A América é uma religião

Agora, os líderes dos EUA se consideram sacerdotes de uma missão divina para livrar o mundo de seus demônios

 

 

 


George Monbiot
The Guardian

29 de julho de 2003

Tradução Imediata

"A morte de Uday e Qusay", disse o comandante das forças terrestres no Iraque para os repórteres na quarta-feira, "vai ser, definitivamente, uma virada para a resistência". Bem, foi uma virada, mas infelizmente não do tipo que ele imaginava. No dia em que ele fez essa declaração, insurgentes iraquianos mataram um soldado dos EUA e feriram outros seis. No dia seguinte, mataram outros três; durante o fim de semana, assassinaram cinco e feriram sete. Ontem, massacraram mais um e feriram três. Essa foi a pior semana para os soldados dos EUA no Iraque, desde que George Bush declarou que a guerra tinha acabado.

Poucas pessoas acreditam que a resistência naquele país esteja sendo coordenada por Saddam Hussein e sua nociva família, ou de que chegará a um final quando eles forem mortos. Mas entre essas poucas pessoas parecem estar incluídos os comandos civis e militares das forças armadas dos EUA. Pela centésima vez, desde que os EUA invadiram o Iraque, os prognósticos feitos por aqueles que têm acesso à inteligência, revelaram-se menos do que confiáveis do que os prognósticos feitos por aqueles sem acesso a ela. E, pela centésima vez, a inexatidão das previsões oficiais tem sido atribuída a "falhas na inteligência".

A explicação está ficando cada vez mais desgastada. Será que esperam que acreditemos que os membros dos serviços de segurança dos EUA são as únicas pessoas que não podem ver que muitos iraquianos querem se ver livres do exército dos EUA, com o mesmo fervor como queriam se livrar de Saddam Hussein? O que está faltando ao Pentágono e à Casa Branca não é inteligência (ou, pelo menos, do tipo de inteligência que estamos considerando aqui), mas receptividade. Não há falha de informação, mas falha de ideologia.

Para entendermos porque a falha persiste, precisamos antes compreender a realidade, a qual tem sido raramente discutida na imprensa. Os EUA não são mais apenas uma nação. Agora, são uma religião. Seus soldados foram para o Iraque para liberar o povo não somente de seu ditador, seu petróleo e sua soberania, mas também para liberá-los das trevas. Como George Bush disse às suas tropas no dia em que anunciou a vitória: "Onde quer que vocês se dirijam, vocês levam uma mensagem de esperança — uma mensagem que é antiga e sempre nova. Nas palavras do profeta Isaías, "Para os cativos, ‘que saiam’, e para aqueles na escuridão, "que sejam livres".

De forma que os soldados americanos não são mais somente combatentes terrestres; eles se tornaram missionários. Não estão mais simplesmente matando os inimigos; estão expelindo os demônios. As pessoas que reconstruíram os rostos de Uday e Qusay Hussein, descuidadamente se esqueceram de restaurar um par de pequenos chifres em cada sobrancelha, mas a idéia de que esses eram oponentes que pertenciam a outro tipo de reino foi transmitida, todavia. Como todos os que enviam missionários ao exterior, os altos sacerdotes da América não podem conceber que os infiéis possam resistir por meio de seu próprio livre arbítrio; quando se recusam a se converter, é obra do demônio, em seu disfarce atual de ex-ditador do Iraque.

Como Clifford Longley demonstra em seu fascinante livro ‘Chosen People’ (Povo Escolhido), publicado no ano passado, os pais fundadores dos EUA, embora às vezes professassem de outra forma, sentiam que estavam sendo guiados por um propósito divino. Thomas Jefferson argumentava que o Grande Selo dos Estados Unidos deveria representar os israelitas, "conduzidos por uma nuvem de dia e por um pilar de fogo à noite". George Washington proclamava, em seu discurso de inauguração, que cada passo em direção à independência era "caracterizado por alguma marca da providência". Longley argumenta que a formação da identidade americana foi parte de um processo de "supersessão" ("supersession"). A igreja Católica Romana reivindicava que tinha suplantado os judeus como povo eleito, visto que os judeus tinham sido repudiados por Deus. Os protestantes ingleses acusaram os católicos de traírem a fé, e sustentavam que tinham se tornado os bem amados do Senhor. Os revolucionários americanos acreditavam que os ingleses, por sua vez, tinham quebrado o pacto: os americanos, agora, tinham se tornado o povo escolhido, tendo o dever divino de entregar o mundo ao domínio de Deus. Há seis semanas, como para demonstrar que essa crença persiste, George Bush lembrou-se de um comentário de Woodrow Wilson. "A América", ele citou, "tem em si uma energia espiritual com relação à qual nenhuma outra nação pode contribuir, para a liberação da humanidade".

