Aula de genética

por Silvio Mieli

Uma charge e uma tira, ambas do desenhista Laerte salvaram a cobertura da imprensa brasileira sobre o mapeamento do genoma humano. A constatação confirma uma tendência. É nos pequenos espaços destinados aos colunistas e aos chargistas que o leitor amplia a sua percepção da realidade, já que o resto virou massa amorfa, amontoado de declarações e infográficos publicitários travestidos de "matéria" jornalística.

Comecemos pela tira. No céu, um anjinho, enredado entre seqüências intermináveis de DNA, questiona o Criador:

–PRA QUE UM GENOMA TÃO GRANDE SENHOR?

O Ser infinito replica ardilosamente:

–PRA DESPISTAR…O SEGREDO MESMO É O BARRO!, responde o Grande Senhor, enquanto enfia através de um funil uma sequência de DNA na cabeça de um homem todo feito de barro.

Digamos que Laerte encontrou uma forma sutil e engenhosa para dizer que alguém lá em cima (ou seria lá embaixo?) deve estar morrendo de rir daqueles que querem vender o Projeto Genoma como a chave da vida, ou o mapa da nossa existência – "O corpo Humano não tem mais mistérios", alardeou a manchete de um jornal. A charge me fez lembrar um verso de Alberto Caieiro, heterônimo de Pessoa, que disse o mesmo só que de outra forma: "Por mim, escrevo a prosa dos meus versos /E fico contente,/Porque sei que compreendo a Natureza por fora;/E não a compreendo por dentro/Porque a natureza não tem dentro; Senão não era a Natureza".

Agora vamos à charge. O cenário é uma sala de aula. Da cátedra, uma molécula de DNA aponta para o quadro. "Muito bem, este é o mapa do genoma… Agora vamos cantar o hino!", ensina. Diante da professora/DNA, outras três pequenas tiras, representadas pela forma de dupla hélice retorcida, aprendem a lição.

Inicialmente tem-se a impressão que o chargista "antropomorfizou" as moléculas de DNA, dando-lhes caracteres humanos. Na verdade é o contrário. Nós humanos é que fomos reduzidos a moléculas de DNA. Laerte revelou o que nenhuma editoria de ciência e tecnologia ousou discutir a fundo: o determinismo genético que impregna as relações entre informática e biologia, além do reducionismo filosófico que acompanha o discurso biotecnológico. Ora, se fomos reduzidos a sequências de arranjos de bases de nucleotídios ( A-Ts, C-Gs), desconsiderando as complexas interações com o meio ambiente, já estamos vivendo na terra nova da Genômica. Portanto, só nos resta cantar o hino e aprender os símbolos nacionais – como nos tempos das aulas de Educação Moral e Cívica.

Talvez os nossos netos aprenderão em suaves cartilhas online que o novo continente genético foi descoberto graças ao pioneirismo do destemido cientista John Craig Venter, financiado que foi pelo espírito abnegado de alguns laboratórios. Venter navegou CELERAmente pelos intrincados códigos bioquímicos, até descobrir o mapa do tesouro – fonte inesgotável de patentes.

Como dizia o filósofo Bergson, o essencial na atividade do caricaturista é o exercício de adivinhar sob as harmonias superficiais da forma, as revoltas profundas da matéria. É a base do riso, que tanta falta faz às ciências e ao jornalismo. Além do mais, nenhum componente genético será capaz de controlar a gargalhada diante do aleatório, do inusitado, do desvio, como aquele escorregão numa casca de banana.

Tira de Laerte publicada no caderno TVFolha em 2 de junho de 2000.

 

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