>> CONSUMISMO, O ÓPIO DOS POVOS NA ERA DO NEOCAPITALISMO PÓS-MODERNO

CONSUMISMO, O ÓPIO DOS POVOS NA ERA DO NEOCAPITALISMO PÓS-MODERNO


trabalho de Barbara Kruger

Por: HS
Fonte: comedonchisciotte.org 16.11.2011
Tradução: Agência Imediata

Se tivéssemos que atribuir uma definição que pudesse sintetizar as características principais e salientes da era pós-moderna – ou seja, aquela que sucedeu à catastrófica Segunda Guerra Mundial – recorrendo a um termo ou a uma categoria de amplo conteúdo semântico, optaria pelo neocapitalismo fundado sobre o império de um Mercado cada vez mais penetrante e quase omnipresente. Gostaria de não ser mal entendido: não pretendo utilizar o termo Mercado – com o M maiúsculo – para designar um tipo de entidade abstrata, quase metafísica, que transcende as nossas existências.

Mercado indica o espaço e o tempo em que são colocadas as mercadorias e os produtos para serem vendidos e consumidos sem qualquer limite. Estão muito distantes as épocas do capitalismo austero, industrial e produtivista, em grande parte confinado nos mercados internos. O atual e contemporâneo neocapitalismo “terciário”, mercantil, comercial, consumista se impôs, necessariamente, pela expansão inevitavelmente global das multinacionais, das ‘corporations’, dos institutos financeiros internacionais e das grandes empresas comerciais.

O aumento vertiginoso dos investimentos e lucros determina a ampliação e a concentração dos operadores presentes nos mercados que, por sua vez, contribuem para estender as fronteiras do Mercado para potencializar as possibilidades de lucro. Desse modo, cada esfera da vida humana se torna gastável e comprável, como se o mundo tivesse se transformado em um transbordante e monumental supermercado. Ao alargamento dos mercados sem qualquer vínculo ou regra correspondente à idealização e à realização dos sempre novos produtos prontos para um consumo cada vez mais “usa e descarta”. A produção e a venda dos bens essenciais à vida de indivíduos e famílias vem quase substituída pelos bens sempre mais supérfluos que constituem verdadeiros símbolos de status. Os eletrodomésticos acabam por ocupar um espaço cada vez maior nos apartamentos, os automóveis de alta cilindrada invadem ruas e estradas, impõem-se modas e tendências na roupa e no vestuário…

As revoluções eletrônica e informática – e sua comercialização garantida – entram nas casas. Do rádio à televisão, chegamos ao computadores pessoais, passando pelo high tech com os estéreos, os leitores de VHS e de DVD, o fax, etc. A revolução multimídia quase completa o ciclo a partir da invenção da Internet e dos celulares sempre mais modernos, inovadores e ricos em funcionalidades. A liberação do tempo livre abre as portas para setores comerciais e industriais antes relegados às margens. Espetáculo, entretenimento, o “jogo”, etc. levam a altíssimas margens de lucro, dirigindo-se sobretudo aos clientes das faixas etárias jovens.