Gradualmente, esta noção de eleição divina foi permeada com uma outra idéia, ainda mais perigosa. Não só os americanos são o povo escolhido de Deus; a América em si mesma é agora percebida como um projeto divino. No seu discurso presidencial de despedida, Ronald Reagan falou de seu país como da "cidade que brilha no topo da colina", uma referência ao Sermão da Montanha. Mas o que Jesus estava descrevendo não era a Jerusalém temporal, mas o reinado dos céus. No relato de Reagan, não somente o reino de Deus podia ser encontrado nos Estados Unidos da América, como também a esfera do inferno podia agora ser localizada na esfera terrestre: o "império do mal" da União Soviética, contra o qual os Seus santos guerreiros deveriam ser lançados.

Desde os ataques a Nova York, essa noção da ‘América, A Divina’ tem sido estendida e refinada. Em dezembro de 2001, Rudy Giuliani, o prefeito da cidade, fez seu principal discurso na St Paul's Chapel, perto do local das torres destruídas. Proclamou: "Tudo o que importa é que vocês abracem a América e compreendam seus ideais e tudo aquilo de que se trata. Abraham Lincoln costumava dizer que o teste do americanismo de um indivíduo era… o quanto ele acreditava na América. Porque somos como uma religião, na realidade. Uma religião secular". A capela na qual ele fez seu discurso tinha sido consagrada não só por Deus, como também pelo fato de que George Washington tinha, um dia, rezado lá. Agora, disse ele, "era uma terra consagrada para que as pessoas pudessem sentir o que era a América". Os Estados Unidos da América não precisam mais clamar por Deus; são Deus, e aqueles que forem ao exterior difundir a luz, o fazem em nome de um domínio divino. A bandeira se tornou tão sagrada quanto a Bíblia; o nome da nação tão sagrado quanto o nome de Deus. A presidência está se tornando um sacerdócio.

Portanto, aqueles que questionam a política externa de George Bush não são mais apenas meros críticos; são blasfemadores, ou "anti-americanos". Os estados estrangeiros que procuram mudar essa política estão perdendo o próprio tempo: pode-se negociar com políticos; não se pode negociar com sacerdotes. Os EUA têm uma missão divina, como sugeriu Bush em janeiro: "defender...as esperanças de toda a humanidade", e expurgar todos os que anseiam por algo que não seja o American way of life.

Os perigos da divindade nacional não precisam de maiores explicações. O Japão foi à guerra nos anos 30 convencido, como George Bush, de que detinha a missão enviada pelos céus de "liberar" a Ásia e estender o domínio do seu império divino. Seria, como tinha previsto o teórico fascista Kita Ikki: "levar a luz às trevas do mundo todo". Aqueles que procuram arrastar os céus para a terra estão destinados somente a engendrar um inferno.

Os livros de George Monbiot 'Poisoned Arrows' (Flechas Envenenadas) e 'No Man's Land' (Terra de Ninguém) foram republicados essa semana pela Green Books.

© Guardian Newspapers Limited 2003

 

Published on Tuesday, July 29, 2003 by the Guardian/UK

America is a Religion

US Leaders Now SeeThemselves as Priests of a Divine Mission to Rid the World of Its Demons

 

by George Monbiot

 

"The death of Uday and Qusay," the commander of the ground forces in Iraq told reporters on Wednesday, "is definitely going to be a turning point for the resistance." Well, it was a turning point, but unfortunately not of the kind he envisaged. On the day he made his announcement, Iraqi insurgents killed one US soldier and wounded six others. On the following day, they killed another three; over the weekend they assassinated five and injured seven. Yesterday they slaughtered one more and wounded three. This has been the worst week for US soldiers in Iraq since George Bush declared that the war there was over.

Few people believe that the resistance in that country is being coordinated by Saddam Hussein and his noxious family, or that it will come to an end when those people are killed. But the few appear to include the military and civilian command of the United States armed forces. For the hundredth time since the US invaded Iraq, the predictions made by those with access to intelligence have proved less reliable than the predictions made by those without. And, for the hundredth time, the inaccuracy of the official forecasts has been blamed on "intelligence failures".

