Movimento dos Desobedientes

 

 


Luca Casarini entrevistado por Ezequiel Marcos Siddig

Tradução Imediata

Luca Casarini é um dos líderes do movimento precedentemente chamado Tute Bianche (demonstrantes vestidos com uniformes brancos que protestaram em Gênova contra os países do G-8, no ano passado). Hoje ele é o porta-voz do Movimento dos Desobedientes, o qual, por meio de protestos civis, rejeita as políticas do neoliberalismo e que reúne muitos dos grupos diferentes que participaram em Gênova em julho do ano passado. Ele falou a Ezequiel Siddig em Buenos Aires depois do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, Brasil

EZEQUIEL MARCOS SIDDIG: O Movimento dos Desobedientes é globofóbico?

LUCA CASSARINI: Eles dizem que nós somos antiglobalização, mas nós somos mais pró-globalização do que eles, porque lutamos pela globalização dos direitos humanos, a globalização de um estilo dignificado de vida.

Bush, Blair e outros líderes de governo, no encontro do G-8 em Gênova do ano passado disseram que eles são os representantes do povo porque foram eleitos pelo povo, e que os demonstrantes não. Que idéias você tem sobre representação política?

Nós não achamos que somos representantes do povo que não participa do movimento. Acreditamos que cada um de nós é representante de todos. O que disseram Bush, Blair e Berlusconi sobre a questão da representação é muito estranho. Por exemplo, para as eleições dos EUA, eles precisam de milhões de dólares. Quem tem o dinheiro? Nem todos podem concorrer para a presidência.

A decisão do Parlamento Italiano foi de apoiar a guerra de Bush, a guerra de Bush e Bin Laden, que são dois lados de uma mesma moeda (lados diferentes da mesma moeda), porque Bin Laden também é um milionário, tem poder e mata civis. Noventa porcento dos membros do Parlamento votaram a favor da guerra, ao mesmo tempo que uma sondagem de opinião efetuada pelo maior jornal do meu país (Corriere della Sera) mostrava que 70 porcentos dos italianos era contra a guerra. Entretanto, votou-se a favor da guerra. Então, o que é a democracia? Tomar uma decisão importante sem se consultar as pessoas?

Você poderia ser mais específico sobre o seu conceito de violência política?

Para nós, o debate da violência versus a não-violência é absurdo. Comparados aos países do G-8, àqueles que matam 15 milhões de pessoas por ano, deixando-as morrer de fome, àqueles que impedem que milhões de pessoas no mundo todo tenham água corrente devido à privatização dos recursos, àqueles que fazem a guerra com bombas extra-pesadas numa cidade onde nem se sabe quem é Bin Laden, como se poderia ser mais violentos? É impossível. Esse assunto da violência contra a violência é puramente ideológico. O problema é como levantar o conflito sem se levar todo o movimento a uma guerra civil, porque é isso que quer o poder. Como podemos ser desobedientes, como podemos criar e, ao mesmo tempo, infringir as leis injustas, como podemos criar uma outra lei que seja uma Lei Constitucional, como deseja o povo argentino? No Brasil, quando se fala com alguém que mora numa favela, essa pessoa lhe dirá "minha vida é uma violência o dia inteiro porque tenho fome e não tenho o que comer".

Nesse caso, como a sociedade civil pode construir um contra-poder eficaz, capaz de desafiar o poder político dos estados e das empresas transnacionais?

A primeira coisa que aprendemos em Porto Alegre é que não temos a resposta para tudo, temos que experimentar. Contudo, podemos aprender com os experimentos levados a cabo por outros movimentos em todo o mundo. A primeira coisa que se deve levar em consideração é que sem a construção de um poder dual não existe nem a oportunidade de experimentar com uma nova democracia, nem a oportunidade de resistir a imposições e injustiças. E, na Argentina, como não havia um forte movimento de protesto político, ninguém falava deste país no resto do mundo. Esse dualismo, portanto, atua como um espaço para a experimentação democrática, para a resistência, porque resistir à injustiça é o que deve ser feito para evitar que essa injustiça se repita. Esse dualismo também funciona como um estímulo para alcançar-se um tipo de poder que controle o poder, que funcione como uma denúncia, como uma outra voz que fale aos meios de comunicação, que tenha um ponto de vista diferente daquele do poder.