Fazendo-se as contas, essa suntuosa, hedonista e alegre cidade do Mercado se apresenta como um gigantesco país dos brinquedos onde todas as necessidades podem ser satisfeitas e cada maravilha, cada tipo de divertimento pode ser realizado… Mas quem são os burros que, inevitavelmente, serão conquistados pelas atrações do Mercado? A construção do monumental edifício do Mercado só pode gerar seus próprios inquilinos, os consumidores, que apesar da diversidade de censo, renda e classe social compartilham todos da irreprimível exigência de satisfazer cada necessidade, da mais elementar à mais dispendiosa. Ao consumidor – o comprador e fruidor das mercadorias supérfluas – não interessa o dinheiro como tal, mas como meio para adquirir os objetos dos seus desejos. O ter substitui e se livra do Ser… O consumidor não consegue sente atração e admiração pelos vips, as pessoas do jet set, os politiqueiros, os grandes homens de negócios, os showmen, os apresentadores da TV, os cantores, os diretores de cinema e atores de sucesso, os grandes jogadores de futebol e esportistas em geral, as dançarinas tipo ‘chacretes’, as escorts, etc. porque esses são os “consumidores por excelência”, aqueles que “chegaram lá” podendo permitir-se todo tipo de benesse e luxo, de residências faraônicas a autos esportivas, de caríssimos iates até lindas mulheres. Em vez de se indignar pela exibição desmoderada e paroxística do luxo e do vício, o consumidor se apaixonará pelos fatos associados aos “consumidores por excelência”, com a leitura dos jornais a visão de programas de televisão dedicados à fofoca, à bisbilhotice e aos escândalos. Por mais que não seja possível satisfazer cada tipo de desejo ou necessidade, o “consumidor médio” não deixa de experimentar! Comprará a prazo, dissipando as poupanças que poderiam ser melhor empregadas, vinculando-se a uma situação que produz ansiedade e neurose. Por outro lado, o capitalismo estimula a dívida, a contração ilimitada de hipotecas e empréstimos, o uso dos cartões de crédito, etc.

Comprador cada vez mais irresponsável e compulsivo, o “consumidor médio” se encontra na mesma condição patológica dos viciados em drogas ou, pelo menos, daquilo que precipita uma condição de dependência… Além das drogas e dos narcóticos, poderíamos incluir álcool, cigarros, drogas psicotrópicas, jogos de azar e sexo que, não por acaso, constituem outros mercados remunerativos, os quais são, às vezes, hipocritamente estigmatizados, mas que, definitivamente, uma sociedade neocapitalista fundada no Mercado não pode tolerar, porque cada mercadoria ou produto é acolhido em seus braços e verdadeiramente tudo é comercializável. Por esses simples motivos as máfias e as organizações criminosas que vivem dos lucros obtidos nesses setores se dão tão bem no neocapitalismo. A máfia também é empresa…

Por outro lado, para sobreviver e poder se nutrir da própria ganância, o Mercado – todos os sujeitos “vendedores” que o compõem – necessariamente precisa instilar e amplificar os desejos dos consumidores, persuadi-los de que o prazer só pode ser satisfeito com aquilo que ele pode oferecer. Injetando doses maciças de publicidade – cuja invasividade é demonstrada pela sua presença nos cartazes, nas telas de televisão, nos sites da rede, etc. – ao pobre e inconsciente “consumidor” temos certeza de poder empurrá-lo àquelas despesas que, sozinhas, podem garantir a reprodução do Mercado. De tal maneira ele veste o hábito do ‘pusher’ ou traficante empurrador, que reabastece constantemente os clientes que não podem mais fazer a menos das substâncias narcóticas. Essa condição – a dependência dos consumidores – foi descrito com frequência como um tipo de escravidão – em todas as formas históricas conhecidas – sempre foi consciente e teve noção da própria condição de subordinação, inferioridade e falta de liberdade. As cadeias do escravo são concretas e visíveis, enquanto aquelas do consumidor envolvem devido à sua própria imaterialidade e invisibilidade de aparência “aprazível”. Mesmo quando é capaz de satisfazer os menores desejos, o consumidor não se liberta de uma infelicidade que não consegue explicar. Os espaços se tornam estreitos e o horizonte adquire a consistência do vazio. Envolvido na rede estendida por um amontoado de mercantes, camelôs e vendedores, renuncia inconscientemente à sua liberdade e à sua racionalidade.

Com a última fronteira do Mercado, os produtos financeiros oferecidos pelos institutos financeiros, os consumidores confiaram suas poupanças a artifícios infernais que engordaram os fundos das usuais ‘figuras’ conhecidas que detêm os cordões das bolsas.

A financeirização da economia – com a promessa de lucros e mais valias a serem obtidas nos mercados financeiros – se transforma na mais colossal fraude que a história recorda, porque consumada às expensas dos cidadãos do mundo todo.

