“Como se fabrica a opinião pública” – Texto inédito de Pierre Bourdieu
Como se define o espaço dos discursos oficiais, por meio de que prodígio a opinião de uma minoria se transforma em “opinião pública”? É isso que o sociólogo Pierre Bourdieu explica neste texto extraído de “ Sur l’Etat. Cours au Collège de France 1989-1992″ (Raisons d’Agir-Seuil, Paris, 2012).
Por Pierre Bourdieu
Fonte: Le Monde Diplomatique – Il manifesto, via micromega Janeiro de 2012
Tradução: Mario S. Mieli
Um homem oficial é um ventríloquo que fala em nome do Estado: assume uma atitude oficial – seria preciso descrever a encenação do personagem oficial -, fala a favor e em lugar do grupo ao qual se dirige, fala para e em lugar de todos, fala enquanto representante do universal.
E nesse ponto chega-se à moderna noção de opinião pública. O que é essa opinião pública, invocada pelos criadores de direito das sociedades modernas, das sociedades nas quais o direito existe? É tacitamente a opinião de todos, da maioria ou daqueles que contam, daqueles que são dignos de ter uma opinião. Penso que a definição explícita, numa sociedade que se pretende democrática, ou seja, de que a opinião oficial é a opinião de todos, esconda uma definição latente, ou seja, que a opinião pública é a opinião daqueles que são dignos de ter uma opinião. Há uma espécie de definição censuária da opinião pública como opinião iluminada, opinião digna desse nome.
A lógica das comissões oficiais é aquela de criar um grupo capaz de dar todos os sinais externos, socialmente reconhecidos e reconhecíveis, de sua capacidade de expressar a opinião digna de ser expressada, e nas formas convenientes. Um dos critérios tácitos mais importantes na seleção dos membros de uma comissão, em particular de seu presidente, é a intuição, por parte de quem esteja encarregado da composição da comissão, de que a pessoa em questão conheça as regras tácitas do universo burocrático e as reconheça: em outras palavras, alguém que saiba jogar o jogo da comissão de maneira apropriada, aquela maneira que vai além das regras do jogo, que o legitima: nunca se está tanto dentro do jogo como quando se vai além. Em cada jogo, há regras e fair-play. A propósito do homem cabilo (N. do T.: berbere da Argélia), ou do mundo intelectual, eu tinha utilizado esta fórmula: a excelência, na maior parte das sociedades, é a arte de jogar com a regra do jogo, fazendo desse jogo com a regra do jogo uma homenagem suprema ao jogo. O transgressor controlado é a verdadeira antítese do herético.
Joana Vasconcelos – O Sapato – Escultura/ Instalação realizada com panelas e tampas de aço inox (Lisboa Portugal), 2009
Imagem do blog Da Literatura
O grupo dominante coopta os seus membros com base em indícios mínimos de comportamento, que são a arte de respeitar a regra do jogo até mesmo nas transgressões reguladas pela regra do jogo: as boas maneiras, o comportamento. É a célebre frase de Chamfort: “O ‘grande vigário’ pode sorrir de uma piadinha contra a religião, o bispo pode rir dela abertamente, o cardeal pode acrescentar-lhe algo de seu (1).” Mais subimos na hierarquia das excelências, mais podemos jogar com a regra do jogo, mas ‘ex officio’, a partir de uma posição tal que seja eliminada qualquer dúvida. O humor anticlerical de um cardeal é requintadamente clerical. A opinião pública é sempre uma espécie de realidade dupla. É aquilo que não se pode não invocar quando se quer legiferar em campos não organizados. Quando se diz: “Há um vazio jurídico” (expressão extraordinária), a propósito da eutanásia ou dos bebês-proveta, são convocadas pessoas que se colocarão a trabalhar com toda a sua autoridade. Dominique Memmi (2) descreve uma comissão de ética [sobre a procriação artificial], a sua composição com pessoas disparates – psicólogos, sociólogos, mulheres, feministas, arcebispos, rabinos, cientistas, etc. – que têm a tarefa de transformar uma soma de idioletos (3) éticos num discurso universal que preencherá um vazio jurídico, ou seja, – legalizar as mães portadoras, por exemplo. Quando se trabalha nesse tipo de situação, é necessário invocar uma opinião pública. Nesse contexto, compreende-se muito bem a função atribuída às sondagens. Dizer “as sondagens estão do nosso lado” é como dizer “Deus está conosco” em um outro contexto.