O segundo fator a ser considerado é que esse espaço —que eu chamo de "espaço da revolta constituinte", e que é temporário, não eterno, porque muda— deve ser usado como um lugar de discussão de questões tais como a democracia municipal. Isso foi amplamente discutido em Porto Alegre. Se esse espaço for usado só para protesto, como está desarmado, vai acabar sendo abatido pelo poder. Armas como os diferentes projetos sociais, como o ‘el trueque’ (escambo) que vocês têm na Argentina, e que eu vou promover na Itália: quatro milhões de pessoas que estão continuamente experimentando um novo tipo de mercado, não mercantil, mas baseado na solidariedade. É um projeto que continuará a ser desenvolvido porque constitui uma alternativa concreta para lutar contra a pobreza e cresceu através de pequenos clubes que, gradualmente, foram se juntando.

Além do valor da experimentação, o Movimento dos Desobedientes tem uma intenção explícita de "fazer a revolução"?

Precisamos pensar em como influenciar o poder. Não vamos assumir o poder, não estamos buscando o poder, mas o contra-poder. Queremos estar nas ruas, em contato com a vizinhança de um modo inteligente, em conflito permanente, porque temos uma contradição entre a representação política e a sociedade. O problema é como habitar esse conflito. Por exemplo, o poder tende a transformar esse conflito em guerra. Se isso ocorre, e começa uma guerra civil, acabamos indo todos para a sepultura, todos nós. Como aconteceu em Buenos Aires e em Gênova, o poder não aceita essas formas de participação coletiva, porque tem medo de seu alcance e da subsequente transformação que causará em suas instituições.

Durante a maior parte do século XX, os movimentos revolucionários pensaram que a guerra civil era a resposta à guerra do imperialismo, e um modo de liberação. Na Itália, por exemplo, foi a Resistência contra o fascismo. Hoje, o império adotou a guerra civil como um instrumento, e o capitalismo revolucionou isso. No Brasil, 137.000 pessoas morrem a cada ano devido a ações violentas. Trata-se de uma guerra civil não declarada.

Em todas as demonstrações, o que o poder faz é transformar o protesto radical em um problema militar, de modo a bloqueá-lo. Foi isso que aconteceu em Gênova. Os Carabinieri mataram um companheiro de 23 anos, a primeira pessoa assassinada numa praça pública italiana em 24 anos.

Eles pareciam as "fuerzas del orden" (forças da ordem) latino-americanas.

É por isso que precisamos refletir sobre esse fato, porque significa que não precisamos converter esse espaço de revolta numa zona de guerra. Precisamos pensar sobre o conflito de um modo diferente. Nós o chamamos de "desobediência", conflito e consciência, uma ação sempre aberta para a experimentação, aberta à transformação e ao repensar-se do movimento. Poderíamos ter ido para Gênova levando molotovs e decidimos não fazê-lo, porque isso não funciona contra as balas e os caminhões dos Carabinieri que caçam os demonstrantes. Tínhamos também que confrontar a força da polícia. Construímos barricadas depois que atiraram contra nós. Mas tentamos sempre nos controlar para não sermos arrastados a uma guerra civil. É justamente isso o que deseja o poder: que o conflito se torne uma guerra.

Na Argentina, o povo está reconquistando o espaço público com meios totalmente diferentes e com idéias de oposição, não armas. Qual é a diferença entre os militantes esquerdistas de 1970 e os desobedientes transnacionais de hoje?

Vimos o que aconteceu em Chiapas e foi muito importante para nós, porque nos permitiu sonhar novamente, depois da grande repressão dos anos 70 na Itália. O zapatismo rompeu a nossa tradição clássica de uma Esquerda institucional, o que era também um rompimento com o marxismo tradicional. O zapatismo redefiniu a idéia de conflito. Por exemplo, a declaração de Marcos: "Nós não queremos o poder" — dá uma outra dimensão, de não confrontar o poder com os mesmos métodos usados pelo poder, ou seja: exército contra exército, mortes contra mortes.

O segundo aspecto era que Marcos não estava falando de classes sociais, de opressores e de oprimidos. Estava falando a artistas, a jovens e velhos, operários, rapazes que fazem entregas, gays e lésbicas, com uma linguagem completamente nova. Ele estava falando de sonhos, de poesia, de um exército nascido para dissolver. Isso me causou uma forte impressão. E também influenciou a nossa percepção sobre o problema revolucionário, sobre a transformação do mundo em que vivemos. Naturalmente, "um outro mundo é possível" (o slogan do Fórum Social Mundial), mas se o poder não permitir que ele exista, o que fazer? Essa é uma outra ruptura. Acredito que na Argentina vocês têm um laboratório político transversal. Colarinhos brancos e operários juntos batendo panelas.

