:::::::::::::::::::::::::::: arte, cybercultura e tecnologia::::::::::::::::::::::

Fox Talbot, Photogenic Drawing, 1839

   

 

Arte Biotecnológica entre o controle e o acaso

 

"Criar é divino. Reproduzir é humano"

Man Ray

 

Por Silvio Mieli

A cada tipo de sociedade corresponde uma máquina e uma forma de arte. Se hoje podemos traçar a genealogia dos objetos técnicos, classificar as imagens – sejam elas analógicas ou digitais – e indagar sobre os seus suportes, é porque arte e a técnica resistiram ao tempo e à própria morte. Suportar e resistir são sinônimos.

O filósofo francês Gilles Deleuze dizia que se a informação molda e define a sociedade de controle, a contra-informação só se efetiva num ato de resistência. "Poderíamos dizer, então, que arte é aquilo que resiste", concluiu. Todo ato de resistência seria, de certo modo, uma obra de arte, e toda arte conteria germes de resistência. "O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato artístico. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta dos homens", propôs Deleuze.

Apontar o ato de resistência como a interface comum entre comunicação e arte numa sociedade de controle parece fundamental para compreender as linguagens contemporâneas, particularmente as novas possibilidades estéticas que despontam na interpenetração da tecnologia digital e a da biotecnologia.

Se percebermos bem, todos os movimentos artísticos que influenciaram este século foram, cada um a seu modo, atos de resistência. Resistência à simplificação das linguagens; resistência aos materiais convencionais; resistência do próprio corpo do artista transformado em obra de arte nos movimentos mais radicais.

A este respeito basta dar uma olhada na publicação Le siècle rebelle ("O século rebelde; dicionário da contestação do século XX"), dirigido por Emmanuel Waresquiel, e editado pela Larousse-Bordas. Apesar das limitações espaciais dos dicionários enciclopédicos e de algumas falhas graves – não consta um bom verbete específico sobre arte conceitual e omite-se o papel de artistas brasileiros como Hélio Oiticica – há uma providencial recuperação histórica, social, política e estética da rebeldia. De Sacco e Vanzetti à teologia da Libertação; de Lautréamont a Pasolini; do Jazz ao Dodecafonismo; da Antropofagia à Mimimal Art; de Eiseinstein a Kubrick; de Zapatta a Nelson Mandela; do Butoh à Pina Bauch; de Gramsci a Chomsky, até incluir recentes sensibilidades contestatórias (Hackers, Hip-Hop, Zapatistas, Drag-queens, Interatividade, Piercing, Rave, Punk, Techno). A estrutura hipertextual da obra nos ajuda a entender, por exemplo, o que têm em comum o fundador da videoarte Nam June Paik, o músico John Cage, a vanguarda Dada, o grupo Fluxus, os Happenings, as Instalações, num exercício indispensável. Ao folhear o dicionário, percebemos que a palavra resistência assumiu um sentido que vai muito além da contestação pura e simples ao sistema.

Mas, o que é resistir à morte na virada do século e do milênio? Resistir a quê? Ou, antes disso, por que resistir?

Ora, quando embaralha-se o conceito de vida com a informação contida na molécula de DNA; quando sofisticam-se as formas de controle; quando novos suportes informacionais engendram linguagens definidas muito mais pelas suas relações do que pelas suas especificidades, a arte mesma vai redimensionar os seus gradientes de resistência. Pode não oferecer resistência a nada, estetizando simplesmente a informação quantitativa, ou, ao contrário, pode multiplicar os pontos de vista, aprofundando o debate das inter-relações homem-máquina.

Um excelente campo de análise é a Internet, espaço de informação e contra-informação fundamental, inclusive como suporte artístico, para onde estão fluindo as novas experiências multimediáticas, eletrônicas e telemáticas.