Mas a questão das sondagens é irritante, porque às vezes a opinião iluminada é contra a pena de morte, ao passo que as sondagens são predominantemente a favor. O que fazer? Faz-se uma comissão. A comissão constitui uma opinião pública iluminada que traduzirá a opinião iluminada em opinião legítima em nome da opinião pública – que, possivelmente, diz o contrário ou não tem nenhuma opinião formada a respeito (como acontece com muitos assuntos). Um das propriedades das sondagens consiste em colocar às pessoas problemas que elas mesmas não se põem, em sugerir respostas a problemas que elas mesmas não se colocam, portanto, em impor respostas. Não é questão de procurar caminhos transversos na constituição das amostras, é o fato de se impor a todos problemas que são sentidos pela opinião iluminada e, por essa via, de propor respostas gerais a problemas sentidos somente por alguns, portanto, de dar respostas iluminadas enquanto tiverem sido geradas com a pergunta: deu-se vida a problemas que não existiam para as pessoas, enquanto a pergunta era qual fosse o problema delas.
Vou lhes traduzir um texto de Alexander Mackinnon, de 1828, extraído de um livro de Peel sobre Herbert Spencer (4). Mackinnon define a opinião pública, dá a definição que seria oficial, se não fosse inconfessável numa sociedade democrática. Quando se fala de opinião pública, joga-se sempre um duplo jogo entre a definição confessável (a opinião de todos) e a opinião autorizada e eficiente que se obtém como subconjunto restrito da opinião pública democraticamente definida: “É a opinião, a propósito de um qualquer argumento de que se fale, expressa pelas pessoas mais informadas, mais inteligentes e mais morais da comunidade. Ela é gradualmente difundida e adotada por todas as pessoas dotadas de uma certa instrução e de um sentir adequado a um Estado civilizado”. A verdade dos dominantes se torna aquela de todos.
Colocar em cena a autoridade que autoriza a falar
Nos anos 1880, dizia-se abertamente à Assembleia Nacional aquilo que a sociologia precisou redescobrir, isto é, que o sistema educacional precisava expulsar os filhos das classes mais desfavorecidas. No início, a questão era colocada mas depois foi plenamente resolvida, à medida que o sistema escolar começou a fazer, sem solicitação explícita, aquilo que se esperava dele. Portanto, nenhuma necessidade de se falar a respeito. O interesse pela volta à gênese é muito importante porque, na fase inicial, podem ser recuperados debates em que são expressas com letras claras coisas que, em seguida, podem parecer provocações dos sociólogos.
O reprodutor da autoridade sabe produzir – no sentido etimológico do termo: produzir significa “trazer à luz”-, teatralizando-o, algo que não existe (no sentido de sensível, de visível), e no nome do qual se fala. Deve produzir em nome de quem tem o direito de produzir. Não pode não teatralizar, não dar forma, não fazer milagres. O milagre mais comum, para um criador verbal, é o milagre verbal, o sucesso retórico; deve produzir a encenação daquilo que autoriza o seu dizer, em outras palavras, da autoridade em nome da qual é autorizado a falar.