Queremos um outro mundo onde muitos mundos sejam possíveis. É uma ruptura com relação à teoria de que a ditadura do proletariado construirá uma sociedade melhor.

Em terceiro lugar, também pensávamos que Marcos estava falando da situação dos índios mexicanos. Nos demos conta que tínhamos que começar a pensar naqueles que se encontram na pior situação social em todo o mundo, para podermos construir uma sociedade melhor. Finalmente, vemos as guerrilhas zapatistas rompendo com a tradição latino-americana de guerrilha. As palavras são armas, tomamos as armas para falar. Não se trata de uma confrontação com o exército federal mexicano. Trata-se de uma confrontação política com o neoliberalismo. Os zapatistas se ergueram em 1º de janeiro de 1994 porque a NAFTA estava entrando em efeito. Eles compreenderam o uso de símbolos numa sociedade de símbolos, de logo. Isso tem um tremendo poder.

Os cacerolazos argentinos influenciarão o mundo, porque trata-se de um novo logo, um instrumento incrivelmente básico: todo mundo tem panelas em casa, mas nem todos têm bandeiras vermelhas. É uma maneira de dizer que podemos todos protestar, não somente os marxistas, os socialistas, os anarquistas, os ativistas políticos, mas toda a população.

Interview

Movimento dei Disobbedienti

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By Ezequiel Marcos Siddig

(Translation: Tamara Mesri)

Luca Casarini is a leader of the former Tute Bianche (demonstrators dressed in white overalls that stood out in the Genoa protests against the G-8 countries last year). Today he is a spokesperson of the Disobedients’ Movement, which, through civil protest, rejects neoliberalism’s policies and has gathered together many of the different Italian groups that participated in Genoa last July. He talked to Ezequiel Siddig in Buenos Aires following the World Social Forum in Porto Alegre, Brazil

EZEQUIEL MARCOS SIDDIG: Is the Disobedients’ Movement globali- phobic?

LUCA CASSARINI: They say we are anti-globalization, but we are more pro-globalization than they are, because we fight for the globalization of human rights, the globalization of a dignified way of life.

Bush, Blair and other state leaders at the G-8 meeting in Genoa last year said that they are the people’s representatives because they had been elected by the people, and that the demonstrators were not. What are your ideas about political representation?

We do not feel we are representatives of the people that do not participate in the movement. We believe that each of us is representative of all of us. What Bush, Blair and Berlusconi say about the representation issue is very strange. For instance, for the United States’ election they need millions of dollars. Who has that money? Not everybody can run for the presidency.

The Italian Parliament’s decision was to support Bush’s war, Bush’s and Bin Laden’s, who are diferentes costados de la misma moneda (different sides of the same coin), because Bin Laden is also a millionaire, has power, and kills civilians. Ninety percent of the members of Parliament voted in favor of war at the same time that a poll carried out by the largest newspaper in my country (Corriere de la Sera) showed that 70 percent of the Italian people were against it. However, Parliament voted for war. What is democracy, then? Making an important decision without asking the people?

Could you be more specific about your conception of political violence?

The violence versus non-violence debate is absurd for us. Compared to G-8 countries, to the ones that kill 15 million people a year by letting them die of starvation, to the ones that prevent millions of people around the world from having running water because of the privatization of the sources, to the ones that make war with extra heavy bombs on a city that does not even know who Bin Laden is, how could one be more violent? It is impossible. This argument about violence against violence is purely ideological. The problem is how to let the conflict arise without driving the whole movement into a civil war, because that is what power wants. How can we be disobedient, how can we create while we violate the unfair laws, how can we create another law that is a Constitutional Law, as Argentinean people wish to? In Brazil, when you talk to somebody living in a favela (shantytown), he will tell you "my life is violence all day long because I am hungry and have no food."

In that case, how can civil society build an effective counter-power able to challenge the political power of states and transnational enterprises?

The first thing we learn from Porto Alegre is we do not have the answer for everything, we have to experiment. However, we can learn from the experiments carried out by other movements around the world. The first thing to consider is that without the construction of a dual power there is neither a chance of experimenting with a new democracy, nor a chance to resist impositions and injustice. As there was not a strong radical protest movement in Argentina, nobody in the world talked about this country. This dualism, then, acts as a space for democratic experimentation, for resistance, because to resist injustice is the right thing to do so as to avoid its repetition. This dualism also functions as a stimulus to reach a kind of power that controls power, that works as a denunciation, as another voice that speaks to the media, that has another point of view different from power.