 

VIDA ARTIFICIAL

 

Kenneth Rinaldo, escultor, professor e artista multimídia, compara o surgimento da vida na terra com os atuais fluxos circulantes na rede. Pode parecer exagerado, mas é exatamente esse o espírito que anima as experiências artísticas reunidas sob o rótulo A-life (vida artificial). "A livre troca de informações na Internet criou uma vida artificial semelhente àquela sopa primordial, que possibilitou a criação das primeiras centelhas de vida a partir das bases de carbono"3, justifica.

Em maio de 1998, Rinaldo acionou o programa de buscas da internet Alta Vista para descobrir quantos sites apareciam sob a palavra-chave artificial life (vida artificial). Na época, retornaram 14.647 indicações. Se refeita hoje, a mesma busca alcançaria 33.825 páginas. O crescimento é geométrico, diretamente proporcional aos seres artificiais lançados na internet.

Os trabalhos do artista Tom Ray (Projeto Tierra) e do biólogo inglês Richard Dawkins (Terra dos Biomorphs) podem ser uma boa introdução ao universo da A-life. Os projetos não estão online, mas é possível fazer um dowload dos softwares utilizados. Tierra "é o resultado da produção de organismos sintéticos baseados numa metáfora computacional de formas orgânicas, na qual o tempo da CPU é a fonte energética e a memória é a própria fonte material dos organismos", resume Ray. Já Dawkins , um neo-darwinista convicto, construiu um modelo onde moram possíveis formas de organismos (os biomorfos), submetidos a um processo algorítmico artificial de evolução "natural". Sua teoria estabelece um paralelo entre vida biológica e a digital. Tanto Ray quanto Dawkins propõe sintetizar fenômenos naturais numa mídia artificial, como os computadores, no intuito de entender os sistemas vivos em toda a sua complexidade.

Na verdade, as novas formas de arte A-life, derivam da computação e da Inteligência Artificial (IA), que por sua vez têm origem na cibernética – a ciência que queria expressar os fenômenos mentais através de um formalismo matemático, passando a comparar o cérebro a uma máquina dedutiva.

Com a explosão da era digital seguida do Projeto Genoma, os genes passaram a ser comparados por artistas e biólogos a longas fileiras de pura informação digital. Surgiram assim os algorítmos genéticos, complexas fórmulas matemáticas injetadas pelo artista/biólogo às suas criaturas, cujo comportamento, apesar de programado, poderia gerar encontros inusitados e até incluir a participação de espectadores (via internet) na trajetória dos seres mutantes.

É o caso de Nerve Garden I , apresentado pela primeira vez na SIGGRAPH, em 97, ambientado no ciberespaço da internet. Trata-se de um projeto cyberbiológico concebido pelo consórcio californiano Biota Working Group (Bruce Damer, Tom Ray, Chris Langton e outros), interessado em pesquisar a linguagem VRML – um método que permite a visualização de aplicações em 3D nos browsers com o quais navegamos na rede. A idéia é começar uma espécie de "colonização vegetal" online. O visitante pode germinar sua própria planta mutante a partir de um sistema matemático chamado L-systems. Nomeia a sua muda, define a ilha, ou o ecossistema onde será inserida (insetos inclusos), e daí em diante uma natureza artificial composta de luz e sons calculados por algorítmos genéticos vai interferir na evolução do espécime.

Menos sofisticados, mas seguindo a mesma lógica, Technosphere, da artista inglesa Jane Prophet e Bodies Incorporated, coordenado por Victoria Vesna da Universidade da Califórnia/Santa Bárbara, também permitem a construção virtual, respectivamente, de seres e robôs mutantes. Tal qual os Tamagochis, só que agora via internet, podemos nomeá-los e até receber mensagens sobre como "crescem", se "reproduzem" e "morrem".

