é humano ser.
Se a de Botticelli era musa
A de Nagasaki é m’usa
Bastou uma apóstrofe
Para fissurar o átomo.
E corromper, adulterar, depravar
uma espécie de vida que, à força,
passaria a ser feita para não vingar,
para desflorescer,
degenerar-se, esmolambar
sem ter óbolo algum em baixo da língua
para poder pagar Caronte pela viagem ao além.