The explanation is wearing a little thin. Are we really expected to believe that the members of the US security services are the only people who cannot see that many Iraqis wish to rid themselves of the US army as fervently as they wished to rid themselves of Saddam Hussein? What is lacking in the Pentagon and the White House is not intelligence (or not, at any rate, of the kind we are considering here), but receptivity. Theirs is not a failure of information, but a failure of ideology.

To understand why this failure persists, we must first grasp a reality which has seldom been discussed in print. The United States is no longer just a nation. It is now a religion. Its soldiers have entered Iraq to liberate its people not only from their dictator, their oil and their sovereignty, but also from their darkness. As George Bush told his troops on the day he announced victory: "Wherever you go, you carry a message of hope - a message that is ancient and ever new. In the words of the prophet Isaiah, 'To the captives, "come out," and to those in darkness, "be free".'"

So American soldiers are no longer merely terrestrial combatants; they have become missionaries. They are no longer simply killing enemies; they are casting out demons. The people who reconstructed the faces of Uday and Qusay Hussein carelessly forgot to restore the pair of little horns on each brow, but the understanding that these were opponents from a different realm was transmitted nonetheless. Like all those who send missionaries abroad, the high priests of America cannot conceive that the infidels might resist through their own free will; if they refuse to convert, it is the work of the devil, in his current guise as the former dictator of Iraq.

As Clifford Longley shows in his fascinating book Chosen People, published last year, the founding fathers of the USA, though they sometimes professed otherwise, sensed that they were guided by a divine purpose. Thomas Jefferson argued that the Great Seal of the United States should depict the Israelites, "led by a cloud by day and a pillar of fire by night". George Washington claimed, in his inaugural address, that every step towards independence was "distinguished by some token of providential agency". Longley argues that the formation of the American identity was part of a process of "supersession". The Roman Catholic church claimed that it had supplanted the Jews as the elect, as the Jews had been repudiated by God. The English Protestants accused the Catholics of breaking faith, and claimed that they had become the beloved of God. The American revolutionaries believed that the English, in turn, had broken their covenant: the Americans had now become the chosen people, with a divine duty to deliver the world to God's dominion. Six weeks ago, as if to show that this belief persists, George Bush recalled a remark of Woodrow Wilson's. "America," he quoted, "has a spiritual energy in her which no other nation can contribute to the liberation of mankind."

Gradually this notion of election has been conflated with another, still more dangerous idea. It is not just that the Americans are God's chosen people; America itself is now perceived as a divine project. In his farewell presidential address, Ronald Reagan spoke of his country as a "shining city on a hill", a reference to the Sermon on the Mount. But what Jesus was describing was not a temporal Jerusalem, but the kingdom of heaven. Not only, in Reagan's account, was God's kingdom to be found in the United States of America, but the kingdom of hell could also now be located on earth: the "evil empire" of the Soviet Union, against which His holy warriors were pitched.

Since the attacks on New York, this notion of America the divine has been extended and refined. In December 2001, Rudy Giuliani, the mayor of that city, delivered his last mayoral speech in St Paul's Chapel, close to the site of the shattered twin towers. "All that matters," he claimed, "is that you embrace America and understand its ideals and what it's all about. Abraham Lincoln used to say that the test of your Americanism was ... how much you believed in America. Because we're like a religion really. A secular religion." The chapel in which he spoke had been consecrated not just by God, but by the fact that George Washington had once prayed there. It was, he said, now "sacred ground to people who feel what America is all about". The United States of America no longer needs to call upon God; it is God, and those who go abroad to spread the light do so in the name of a celestial domain. The flag has become as sacred as the Bible; the name of the nation as holy as the name of God. The presidency is turning into a priesthood.

So those who question George Bush's foreign policy are no longer merely critics; they are blasphemers, or "anti-Americans". Those foreign states which seek to change this policy are wasting their time: you can negotiate with politicians; you cannot negotiate with priests. The US has a divine mission, as Bush suggested in January: "to defend ... the hopes of all mankind", and woe betide those who hope for something other than the American way of life.

The dangers of national divinity scarcely require explanation. Japan went to war in the 1930s convinced, like George Bush, that it possessed a heaven-sent mission to "liberate" Asia and extend the realm of its divine imperium. It would, the fascist theoretician Kita Ikki predicted: "light the darkness of the entire world". Those who seek to drag heaven down to earth are destined only to engineer a hell.

· George Monbiot's books 'Poisoned Arrows' and 'No Man's Land' are republished this week by Green Books.

© Guardian Newspapers Limited 2003

 

 

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