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Mario S. Mieli

Lembra daquela tia metida que chegava em sua casa e ficava metendo o bedelho em tudo que não lhe dizia respeito? Sim, aquela mesma, que revistava às escondidas os criados-mudos, os armários e as gavetas de sua casa para ver se podia encontrar alguma prova incriminatória, algum indício de contravenção, alguma caveira escondida que poderia ser usada, um dia, contra você?

Aquela que espichava o olho para ler a carta que não era para ela, que alongava o pescoço para ouvir a conversa da sala ao lado, que arfava o nariz para detectar cheiros e odores suspeitos, que disfarçava como carinho o toque subreptício e dissimulado, útil para lhe permitir uma avaliação tátil das superfícies inimigas?

Sim, aquela, que fazia a ronda da casa, simplesmente para verificar se “estava tudo em ordem”, “tudo segundo os conformes”, encontrando sempre uma finíssima camada de pó em cima da cômoda, ou achando que a cama não estava tão bem feita, ou que a cozinha poderia estar mais asseada? Sim, aquela que fazia todo o tour doméstico só para verificar se você estava usando de fato aquele abominável presentinho de Natal que ela lhe tinha dado, ou se você estava escondendo algum tesouro proibido debaixo da cama?

Lembra da imutável pose de caga-regras que ela assumia, ficando até com torcicolo de tanto olhar para tudo e para todos com insolente superioridade, sempre de cima para baixo, nunca deixando de manifestar seu profundo desprezo e desdém por tudo que via e ouvia? Ela era o próprio mistério da malditíssima trindade da reprovação, condenação e rejeição encarnadas, não?

Lembra que seu comportamento não era só falta de afabilidade e simpatia, mas malévola impetuosidade em sua arrogância, vaidade e atrevimento? Ah! Que vontade de fazer figura tinha aquela tia! E que figurinha maçante e inoportuna conseguia encenar sempre, infalivelmente!

Quando mal se aproximava, até os bichinhos da casa se escondiam e as plantinhas do quintal desvaneciam. As flores murchavam, o ar ficava insuportavelmente denso, ocorriam sinistros acidentes e incalculáveis imprevistos. O protótipo da tia baixo-astral.

E diante de tanta cagança azeda emanada daquela constante cara de tia-maria, quantas atitudes cagarolas e cagalhonas o resto da família demonstrava… Sem querer, tinham fetichizado a tiazinha má-humorada, e ela tinha se tornado um verdadeiro ícone de inteções malfazejas. Tinha virado uma tia-totêmica.

A bruxa dos contos de fada tinha se materializado na tia-zica, e ai de quem não comesse de suas maçãs contaminadas. Nefastas. Agourentas. Verdadeiros encostos impossíveis de embuchar e de desembruxar. Mas porque era compulsório comer as maçãs da tia?

Ora, em nome do “respeito aos mais velhos”, em nome da “paz e da harmonia familiar”, mas no fundo, no fundo, para impedir a todos de amadurecer, perpetrando geneticamente o sentimento do medo em relação aos que se outorgam a procuração das almas dos antepassados. A Tia exalava os perpétuos comandos do: Não responder! Não argumentar! Não polemizar! Contrariar a tia era um pecado mortal.

Todos tinham que entuchar as maçãs envenenadas da tia. Algumas maçãs vinham na forma de tortas de afrontas. Outras recicladas em sucos completamente enturvados e com prazo de validade vencido. Outras ainda metamorfoseavam-se em carregados strudels que entufavam o estômago e entupiam a alma. O famoso strudel da tia… Mas tudo devia ser engolido a seco, sem contestação, e incorporado sem queixas, nem que fosse por entubação, para não melindrá-la.

A tia era muito mais que xereta. Era cagüeta, espiã, delatora.

Seu maior prazer? Imiscuir-se onde não era chamada. Sua maior especialidade? Colocar os uns contra os outros. Seu tempo e passa-tempo? Viver confabulando, tramando, urdindo intrigas. As maquinações da tia eram verdadeiras semeaduras de indisposições, conspirações de desavenças, cabalas de animosidades. Tia dedo-duro. Tia Al-ca-güeta!

Para ela, nada escapava ao seu patético controle de cagagésimo grau. Mas, na realidade, nada faria qualquer diferença em seu rosário deslavado de mentiradas, em seu bafo de parenta fraudolenta, em sua mente de doente demente.

E aí? Fazia muito tempo que você não pensava na tia? Ou será que estava achando ter-se finalmente livrado do seu fantasma?

Mas que desvario! Que ilusão!

A TIA está de volta e mais por cima e mal-assombrada do que nunca!!! E fez sua re-estréia em versão aprimorada, com upgrade total! Reciclada, vitaminada, capacitada e muito mais TIA do que nunca!!!

A TIA, que é a irmã predileta do Big Brother, foi convidada para ser, simplesmente, a madrinha da Sociedade de Controle! E, para variar, seu timing é perfeito. A TIA aproveitou o pretexto da guerra contra o terrorismo para virar projeto pentagônico e está, nada mais nada menos, dando cria a um banco de dados internacional para, finalmente, botar uma coleirinha eletrônica permanente em todos nós. (Sim, priminhos e priminhas, agora ela virou a TIA de nós todos!)