The second thing to consider is that this space–which I call a "space of the constituent revolt," and that is temporary, not eternal, because it changes–must be used as a place to discuss issues such as municipal democracy. This was largely discussed in Porto Alegre. If this space is only used to protest, power will beat it weaponless. Weapons like the different social projects such as el trueque (barter) that you have in Argentina and that I will promote in Italy: four million people continuously experimenting with a new kind of market, not a mercantile one, but one based on solidarity. It is a project that will continue to develop because it is a concrete alternative to fight poverty. It has grown through small clubs that have been gradually gathering together.

Besides the value of experimentation, does the Disobedients’ Movement have an explicit intention of "making the revolution"?

We have to think how to influence power. We are not going to take control over power, we are not looking for power, we are looking for a counter-power. We want to be in the streets, to be in touch with the neighborhood in a smart way, in permanent conflict, because we have a contradiction between political representation and society. The problem is how to inhabit this conflict. For instance, power tends to turn this conflict into war. If that happens, and a civil war starts, we are going straight to the grave, all of us. As it happened in Buenos Aires and in Genoa, power does not accept these forms of collective participation, because it is afraid of their range and the subsequent transformation it will cause within institutions.

During most of the 20th century, revolutionary movements thought that civil war was the answer to imperialism’s war, and a way to liberation. In Italy, for example, it was the Resistance against fascism. Today, the empire has adopted civil war as an instrument, and capitalism has revolutionized this. In Brazil 137,000 people die per year due to violent actions. It is an un-declared civil war.

In all demonstrations, what the power does is to transform a radical protest into a military problem so as to block it. This is what happened in Genoa. The Cara- binieri killed a 23-year-old compañero, the first person killed in an Italian square in 24 years.

They looked like Latin American "fuerzas del orden" (forces of order).

That is why we have to reflect on this, because it means that we do not have to turn this space of revolt into a warzone. We have to think of the conflict in a different way. We call it "disobedience," conflict and consensus, an action always open to experimentation, open to transform and rethink the movement. We could have gone to Genoa carrying molotovs and we decided not to, because it does not work against the bullets and the Carabinieri’s trucks that chase demonstrators. We also had to confront the police force. We built barricades after they shot at us. But we are always holding ourselves back in order not to be dragged into a civil war. That is what power wants: for the conflict to become a war.

In Argentina, people are regaining the public space with totally different means and with opposition ideas, not with weapons. What is the difference between those leftist militants of the 1970s and todays transnational disobedients?

We saw what happened in Chiapas and it was very important for us, because it allowed us to dream again after the great repression during the 1970s in Italy. Zapatismo ruptured our classical tradition of the institutional Left, which was also a breaking-away from traditional marxism. Zapa- tismo redefined the idea of conflict. For example, Marcos’s statement: "We do not want power"–it gives you another dimension, that of not confronting power with the same methods used by power, that is: army against army, deaths against deaths.

The second thing was that Marcos was not talking about social classes, not talking about the oppressor and the oppressed. He was talking to artists, to young and old people, factory workers, delivery boys, gays and lesbians, with a completely new language. He was talking about dreams, poetry, of an army that was born to dissolve. This made a great impression on me. This also had an influence on our perception about the revolutionary problem, about transformation of the world we live in. Of course "another world is possible" (the slogan of the World Social Forum), if we transform this one, not another planet. This must be understood in Porto Alegre. "Another world is possible," but if power does not allow this, what are you going to do? This is another rupture. I believe that in Argentina you have a transverse political laboratory. White collars and blue collars together hitting cacerolas (saucepans).

We want another world in which there can be many worlds. It is a rupture with the theory that proletarian dictatorship will build a better society.

In the third place, we also thought that Marcos was talking from the situation of Mexican Indians. We realized that we had to start thinking about the ones that are in the worst social situation around the world so as to build a new society. Lastly, we have the Zapatista guerrillas breaking away from the Latin American guerrilla tradition. Words are weapons, we take weapons in order to speak. It is not the confrontation with the federal Mexican army. It is the political confrontation with neo-liberalism. The Zapatistas rose up on January 1, 1994, because NAFTA was going into effect. They understood the use of symbols in a society of symbols, of logo. It has tremendous power.

The Argentinean cacerolazos (banging of saucepans) will influence the world, because it is a new logo, an incredibly basic instrument: saucepans are in everyone’s house, red flags are not. It is a way of saying that we can all protest, not only Marxists, Socialists, Anarchists, political activists, but all the people.

 

 

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