>> Mensagem aos “heroicos” trucidadores de crianças, por Mauro Santayana

Mensagem aos “heroicos” trucidadores de crianças

Por: Mauro Santayana
Fonte: Jornal do Brasil 08/11/2011




Circula pela internet vídeo de alguns segundos, que mostra duas crianças de Sirte sendo atendidas em algum lugar que lembra um ambulatório improvisado. São o menino, de 5 ou 6 anos, e a menina, de idade parecida. O menino grita de dor, ainda que tenha as duas mandíbulas, o queixo e a garganta dilacerados, provavelmente por estilhaços de bomba. A menina está em silêncio, olhando o nada, como se o nada pudesse explicar-lhe o sofrimento do menino e o seu calcanhar arrancado, o pé quase pendente da perna. O leitor Eugênio, enviou-me os links de acesso às imagens:

http://grupobeatrice.blogspot.com/2011/11/o-jornal-nacional-nao-mostrou.html#links

e

http://www.youtube.com/watch?v=hobDCtmx0xo&feature=player_embedded&oref=http%3A%2F%2Fs.ytimg.com%2Fyt%2Fswfbin%2Fwatch_as3-vflrEm9Nq.swf&skipcontrinter=1

Como veterano jornalista, que cobriu crimes bárbaros e acidentes terríveis, e a dura experiência de guerras civis e invasões militares — mas, acima de tudo, como pai e avô — confesso que nada foi tão fundo na minha tristeza do que a imagem das crianças de Sirte. Das ainda vivas, e das mortas da família Khaled. Foi possível imaginar os milhares de outras crianças, mortas e feridas, na Líbia, no Afeganistão, no Iraque, na Palestina.

Diante das cenas, revi o presidente Barack Obama, sua elegante mulher e suas duas filhas, lindas, sorridentes, que o pai presenteou com um cão, para que o fizessem passear pelos jardins da Casa Branca. Revi-as viajando pelo mundo, e visitando escolas na África e na América Latina. E fiquei sabendo da alegria de monsieur Sarkozy em ser novamente pai. Em sua relativa juventude, marido de uma cantora jovem, famosa e bela, o presidente da França terá, é o que todos esperamos, anos felizes ao lado da filha. Irá conduzi-la pela mão entre os canteiros dos jardins de Paris, e, se as coisas da política lhe permitirem, a ela contará passagens de sua própria infância. Ouvirá a mulher, com sua voz magnífica, cantar-lhe as mais belas berceuses. E quando ela ficar mocinha, se enlevará com as canções de sua mãe, como Quelqu’un m’a dit, e seus versos abertos: “Alguém me disse que nossas vidas não valem grande coisa/ Passam em um instante, como fenecem as rosas”.

A ideia que associa a morte das crianças — no caso, uma menina — à brevidade das rosas, é de Malherbe, o grande poeta francês dos séculos 16 e 17, a quem se atribui a invenção do francês literário. Ele escreveu seu famoso poema para consolar um amigo que perdera a filha de 6 anos, e resume a homenagem à menina, que se chamava Rose, no verso conhecido: “E, rosa, ela viveu o que vivem as rosas, o espaço de uma manhã”.

Uma criança morta, muçulmana ou judia, negra ou nórdica, de fome, de endemias ou de acidentes, em qualquer parte do mundo, é uma violência insuportável contra a vida. As crianças mortas em guerras são insulto às razões da vida, e uma grande dúvida sobre a existência de Deus — a não ser a do Deus dos Exércitos.

David Cameron, parceiro e competidor de Sarkozy na aventura líbia, é um pai que sofreu a dolorosa perda de um filho, Ivan, também aos 6 anos — em fevereiro de 2009 — acometido de uma forma rara de epilepsia. Não é possível que, diante das cenas de Sirte, e na lembrança do filho, não sinta, no coração, o peso de sua culpa, ao usar as armas britânicas, nos bombardeios sistemáticos contra as cidades líbias — entre elas, Sirte, a que mais sofreu, e sem trégua, com as bombas e mísseis.

A Líbia e as outras nações da região foram bombardeadas e ocupadas pelas nações mais poderosas do Ocidente, porque têm suas areias encharcadas de petróleo. O petróleo, na visão dessas nações, é um dos direitos humanos dos ricos e bem armados.

A espécie humana só sobrevive porque ela se renova em cada criança que nasce. Como nas reflexões de Riobaldo, em uma vereda do grande sertão, diante da paupérrima mulher que dá à luz: “Não chore não, dona senhora; uma criança nasceu, o mundo começou outra vez”.



Os doutores em jornalismo atual, que recomendam textos frios, podem ver nessas reflexões o inútil sentimentalismo de um veterano — diante da realidade do mundo. Mas houve um tempo, e não muito distante, em que o jornalismo era solidário com o sofrimento dos mais débeis, com os perseguidos e famintos de pão e de justiça.

Enfim, God bless America. E God save the Queen.

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