Terapia política
A arte da dissociação de massas.
por: Franco Berardi Bifo
1º de fevereiro de 2012
Tradução: Mario S. Mieli
E se a sociedade não puder mais resistir aos efeitos destrutivos do capitalismo sem limites? Se a sociedade não puder mais resistir ao poder devastador da acumulação financeira?
Precisamos desemaranhar autonomia de resistência. E se quisermos fazê-lo, precisamos desemaranhar desejo de energia. O foco prevalecente do capitalismo moderno tem sido a energia: a habilidade de produzir, competir, dominar. Uma espécie de energolatria, um culto da energia, tem dominado a sensibilidade cultural do Ocidente de Fausto até os futuristas. A sempre crescente disponibilidade de energia tem sido o seu dogma. Agora sabemos que a energia não é ilimitada. No espírito social do Ocidente, a energia está desvanecendo. Acho que deveríamos reenquadrar o conceito e a prática de autonomia a partir desse ponto de vista. O corpo social é incapaz de reafirmar seus direitos face a selvagem assertividade do capital porque a busca de direitos nunca pode ser dissociada do exercício da força.
Quando os trabalhadores eram fortes, nos anos ’60 e ’70, eles não se restringiram a reivindicar seus direitos, a manifestações pacíficas de sua força de vontade. Eles agiram em solidariedade, recusando-se de trabalhar, redistribuindo a riqueza, compartilhando coisas, serviços e espaços. Os capitalistas, por sua vez, não apenas pedem ou se manifestam, não simplesmente declaram sua vontade: eles a decretam. Eles fazem as coisas acontecer; eles investem, desinvestem, deslocam; eles destroem e constroem. Somente a força torna a autonomia possível na relação entre capital e sociedade. Mas o que é a força? O que é a força no presente?
A identificação de desejo com energia produziu a identificação de força com violência que acabou tão mal para o movimento italiano nos anos ’70 e ’80. Precisamos distinguir energia de desejo. A energia está em queda, mas o desejo precisa ser salvado. Similarmente, precisamos distinguir força de violência. Lutar contra o poder com violência é suicida ou inútil atualmente. Como podemos imaginar ativistas indo contra organizações profissionais de assassinos nos moldes da Blackwater, Halliburton, dos serviços secretos, das máfias?
Só o suicídio tem se comprovado eficiente na luta contra o poder. E, na realidade, o suicídio se tornou decisivo na história contemporânea. O lado sombrio da multidão encontra aqui a solidão da morte. A cultura ativista deveria evitar o perigo de se tornar uma cultura do ressentimento. Reconhecer a irreversibilidade das tendências catastróficas que o capitalismo inscreveu na história da sociedade não significa renunciar a ele. Pelo contrário, temos hoje uma nova tarefa cultural: viver o inevitável com uma alma relaxada. Invocar uma poderosa onda de retirada, de dissociação maciça, de deserção do cenário econômico, de não participação no falsificado jogo da política. O foco crucial de transformação social é a singularidade criativa. A existência de singularidades não deve ser concebida como um modo de salvação pessoal, essas singularidades podem se tornar uma força contagiosa.
Quando pensamos na catástrofe ecológica, nas ameaças geopolíticas, no colapso econômico provocado pela política financeira do neoliberalismo, é difícil afastar a sensação de que tendências irresistíveis já estão atuantes ao interior da máquina do mundo. A força de vontade política parecerá paralisada frente ao poder econômico da classe criminosa.
A era da civilização social moderna parece à beira da dissolução, e é difícil imaginar como a sociedade poderá reagir. A civilização moderna estava baseada na convergência e integração da exploração capitalista do trabalho e na regulação política do conflito social. O estado regulador, herdeiro do Iluminismo e do socialismo, tem sido o fiador dos direitos humanos e o negociador do equilíbrio social. Quando, no fim de uma feroz luta de classes entre o trabalho e o capital – e dentro da própria classe capitalista – a classe financeira tomou o poder através da destruição das normas legais e da transformação da composição social, o inteiro edifício da civilização moderna começou a ruir.
Eu prevejo que insurreições dispersas ocorrerão nos próximos anos, mas não devemos esperar muito delas. Elas serão incapazes de atingir os verdadeiros centros do poder devido à militarização do espaço metropolitano, e não serão capazes de obter ganhos significativos em termos de riqueza material ou poder político. Da mesma forma que a longa onda de protestos morais contra a globalização não puderam destruir o poder neoliberal, assim as insurreições não encontrarão a solução, não, a menos que uma nova consciência e sensibilidade emerja e se espalhe, mudando a vida quotidiana e criando Zonas Autônomas Não-Temporárias, enraizadas na cultura e na consciência da rede global.
A proliferação de singularidades (e a retirada e criação de Zonas Autônomas Não-Temporárias) será uma processo pacífico, mas a maioria conformista reagirá violentamente, e isso já está acontecendo. A maioria conformista está assustada com a fuga de energia inteligente e, simultaneamente, está atacando a expressão da atividade inteligente. A situação pode ser descrita como uma luta entre a ignorância de massas produzida pelo totalitarismo da mídia e a inteligência compartilhada do intelecto geral.
Não podemos predizer qual será o resultado desse processo. Nossa tarefa será estender e proteger o campo da autonomia e evitar o mais possível qualquer contato violento com o campo da ignorância de massas agressiva. Essa estratégia de retirada sem confrontos nem sempre será bem sucedida. Às vezes, a confrontação se tornará inevitável pelo racismo e fascismo. É impossível predizer o que deveria ser feito em caso de conflito indesejado. Uma resposta não violenta é obviamente a melhor escolha, mas ela não será sempre possível. A identificação do bem estar com a propriedade privada está tão profundamente enraizada que a barbarização do ambiente humano não pode ser completamente excluída. Mas a tarefa do intelecto geral é exatamente esta: escapar da paranoia, criar zonas de resistência humanas, experimentar formas de produção autônomas usando métodos high-tech de baixo teor de energia – ao mesmo tempo em que se evitam confrontos com a classe criminosa e a população conformista.
A política e a terapia serão a mesma coisa e atividade, nos próximos anos. As pessoas se sentirão desesperançadas, deprimidas e tomadas pelo pânico, porque são incapazes de lidar com a economia pós-crescimento, e porque sentirão falta de sua identidade moderna em dissolução. Nossa tarefa cultural será auxiliar essas pessoas e cuidar de sua insanidade, mostrando-lhes a maneira de uma feliz adaptação. Nossa tarefa será a criação de zonas sociais de resistência humana que atuarão como zonas de contágio terapêutico. O desenvolvimento da autonomia não é totalizante nem pretende destruir e abolir o passado. Como a terapia psicanalítica, deveria ser considerado um processo sem fim.
Franco Bifo Berardi é um filósofo e ativista revolucionário italiano. Este ensaio faz parte de seu livro Dopo il Futuro (Depois do Futuro).
Para ler o artigo em inglês: http://www.adbusters.org/magazine/100/berardi.html