 

ARTE TRANSGÊNICA

 

Coube à mostra Ars Eletronica introduzir definitivamente no universo artístico palavras até então restritas ao vocabulário da biologia e da genética – gene, genoma, plasmídeos, transgênese, entre outras. Em setembro de 1999, concentraram-se na cidade austríaca de Linz os expoentes da cybergeneration – especialistas em artes interativas, computação gráfica, efeitos visuais, música digital, designers gráficos, webmasters e demais exercícios de hibridações e tendências múltiplas entre essas áreas. Durante duas décadas de existência, a Ars Eletrônica teve papel importante na discussão e divulgação de novas formas de arte, como a Web Art, também conhecida como Net Art. Passaram por lá, só para citar um exemplo, a dupla Jodi (Joan Heemskerk e Dirk Paesmans), que trabalha com o aleatório e com a subversão dos códigos na Internet – desviando o internauta das monótonas retas ciberespaciais, com seus banners publicitários e lojinhas de conveniência duvidosa.

O tema da edição de aniversário da Ars Eletronica foi Science Life, que iria focar as convergências entre tecnologia de informação digital, engenharia genética e biotecnologia. A estrutura do evento já nos diz algo sobre a arte na era pós-biológica. Paralelamente à mostra de arte eletrônica, foi realizado o LifeScience —Symposium, patrocinado pela gigante Novartis – terceira maior investidora em sementes transgênicas do mundo. Médicos, biólogos, filósofos, economistas discutiram o determinismo biológico, o processamento industrial da vida, o biobusiness, agribusiness, pharmabusiness, e a "impressão digital genética".

Algumas das performances e das obras comissionadas pelo evento adaptaram pura e simplesmente preceitos e metodologias biotecnológicas, tangenciadas pela internet como suporte preferencial dos artistas. Foi o caso do brasileiro Eduardo Kac, que apresentou Gênesis, um dos seus exemplos de "Arte transgênica". O trabalho parte do versículo 26 do Gênesis, Antigo testamento: "Então Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre aterra". Este versículo foi traduzido em código Morse e, posteriormente, a partir de critérios escolhidos pelo próprio artista, vertido para uma sequência de bases nitrogenadas (A,T,C,G). As bases foram injetadas numa bactéria Escherichia coli. Em seguida, há todo um espetáculo de luz e som, que permite a reprodução das bactérias modificadas à distância pelo internauta. Uma celebração da capacidade humana de controlar processos biológicos.

Sintetizando fenômenos naturais numa mídia artificial, como computadores ou robôs, o que parece estar em jogo entre as novas tendências artísticas é a sobrevivência do acaso e daquela margem de indeterminação fundamental na relação homem-máquina. Sem um componente de fatalidade, desaparece o que foge do controle, da dominação e o que garante a variabilidade e a biodiversidade ambiental, artística, cultural, informacional.

Como no filme Gattaca (1997), do antenado Andrew Niccol – roteirista de Truman Show – num futuro que em muitos aspectos já é presente, a discriminação vai virar uma ciência determinista, funcional e reducionista. Nos tempos de Gattaca a vida já foi reduzida a um pacote de genes. As nossa próprias células substituirão as senhas e os currículos; quem driblar o sistema será acusado de GENOISMO; quem nascer de métodos naturais será chamado DE-GENERADO (ou "Filho da Fé"). Antes do primeiro beijo os namorados submeterão pedaços de cabelo dos seus pretendentes ao sequenciamento genético, para conhecer melhor o(a) parceiro(a).

Quando as informações genéticas passam a ser, elas mesmas, o próprio controle, é porque as resistências andam em baixa. Uma sugestão para a reação talvez seja o mote de "Gattaca": "Não há gene para a fatalidade", além da subversão premonitória do poeta simbolista Stéphane Mallarmé: "Um lance de dados jamais abolirá o acaso".

Referências:

Richard Dawkins

http://www.world-of-dawkins.com/

Ars Eletronica

http://kultur.aec.at/20jahre/kataloge.asp

Jodi:

http://www.jodi.org

Eduardo Kac

http://www.ekac.org/kacode.html

 

 

 

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