por Mario S. Mieli
Nas cidades multi-étnicas, geralmente prosperam as atividades que instigam à reciclagem do imigrante, acelerando o infinito processo de torná-lo o quanto antes mais conforme à ética e à estética paradoxalmente globalizadas e locais.
Nem sempre o recém-chegado é consciente do desejo de se parecer o mais possível com os outros eus do lugar. E nem sempre quer assimilar-se, ou tão depressa, ou tão completamente. Mas geralmente, até a pequena vaidade de manter pelo menos alguns de seus traços étnicos próprios ou de guardar os rituais de sua tribo de origem é implacavelmente varrida com o gosto e as circunstâncias culturais diferentes do primeiro café que toma, ou sobretudo, com o primeiro corte de cabelo a que o indivíduo se submete, passando de sujeito a objeto.
Basta ver como entram e como saem os multi-étnicos fregueses do Multicultural Unisex Beauty Institute, nome pretensioso de um estabelecimento, misto de salão de beleza e barbearia, de Nova York. Um confronto do tipo oferecido pelas fotos “antes” e “depois” de passar pelo Salão daria um ensaio hilariante sobre os efeitos da afetação involuntária nos sujeitos globalizados em objetos. Na primeira vez que visitam o Instituto de Cabeleireiros e Barbeiros, entram como clientes únicos e diversificados provenientes dos cinco continentes do globo e ao saírem, partem todos com o mesmo corte, primeiro passo do inevitável processo de assimilação forçada ao look local pasteurizado.
E é, provavelmente, no próprio salão que descobrem pela primeira vez que, diferentemente do resto do mundo, nas escolas dos Estados Unidos se aprende que os continentes do mundo são seis e não cinco – por aqui, as Américas são dois continentes e não um – quem sabe um antigo truquezinho para dissociar e diferenciar definitivamente as Américas Central e do Sul daquela do Norte (ninguém sabe, e quem sabe não acredita firmemente que o México esteja mesmo no lado Norte das Américas, bem aquém do canal do Panamá…). Miami é a fronteira mental que separa na realidade a prosperidade do Norte up here da paupérie do Sul down there, apesar e, quem sabe, sobretudo devido à soi-disant globalização.
Já outros aspirantes convictos da assimilação integral chegam munidos de planos detalhados e específicos para a célere promoção da própria transgênese.
E isso o mais rápido possível. Quantos e quantas chegam franzinos e mal-nutridos, excessivamente peludos e morenos para os padrões setentrionais e num instante transcendental potencializado, graças à ação sintética de anabolizantes e água oxigenada e depilação obsessiva, dão a primeira impressão de se terem amoldado, camaleonicamente, à paisagem humana prevalecente.
Outras vezes, é o contrato de trabalho que especifica aquilo que deverá ser assimilado, dissimilado ou dissimulado. Carmen Miranda, por exemplo, obrigada a usar turbante e a falar com eterno sotaque hispano carregado quando se apresentava em público, para manter sempre a mesma imagem, certa vez, em famoso programa de televisão, o apresentador J. Carson lhe pediu para tirar o turbante, para provar que tinha cabelos. Carmen disse que não podia, devido ao seu contrato com a Fox. Depois de muita insistência, retirou o turbante e mostrou a sua bela cabeleira. Acrescentou, contudo, num inglês fluido e sem sotaque: “Vejam, apesar desses serem os meus cabelos, essa não é a minha cor original. O contrato também me obrigava a clarear os meus cabelos bem morenos. E terminou com o inteligente trocadilho: Mas como Banana is My Business…Nice to bleech you!)
Um estudante de medicina de Santo Domingo que conheci numa festa tinha os cabelos e os olhos castanhos e muitos pelos na mão. Ao revê-lo em outra festa, um ano depois, vi que tinha os cabelos aloirados, os olhos azuis e nenhum pelo nas mãos ou braços. Perguntei o que tinha acontecido, porque tinha resolvido mudar a coloração de olhos e cabelos. O ex-estudante-agora-médico-graduado, não deixando de se mostrar indignado com a minha pergunta ignorante, respondendo: “Mas você não sabe que as pessoas respeitam mais os médicos com cabelos claros e olhos azuis? Não ligo para o meu visual. Mas me ligo naquilo que o cliente se liga. Por isso botei as lentes de contacto. Para ter mais clientes. Para ser mais respeitado como profissional.” E prosseguiu seu argumento recitando as porcentagens reveladas pelas sondagens mais recentes sobre quanto porcento da população confia mais em médicos com olhos azuis, em confronto com os médicos de olhos negros ou castanhos… como é mais fácil conseguir bons empregos e fazer carreira com esses traços físicos… e que, no fundo, essa não deixa de ser a maior das liberdades… poder recorrer da musculação compulsiva até à cirurgia estética, se preciso, para se conformar aos “próprios ideais” senão de beleza, pelo menos de aparência…
Nesse bater de olhos, o assimilado convicto já mudou o próprio apelido, nome e sobrenome, tradições e genealogia. E um exército aparentemente extinto de Marias e Joanas da Silva já se auto-rebatizaram de Jennifer e Jessica, e quem sabe, agora, Britney… Smith… acompanhando a mudança de nome com a adoção voluntária e involuntária de tiques e toques culturais locais, como a recusa de amamentar em público ou o olhar para alguém que fuma com a mesma expressão de desdém e compaixão que se reservava aos leprosos na Idade Média. Benzinho vira sweety, coração passa a ser darling e o que era quente agora é cool.
Tanta programação assimilacionista também envolve um incondicional empenho neurolinguístico para que a transição pareça consubstanciada.
É bastante comum, quando se manifestam com descuido e irreverência e um português sem sotaque a Maria ou o João verdadeiros por trás das Jennifers ou dos Joes programaticamente modificados, que a Jennifer ou o Joe assimilados repitam a mesma frase que acabou de ser dita pela Maria ou pelo João dissimulados, só que com uma forçada anglo de pronúncia. Será que é a Maria e o João revisitando, inoportunos, e sotaqueando da própria Jennifer e do Joe?
Ou, como diz uma amiga minha, mais tentam se desbrasilizar à força e sangue frio, mais transparece a falsa desenvoltura e motilidade do verdadeiro caipira desembaraçado.