Reencontro a definição da prosopopeia que eu procurava antes: “Figura retórica pela qual se faz falar ou agir uma pessoa que é evocada, um ausente, um morto, um animal, uma coisa personificada”. E no dicionário, que é sempre um instrumento formidável, encontra-se esta frase de Baudelaire a respeito da poesia: “Manejar sapientemente uma língua, quer dizer praticar uma espécie de bruxaria evocadora”. Os clérigos, aqueles que manipulam uma língua sapiente como os juristas e os poetas, devem encenar o referente imaginário em nome do qual falam, e que falando produzem nas formas; devem fazer existir aquilo que exprimem e isso em nome do que se exprimem. Devem juntos produzir um discurso e produzir a confiança na universalidade do seu discurso através da produção sensível (no sentido de evocação dos espíritos, dos fantasmas – o Estado é um fantasma…) dessa coisa que será garante daquilo que fazem: “a nação”, “os trabalhadores”, “o povo”, “o segredo de Estado”, “a segurança nacional”, “a demanda social”, etc…
Percy Schramm mostrou como as cerimônias de consagração fossem a transferência, na ordem política, das cerimônias religiosas (5). Se o cerimonial religioso pode ser transferido assim facilmente para as cerimônias políticas, através das cerimônias da consagração, é porque se trata, em ambos os casos, de fazer acreditar que há um fundamento no discurso, o qual aparece auto-fundante, legítimo, universal só enquanto existir a teatralização – no sentido de evocação mágica, de bruxaria – do grupo unido e consonante com o discurso que o une. Daí o cerimonial jurídico. O historiador inglês E. P. Thompson insistiu no papel da teatralização jurídica no século XVIII inglês – as perucas, etc.-, que não pode ser compreendido completamente se não se vê que não se trata de um simples aparato, no sentido de Pascal, que viria a ser acrescentado: é parte constitutiva do ato jurídico (6). O falar forense em paletó e gravata é arriscado: arrisca-se perder a pompa do discurso. Fala-se sempre em reformar a linguagem jurídica, sem jamais fazê-lo, porque é o último indumento: os reis nus deixam de ser carismáticos
Oficialidade, a má-fé coletiva
Uma das dimensões muito importantes da teatralização é a teatralização do interesse pelo interesse geral; é a teatralização da convicção do interesse pelo universal, do desinteresse do homem político – teatralização da fé no padre, da convição do homem político, de sua confiança naquilo que faz. Se a teatralização da convicção faz parte das condições tácitas do exercício da profissão de clérigo – se um professor de filosofia deve parecer acreditar na filosofia -, é porque é a homenagem fundamental do personagem oficial para com a autoridade; é aquilo que precisa conceder à autoridade para ser uma autoridade, para ser um verdadeiro personagem oficial. O desinteresse não é uma virtude secundária: é a virtude política de todos os mandatários. As escapadelas dos padres, os escândalos políticos são o colapso dessa espécie de fé política na qual todos estão de má-fé, a fé sendo uma espécie de má-fé coletiva, no sentido sartriano: um jogo no qual todos mentem a si mesmos e aos outros, sabendo que os outros também mentem a si mesmos. É essa a autoridade…
Naked King, de Katarina Vavrova
NOTAS
(1) Nicolas de Chamfort, Maximes et pensées, Paris, 1795.
(2) Dominique Memmi, «Savants et maîtres à penser. La fabrication d’une morale de la procréation artificielle», Actes de la recherche en sciences sociales, n° 76-77, Paris, 1989, p. 82-103.
(3) Do grego idios, «particular»: discurso particular.
(4) John David Yeadon Peel, Herbert Spencer. The Evolution of a Sociologist, Heinemann, Londra, 1971. William Alexander Mackinnon (1789-1870) teve uma longa carreira como membro do Parlamento britânico.
(5) Percy Ernst Schramm, Der König von Frankreich. Das Wesen der Monarchie von 9 zum 16. Jahrhundert. Ein Kapital aus der Geschichte des abendländischen Staates (dois volumes), H. Böhlaus Nachfolger, Weimar, 1939.
(6) Edward Palmer Thompson, «Patrician society, plebeian culture», Journal of Social History, vol. 7, n° 4, Berkeley (California),1974, p. 382-405.