O real das/nas imagens. A cultura visual na era das imagens na rede
por Gioacchino Toni, apresentando o livro de Elio Ugenti em Carmilla on line 30/06/2017
Tradução: Mario S. Mieli
Elio Ugenti, Immagini nella rete. Ecosistemi mediali e cultura visuale (Imagens na rede. Ecossistemas midiáticos e cultura visual), Mimesis, Milano-Udine, 2016, 198 pp., € 18,00
O ensaio ‘Imagens na rede’ de Elio Ugenti aprofunda a experiência visual contemporânea à luz das interações entre os diversos dispositivos tecnológicos que, além de envolver uma percepção onipresente das imagens na vida quotidiana, impõe uma transformação dessas imagens em termos qualitativos, de onde derivam novas formas de interação, uso (e reutilização) das mesmas. O ambiente da mídia contemporânea tende a redefinir significativamente a função das imagens, impondo novas modalidades de existência de acordo com suas recontextualizações mutáveis.
Segundo o autor, dado o contexto contemporâneo, torna-se necessário considerar os novos meios visuais a partir dos processos de mediação que ocorrem através deles. “Processos que ganham vida no cruzamento entre as possibilidades técnicas oferecidas pelos dispositivos e uma série de fatores contextuais que afetam uma ampla gama de dinâmicas sociais e culturais que orbitam em torno das práticas de que as imagens são objeto” (p. 8) . A cultura visual contemporânea deve, portanto, ser investigada numa lógica relacional em constante transformação, que determina seu funcionamento. A análise sugerida por Ugenti pretende “compreender a atualização de uma série de práticas quotidianas que contribuem para uma transformação radical dos modos de relação entre as pessoas e as imagens, tornando-se parte integrante da cultura visual de nosso tempo e também favorecendo um confronto ativo e contínuo com um patrimônio iconográfico que provem de diferentes contextos de mídia anteriormente separados: cinema, televisão, galerias de arte, jornais, revistas, etc.”(p. 9).
No primeiro capítulo o autor analisa criticamente os diferentes modelos de estudo que analisam a relação entre o contexto sociocultural e a fruição/ circulação das imagens. No segundo capítulo, o autor investiga os mecanismos que regulam o movimento das imagens em rede, tentando delinear um modelo teórico dinâmico e relacional capaz de levar em conta a “coexistência, dentro de um mesmo ambiente midiático, de inúmeras imagens e inúmeros indivíduos que entram em relação entre si”(p. 11). No terceiro capítulo Ugenti discute as alterações que ocorreram na transição da era analógica para a digital quanto aos usos e funções de fotografias de amadores e, em seguida, a interconexão entre os dispositivos de produção de imagens os dispositivos de circulação das mesmas. Nesta última parte, em particular, o pesquisador analisa o aumento das possibilidades de visibilidade das imagens pessoais e a reconfiguração contemporânea da relação entre valor cultural e valor expositivo. “A imagem será aqui levada em consideração menos como um objeto visual puro e mais como um fenômeno social e cultural complexo, uma verdadeira imagem-ato, nas palavras de Philippe Dubois, cujas dinâmicas de ação se tornam compreensíveis só se consideradas como parte integrante de um sistema de relações interindividuais e de processos auto representativos consubstanciados às lógicas do ambiente midiático dentro do qual tomam forma”(p. 12).
As velhas formas de fruição linear e consequencial parecem ter sofrido um drástico redimensionamento em favor de uma cultura contemporânea em que prevalecem formas fragmentadas e não-lineares. “Paradoxalmente, poderia ser argumentado que o arquivo digital seja o único meio possível na era pós-mídia ou, pelo menos, quanto a algumas características que o distinguem (fragmentação, não linearidade, interatividade, heterogeneidade dos conteúdos) mais adequado para satisfazer as lógicas que estão na base de um aumento de volume da especificidade midiática, a favor de práticas – espontâneas ou conceituais, vernaculares ou artísticas – que atravessam os limiares entre os diferentes meios e reconfiguram o estado dos objetos através da sua reutilização “(p. 10) .
Segundo Ugenti, na era contemporânea as análises dos elementos formais e dos significados específicos de uma imagem, embora necessários, não são mais suficientes para explicar sua eficácia; “Hoje torna-se ainda mais necessário avaliar o papel central da dimensão pragmática da fotografia, o qual é determinado pela inextricável relação que liga a imagem às ações que determinam a sua existência” (p. 132). A imagem deve ser pensada como um conjunto de um ato de produção e um de recepção/difusão. “No novo universo da mídia, esses momentos generativos da imagem fotográfica tendem a se fundir e misturar, a tal ponto que muitas vezes a realização de uma fotografia é pensada única e exclusivamente em função de sua difusão imediata por meio do mesmo dispositivo tecnológico” (p . 133).