É claro que, como tudo o que a TIA faz, seu projeto é secreto, sigiloso, misterioso, ardiloso. Mas o que se sabe com certeza é que a TIA quer coletar todo o tipo de informações sobre todos nós, para ter um controle total e absoluto de nossas vidinhas. A TIA almeja o verdadeiro controle e supervisão universais.

Para conseguir tal proeza, a TIA tem aprofundado uma amizade antiga e profícua com a Ciência, a Tecnologia e a Política, velhas comadres sempre prontas a ajudar mesmo quem não precisa ou não quer a sua ajuda. Foi tricotando juntas que, justamente, vislumbraram uma agenda mais nova e mais atualizada para os nossos mundinhos globalizados.

Cansada de só espreitar pelas frestas das venezianas e de ouvir atrás das portas, a TIA se informatizou completamente. Além de todos os nossos dados pessoais e de todos os nossos documentos, ela agora sabe de praticamente tudo o que fazemos, dizemos e pensamos – nossos saques e depósitos nos caixas automáticos, as transações que efetuamos com nossos cartões de crédito, os livros que compramos nas livrarias, os livros que retiramos nas bibliotecas, a marca de papel higiênico com o qual limpamos o cu.

A TIA controla todos os telefonemas que damos e recebemos. Em casa, no escritório, no celular. E ela manda gravar tudo. Tudo bem grampeadinho. Tim tim por tim tim. Pela caixa da TV a cabo, a TIA fica sabendo de todos os programas que vemos e até mesmo quando aumentamos o volume do televisor. A Internet, para a TIA, é uma festa. E acha que é de sua conta conhecer detalhadamente todos os sites que visitamos, todos e-mails que enviamos e recebemos e quer até se familiarizar com cada tecla que apertamos. Quem diria que a TIA, um dia, teria gostado de surfar, não é mesmo? Sua prancha de surfe preferida foi apelidada de Carnivore. Sua praia preferida? O Projeto Echelon.

Mas não é só com câmaras de vídeo escondidas e sistemas de gravação sofisticados que a TIA se equipou. Ela passou a ter o gosto da pesquisa, da inovação. E aprendeu novos pontos de tricô com suas caras amigas. Juntas, estão se divertindo como loucas, trançando uma variedade de nós com seus pauzinhos e agulhas.

Se, antigamente, a TIA se contentava com as impressões digitais, os dados fisionômicos, a renovação das carteirinhas, atualmente a TIA tem acesso a todos os nossos dados médicos, nossos dados biométricos, nosso código genético, nosso DNA. E são satélites onipresentes e onipotentes que dão aquela boa espiadela em tudo que fazemos, o que deixa a TIA mais livre para bolar, com suas amigas Ciência, Política e Tecnologia, as novas formas para identificar a nossa íris, registrar os nossos passos, classificar o nosso modo de andar. E cada ligeira oscilação de nossa parte, devidamente captada por uma ampla gama de sensores multifuncionais, acionará um comando satelitar imediato, pré-programado.

Dessa forma, a TIA nem precisa mais se preocupar em introduzir um ‘chip’ subcutâneo em nossos corpinhos físicos para detectar a nossa mínima intenção, o nosso mais sutil movimento. Ela já nos clonou a todos em homus electrônicus, para que o screening, a classificação e a resposta automatizada a nossos impulsos sejam bem mais rápidos. Ora, a TIA sempre gostou de informação, de coleta de dados. Ela só não tinha se vislumbrado no mundo da informática. Agora, a TIA não só conhece todos os nossos sonhos, como tem todas as nossas senhas. Aliás, para ela, viramos todos apenas uma senha. E isso tinha sido desde sempre o seu mais acalentado sonho. E o nosso pesadelo final.

Biotecnologia? Biopolítica? Tecnopolítica? Biométrica?

Bobaaaagemmmm! Essas são só algumas das novas malhas entrelaçadas nas sessões de chá e tricô da TIA com as amigas.

Pois é, quem diria que de bedel da família, hoje em dia a TIA está assim, toda poderosa. E como não podia deixar de ser, ela até já se institucionalizou. Parece que agora, quando alguém se dirige a ela dizendo:

– Oi, TIA!

Ela responde, gloriosa e empolada:

– TIA?! Total Information Awareness, please!!!

* * * *

Alguns links e hyperlinks para quem quer provar o ‘strudel’ da TIA:

http://www.darpa.mil/iao/

http://www.darpa.mil/iao/TIASystems.htm

http://www.geocities.com/totalinformationawareness/

http://www.wired.com/news/conflict/0,2100,54342,00.html

http://www.cato.org/dailys/12-03-02.html

Esses querem comprar uma briga com a TIA:

http://www.warblogging.com/tia/

http://action.eff.org/action/index.asp?step=2&item=2348

http://www.public-i.org/dtaweb/report.asp?ReportID=484

http://www.alternet.org/story.html?StoryID=14656

Animação do Fiore sobre a TIA:

http://www.villagevoice.com/issues/0248/fiore.php

Carnivore:

http://www.fbi.gov/hq/lab/carnivore/carnivore2.htm

http://www.rhizome.org/carnivore/

http://stopcarnivore.org/

Echelon:

http://www.heise.de/tp/english/inhalt/te/6929/1.html

http://fly.hiwaay.net/~pspoole/echelon.html

http://www.zdnet.co.uk/news/specials/2000/06/echelon/

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