Quando se vê a morte através da lente

 

 


Sebastião Salgado
France Press

11 de setembro de 2001


Vimos imagens terríveis, terrificantes e terrivelmente espetaculares. Já as conhecemos de situações diversas, no imaginário de Hollywood, na fábrica do cinema da catástrofe, e a familiaridade com essas imagens as torna ainda mais insuportáveis.
O atentado como um todo foi concebido pensando nas imagens, como um "storyboard" de tudo o que aconteceu, a cronologia de um filme cheio de seres humanos vivos, verdadeiros, no ato de morrer. A preparação e o planejamento dos atentados levaram em conta, de forma maníaca, o efeito comunicativo da televisão; nunca antes a precisão dos eventos e a sua sucessão havia atingido um efeito tão estupefaciente, que nos deixasse tão sem palavras.

 


Além disso, a língua das imagens é compreensível universalmente e fez -se isso é possível- os eventos ficarem ainda mais ardentes. Entendi uma coisa incrível: não existem limites, não existem mais as fronteiras que acreditávamos garantir a tranquilidade de nossas vidas; destruir tantas vidas de um só golpe é um ato de criminosos assassinos, executado por pessoas que escolheram se tornar isso, que pretendem falar em nome de um mundo que se perdeu, lançar um apelo por parte daqueles que correm o risco de desaparecer.

Os rostos desorientados e desesperados das vítimas do atentado não são diferentes dos rostos dos milhões de desesperados que vi todos esses anos, conscientes de que a vida não tem nada mais a lhes oferecer, de que o mundo os deixou para trás, decidiu pela sua perdição.

A foto da mulher coberta de poeira, envolta em uma nuvem amarela, buscando refúgio após o atentado, me remete às imagens dos trabalhadores na extração de enxofre na Indonésia, escravos, por uns poucos trocados, de uma situação que os excluiu.
Não tenho comentários para as imagens das pessoas que se jogaram do World Trade Center; fiquei totalmente chocado com o que vi. Microscópicos seres humanos desesperados, que caem de uma construção gigantesca, maciça, aparentemente impossível de derrubar, desmoronada em poucos minutos.

Mulher coberta de poeira busca refúgio no lobby de um prédio (Stan Honda/France Press)


Olhando as imagens, naturalmente pensei nos meus "irmãos" fotógrafos, empenhados em documentar essa tragédia. Fazer fotografias em situações como essa é extremamente difícil, e os fotógrafos se arriscam, eles mesmos, muito mais do que se imagina, em seu trabalho. É preciso trabalhar velozmente, sintetizando um fato dessas proporções em poucas imagens, escolher os enquadramentos: tudo isso requer uma prontidão e uma presença de espírito excepcionais.

Os fotógrafos são comumente acusados de querer protagonizar, colocar-se em evidência, mas são testemunhas; muitas vezes, as únicas testemunhas no local. Esses dramas, queiramos ou não, são o espelho da sociedade, e os fotógrafos levam esse espelho a todos.

No mundo de hoje, não existe mais proteção, como a que imaginamos nas décadas passadas; mas, para milhões de seres humanos pertencentes àquele mundo que se optou por deixar para trás, de quem se roubou a dignidade, essa proteção já não existe há muito. Tudo se nivelou. O olhar atônito nas fotos de Colin Powell, de Chirac, de Bush, de Arafat deixa ver o quanto estávamos todos despreparados para este evento. Bush erra ao falar de vingança; estamos mais para um momento de reflexão, uma reflexão impingida.

O poder exercido diariamente no interior de um sistema de certezas foi destruído, aquilo que se acreditava eterno não o é mais. As causas de tudo isso vêm de longe.
Começou uma nova era, e devemos vivê-la fazendo um esforço de elaboração, de pensamento, recolocando em discussão o que acompanha, de modo habitual, as nossas vidas. O equilíbrio preexistente evidentemente não era tanto, e devemos nos esforçar para construir um novo, a partir de outros valores, usando um profundo repensar.
Os agentes do atentado o fizeram tendo às costas uma grande organização, mas o que é mais dramático é que milhões de pessoas se sintam representadas por tudo isso. Para aqueles que não dão mais valor à vida, esses acontecimentos não são diferentes do que houve em Ruanda ou em dezenas de outros lugares do mundo. A divisão do risco faz com que se diminuam as desigualdades: a desestabilização parece possível a cada momento. A vida que uma multidão de pessoas do Terceiro Mundo é obrigada a viver, acostumada ao absurdo, faz mais compreensível e aceitável aos seus olhos um evento baseado na lógica do absurdo.

Um mutilado, v’tima da guerra, anda com muletas em meio ˆs ruinas da avenida Jade Maiwan. Cabul, Afeganist‹o, 1996. Sebastião Salgado


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Texto do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado publicado originalmente no jornal italiano "La Repubblica"

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Tradução de Francesca Angiolillo

 

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