O selfie representa um caso emblemático disso; nele entram em jogo tanto as características da imagem em si quanto as práticas de uso imediato da imagem realizada; “na era das redes sociais a imagem deixa de ser uma pura presença icônica para se tornar um fato sociocultural, através do qual a identidade do sujeito é colocada diretamente em jogo ¬– através da produção e compartilhamento de imagens pessoais por um usuário – ou indiretamente […] através da apropriação e recontextualização de conteúdos pré-existentes (fotografias, imagens de filme, anúncios publicitários, fragmentos de televisão, videoclips de música) com respeito aos quais você deseja enfatizar uma proximidade, ou por meio dos quais se pretende delinear e expor a própria identidade sociocultural “(p. 134).
Historicamente, a prática fotográfica amadora estava vinculada a ocasiões específicas e seu uso estava geralmente ligado a uma função familiar destinada a registrar momentos que se desejava lembrar.
Se no passado, portanto, a posse e a exposição (em escala reduzida) eram vividas como uma passagem fundamental do processo de “integração” ao interior do grupo social ao qual se pertencia, hoje a abstenção de expor (em larga escala) as próprias imagens pessoais é vivida, às vezes, como parte de um processo de não integração. Em ambos os casos, é evidente que a atitude do sujeito em relação ao uso de suas imagens é de alguma forma influenciado por uma série de vínculos e convenções que dizem respeito à esfera interindividual, que é afetada por uma série de convenções e restrições relacionadas à própria cultura de origem (p. 145).
Enquanto no passado a imagem pessoal tomada em ocasiões especiais tendia a ter um valor íntimo e ritual, portanto, destinada a ser exposta com moderação, hoje a imagem amadora pessoal deve ser relacionada dentro do novo ecossistema midiático, ao interior do qual circulam e proliferam tais imagens e às dinâmicas socioculturais e experienciais que em tal sistema tomam forma. A exposição de fotos pessoais em redes sociais, típica do mundo contemporâneo, pode ser vista como uma restituição da imagem privada ao uso público, através de diferentes formas ritualísticas, ligadas às novas práticas e novas dinâmicas de socialização em rede. Segundo o autor, não é raro que o ambiente das redes sociais tenda a ser percebido pelo usuário não como um espaço público, mas como uma extensão de um espaço ainda percebido como privado.
A capacidade de se poder definir a própria privacidade no Facebook, optando-se por mostrar as imagens compartilhadas somente ao seu círculo de amigos, dá a sensação de se agir dentro de um espaço que – embora surpreendentemente amplo – permanece limitado e controlável. Em outros casos, no entanto, a invasão de um espaço que pode ser definido como público é mais evidente. Este é o caso de compartilhamento de imagens no Twitter e – acima de tudo – no Instagram, onde o uso de hashtags parece ser o sintoma de uma escolha consciente (ou pelo menos voluntária) de perda total de controle de uma imagem compartilhada, muito além de seu círculo de seguidores.
A função mnésica e a ritualidade doméstica tradicionalmente relacionados à imagem privada são assim dominadas por uma série de processos de autorrealização (principalmente no primeiro caso) e de autopromoção (principalmente no segundo) que põem em jogo mais uma vez a propensão à revelação [… ]
O aumento desproporcional do valor expositivo da imagem implica, inevitavelmente, uma “redefinição de sua função com base em um impulso de autoafirmação ou autopromoção da própria identidade, em relação ao investimento afetivo a que – previsivelmente – uma boa parte da “comunidade” optará por tornar objeto essa imagem, e do qual derivarão uma série de feedbacks que aumentarão o prazer do usuário que tenha optado pelo seu compartilhamento (pp152- 154).
Na era contemporânea a fotografia pessoal parece quebrar cada vez mais o vínculo com a memória íntima do indivíduo preferindo, em vez disso, avançar para formas puras de auto representação ou atestado de experiência em ação. A referencialidade temporal da imagem parece deslizar bruscamente da contemplação de um passado condensado na foto à observação de um presente imediatamente compartilhado com um grande número de pessoas”(p. 154). A imagem pessoal parece, assim, diminuir a sua função mnésica a favor de uma função muito mais comunicativa e experiencial.
Elio Ugenti clarifica o alcance da mudança através de um exemplo comparativo entre uma imagem de família do começo dos anos sessenta sobre a celebração do primeiro ano de aniversário de uma criança e uma fotografia contemporânea publicada no Facebook, que incorpora a mesma cena de família. No primeiro caso, a foto foi tirada, presumivelmente, para ser inserida em um álbum de lembranças para poder ser revisto numa data posterior, no segundo caso, a fotografia foi imediatamente compartilhada em redes sociais com a intenção de comunicar um evento em andamento revelando assim seu aproveitamento imediato. Isto não significa negar a oportunidade de rever a imagem e recordando a memória em uma data posterior; o que acontece é que ao lado dessa possibilidade é adicionada, tornando-se uma prioridade, a função comunicativa. Na foto do Facebook também estão presentes elementos de feedback paratextuais como a soma dos “like” e os comentários adicionados enfatizando que o uso predominante desta imagem é mais comunicativo do que mnésico.