Aparentemente, a Crise que sacudiu a população mundial nos últimos três anos teria podido contribuir para o redimensionamento das exigências e das necessidades, abrindo caminho a uma radical transformação do sistema neocapitalista pós-moderno global e do paradigma cultural e econômico do Mercado. O egoísmo e o individualismo hedonista, característicos do consumidor em condições de dependência, poderiam declinar a favor de uma decisiva valorização da dimensão solidária da coletividade e da sociedade, eliminando as tendências desagregadoras e “atomizadoras” inerentes à atual sociedade mercantil e competitiva. Além disso, a natural lei econômica fundada no sujeito “racional”, capaz de fazer a melhor escolha e em seu próprio interesse, adaptando-se a novas situações e conjunturas, sugeriria que o consumidor seja levado a dedicar uma maior quota de despesa para os bens necessários e elementares, em vez dos bens supérfluos… Uma autêntica consciência do alcance, do significado e da dimensão da Crise deveria abranger esses desenvolvimentos e criar as condições para uma mudança autêntica e profunda. Mas como é que estão as coisas, na realidade?

No fluxo constante e ilimitado de imagens, duas séries de sequências me saltam à mente. O primeiro flash: estamos no fim de outubro, em via Riano, no Ponte Milvio (em Roma), onde foi inaugurado um megastore da Trony com uma venda promocional que atrai hordas de cidadãos. A multidão é comparável somente às ocasiões oferecidas pelos jogos de futebol do campeonato e da Champions League, e dos megaconcertos que ocorrem no estádio Olímpico. Os primeiros felizardos que conseguem entrar se estocam sobretudo de aparelhos de televisão e de celulares iPhone. Segundo flash: no começo do mês de agosto, um delinquente foi assassinado pela polícia em Londres, desencadeando uma reação de grupos de jovens e super jovens. É uma cena que, de vez em quando, somos obrigados a assistir, nas metrópoles americanas e europeias: várias cidades inglesas como Manchester, Birmingham e Liverpool descambam para o caos durante alguns dias. Bandas de rapazes e adolescentes, vadios e saqueadores armados de porretes, bastões, barras e facas atacam a polícia e tomam posse de tvs plasma, celulares de última geração, videogames, etc. roubados de megastores e supermercados. Não era uma verdadeira revolta social, mas uma mobilização geral para o roubo organizado por parte de quem, não tendo a carteira suficientemente recheada para poder satisfazer os próprios desejos, decide suprir-se de outro jeito, no jeito mais antigo do mundo.

De diferentes maneiras, esses episódios – se é que podemos etiquetá-los assim – testemunham essa dependência que o atual arranjo neocapitalista aparentemente em crise estimulou e determinou. Destinatários dos condicionamentos publicitários, frangos de linha de montagem educados a ingerir tudo aquilo que os mercados oferecem diariamente, os jovens, em condições cada vez mais precárias e com poucas perspectivas, reagem da mesma forma como lhes ensinaram. Mas será que são mesmo os únicos?

A conclusão é que não basta a simples e limitada “indignação” para se livrar do paradigma do Mercado, sobre o qual se fundamenta o neocapitalismo, para se poder virar a página e se dedicar à edificação de uma sociedade mais igualitária e justa.

É preciso nos fitarmos no espelho com sinceridade para quebrar a hegemonia cultual imposta pelo neoliberalismo e pelo consumismo ilimitado. Parar de consumir e consumir para ser… consumido. Num círculo vicioso onde a reificação (o considerar o trabalho como uma mercadoria) geral se torna o verdadeiro signo social e todos nos reduzimos a mercadoria à venda, tanto por quilo, no Mercado da Vida. Mudarmos a nós mesmos por um genuíno planejamento social e político que mude a substância e a essência do mundo… fora dessa perspectiva não sobra nada além da indignação como fim em si mesma, a frustração sem esperança… ou o furto, o saqueio, a violência de quem é dominado e seduzido pelos desejos que são induzidos de cima…

Antes que seja tarde demais…

FIM

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