Hoje a fotografia privada, opina o autor, em comparação com àquela do passado, é caracterizada pelo alto nível de exposição (pelo menos em potencial), pela diminuição do tempo que decorre entre realização e fruição da fotografia, pelo deslizamento da preservação da lembrança de uma oportunidade extra ordinária para a confirmação de uma experiência muitas vezes bastante comum ou ordinária. Como mencionado, essas mudanças não envolvem o cancelamento da função de preservação da memória da fotografia e para se comprovar isso podem ser tomadas como exemplo as imagens cruas da tortura de prisioneiros iraquianos na prisão de Abu Ghraib por militares norte-americanos. Estas fotografias que nascem como imagens privadas (confirmação experiencial), uma vez que escaparam do controle dos autores e foram mostradas nas mídias, adquirem uma função de denúncia e preservação da memória de um evento brutal, mesmo depois um longo tempo; o uso e o grau de exposição mudaram ao longo do tempo as relações internas das fotografias.
O que se aplica às fotografias da prisão de Abu Ghraib vale também no âmbito da vida quotidiana, sem necessariamente referir-se a imagens de interesse coletivo; além do objetivo imediato que leva a compartilhar uma fotografia pessoal, isso mantém intacta ao longo do tempo a capacidade de preservar e restaurar a memória do que contribui para a construção da memória privada. A fotografia permanece, mesmo na era digital, um dos principais “mediated memories objects”–objetos de memórias mediadas.
Se nas fotos privadas analógicas a formação da identidade pessoal parecia ser um elemento secundário em relação à função mnésica, hoje essa relação tende a se reconfigurar à luz de alguns deslizamentos respeito aos usos e funções deste tipo de imagens. A estudiosa holandesa José Van Dijck (Digital Photography: Communication, Identity, Memory, 2008) ao identificar as principais mudanças sofridas pela fotografia privada na era digital, assinala, entre outros “a transição de um uso principalmente familiar da fotografia para um mais marcadamente uso individual “(p. 165).
A circulação em redes sociais de fotografias pessoais, muitas vezes parece resultar de uma necessidade auto representativa, quando não pela construção de uma identidade individual na rede, através de uma disponibilidade de revelação. O que as torna diferentes das antigas fotografias amadoras da era analógica pode ser relacionado ao “ambiente midiático dentro do qual essas imagens agem, além das diferentes entidades de convenções sociais (e também “estéticas”) às quais se referem” (p. 167). Fazendo referência à prática amadora dos retratos fotográficos do selfie, é claro como isso, ao invés de basear-se numa série de convenções externas que historicamente ditaram as regras de uma boa auto representação fotográfica (ainda que amadora), seja ela mesma a ditar as coordenadas para a criação de novos modelos auto representacionais, por exemplo, legitimando a violação de uma série de regras formais concernentes também (e não somente) a realização de um retrato fotográfico. Dois de todos eles: a curta distância entre o sujeito e o dispositivo de disparo, e a visibilidade do braço estendido ao interior da imagem.
Seria, contudo, simplista limitar-se a constatar a moda que está virando esta prática amadora, sem captar algumas repercussões interessantes no plano sociocultural e midiático. Se no passado, na verdade, foram as práticas amadoras a absorver os modelos representacionais que nasciam no âmbito artístico […] ou que eram assimiladas através de reportagens e de fotos de moda espalhadas pelos tabloides, hoje – por causa do elevadíssimo valor de exposição das imagens amadoras – parece ocorrer também o percurso inverso(p. 168).
De fato, não faltam exemplos de celebridades que fazem uso de selfies “querendo reafirmar a centralidade da prática em si, mais do que a imagem fotográfica que dela deriva” (p. 169). Se no passado o indivíduo comum tendia a imitar celebridades, agora o inverso também acontece: as celebridades do mundo dos esportes, do entretenimento ou da política, ao fazerem selfies, pretendem brincar de ser “como comuns mortais”. O caso mais famoso é representado por autorretratos feitos por Bradley Cooper durante a cerimônia de premiação na noite do Óscar em 2014, e que se tornou a imagem mais comum da história da rede social.
Esse exemplo se torna ainda mais interessante quando se pensa no fato de que o uso de uma prática tão simples, nascida no mundo amador, tornou-se um potentíssimo meio de promoção para um dos eventos mais importantes do mundo e, contemporaneamente, como se sabe, por um gigante mundial do setor da tecnologia, como a Samsung, que se mostrou a verdadeira idealizadora desta campanha publicitária mamute toda ela baseada na familiaridade de um simples gesto.
A escolha de uma forma ideal de compartilhamento do próprio eu na rede através da imagem fotográfica levou ao longo do tempo ao surgimento não só de uma estética auto representacional específica, como também de uma retórica que está subjacente à necessidade de comunicar através de uma forma bem precisa, socialmente compartilhada e imediatamente reconhecível (pp. 169-170).
O exemplo do selfie como uma nova prática auto representativa, serve para que Ugenti destaque como, com o objetivo de compreender os fenômenos constituintes da cultura visual atual, seja necessário evitar-se de cair na armadilha do “determinismo tecnológico” e de que é essencial avaliar os fatores contextuais. Para um estudo válido do universo visual contemporâneo é preciso saber investigar, em sua interseção e sua constante mudança, tanto os aspectos tecnológicos quanto as mudanças sociais, culturais e midiáticas.