Os valores sem preço

 

 


Eduardo Galeano
Fórum Social Mundial 2003

29 de janeiro de 2003

Tradução Imediata

Nesses dias estão ocorrendo, em muitos países ao mesmo tempo, numerosas manifestações populares contra a vocação guerreira dos donos do planeta. Nas ruas de muitas cidades, essas manifestações dão testemunho de outro mundo possível. O mundo, tal como é, transpira violência por todos os poros e está submetido a uma cultura militar que ensina a matar e a mentir.

David Grossman, que foi tenente coronel do exército dos Estados Unidos e é especializado em pedagogia militar, demonstrou que o homem não está naturalmente inclinado para a violência. Contra o que se supõe, não é nada fácil ensinar o próximo a matar. A educação para a violência, que brutaliza o soldado, exige um intenso e prolongado adestramento. Segundo Grossman, esse adestramento começa nos quartéis, aos dezoito anos de idade. Fora dos quartéis, começa aos dezoito meses de idade. Desde muito cedo, a televisão dita esses cursos a domicílio.

Seu compatriota, o escritor John Reed, tinha comprovado, em 1917, que "as guerras crucificam a verdade". Muitos anos depois, outro compatriota, o presidente Bush Pai, que havia desatado a primeira guerra contra o Iraque com o nobre propósito de liberar o Kuwait, publicou suas memórias. Nelas, confessa que os Estados Unidos tinham bombardeado o Iraque porque não se podia permitir "que um poder regional hostil fizesse de refém uma boa parte do suprimento mundial de petróleo". Talvez, quem sabe, alguma vez o presidente Bush Filho publicará um credo de erratas sobre a sua própria guerra contra o Iraque. Onde se diz: "Cruzada do Bem contra o Mal", deve ler-se: "Petróleo, petróleo e petróleo".

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Mais de um credo de erratas será necessário. Por exemplo, deverá se esclarecer que onde se diz: "Comunidade internacional", deve ler-se: "Chefes guerreiros e grandes banqueiros".

Quantos são os arcanjos da paz que nos defendem dos demônios da guerra? Cinco. Os cinco países que têm direito de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas. E esses guardiões da paz são, ademais, os principais fabricantes de armas. Em boas mãos estamos.

E quantos são os donos da democracia? Os povos votam, porém os banqueiros vetam. Uma monarquia da tripla coroa reina sobre o mundo. Cinco países tomam as decisões no Fundo Monetário Internacional. No Banco Mundial, mandam sete. Na Organização Mundial de Comércio, todos os países têm direito de voto, porém jamais se vota. Essas organizações que governam o mundo merecem a nossa gratidão: elas afogam nossos países, porém depois nos vendem salva-vidas de chumbo.

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Em 1995, a American Psychiatric Association publicou um informe sobre a patologia criminal. Qual é, segundo os expertos, o aspecto mais típico dos delinquentes habituais? A inclinação para a mentira. E nos perguntamos: Não é esse o mais perfeito identikit do poder universal?

O que se deve ler, por exemplo, onde se diz: "liberdade de trabalho"? Deve ler-se: direito dos empresários de jogar no lixo dois séculos de conquistas operárias. Trabalha-se ao dobro em troca da metade: horários de borracha, salários anões, demissões sem recompensas, e que Deus se ocupe dos acidentes, das enfermidades e da velhice. As principais empresas multinacionais, Wal-Mart e McDonald's, proíbem expressamente os sindicatos. Quem se filia a um sindicato perde seu emprego no ato. No mundo de hoje, que castiga a honestidade e recompensa a falta de escrúpulos, o trabalho é objeto de desprezo. O poder se disfarça de destino, diz ser eterno, e muita gente salta da esperança como se ela fosse um cavalo cansado. Por isso a eleição de Lula à presidência do Brasil vai muito além das fronteiras desse país: a vitória de um operário sindicalista que encarna a dignidade do trabalho, ajuda a difundir as vitaminas de que todos necessitamos contra a peste da desesperança.

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Para que não se diga que nós, os do contra e ressentidos de sempre, nos reunimos em Porto Alegre…esclareçamos que estamos de acordo sobre uma coisa, com os mais altos dirigentes do mundo: nós também somos inimigos do terrorismo. Estamos contra o terrorismo em todas as suas formas. Poderíamos propor a Davos uma plataforma comum. E ações para capturar os terroristas, que poderiam começar colando-se em todas as paredes do planeta cartazes com a inscrição Wanted:

- Procuram-se todos os mercadores de armas, que necessitam da guerra como os fabricantes de abrigos necessitam do frio.

- Procura-se a banda internacional que sequestra países e jamais devolve seus prisioneiros, embora cobrem resgates multimilionários que na linguagem do submundo se chamam serviços da dívida.

- Procuram-se os delinquentes que, em escala planetária, roubam comida, estrangulam salários e assassinam empregos.

- Procuram-se os estupradores da terra, aos envenenadores da água e os ladrões de bosques.

- E também se procuram os fanáticos da religião do consumo, que desataram a guerra química contra o ar e o clima deste mundo.

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O poder identifica valor e preço. Diga-me quanto pagam por ti, e te direi quanto vales. Porém há valores que estão mais além de qualquer cotização. Não há quem os compre, porque não estão a venda. Estão fora do mercado, e por isso sobreviveram.

Profundamente vivos, esses valores são a energia que move os músculos secretos da sociedade civil. Provêm da memória mais antiga e do mais antigo sentido comum. Esse mundo de agora, essa civilização do salve-se quem puder e do cada um por si, está enferma de amnésia e perdeu o sentido comunitário, que é o pai do sentido comum. Em épocas remotas, nos primórdios dos tempos, quando éramos os bichos mais vulneráveis da zoologia terrestre, quando não passávamos da categoria de almoço fácil na mesa de nossos vizinhos vorazes, fomos capazes de sobreviver, contra toda a evidência, porque soubemos nos defender juntos e porque soubemos compartilhar a comida. Hoje em dia, é mais do que nunca necessário recordar essas velhas lições do sentido comum.

Defender-nos juntos, ponhamos por caso, para que não nos roubem a água. A água, cada vez mais escassa, foi privatizada em muitos países, e está nas mãos das grandes corporações multinacionais. (Daqui a pouco, se continuarmos assim, também privatizarão o ar: por não pagar por ele, não sabemos valorizá-lo e não merecemos respirá-lo. ) Para que a água continue sendo um direito, e não um negócio, um povoado desprivatizou a água na região boliviana de Cochabamba. As comunidades camponesas marcharam desde os vales e bloquearam a cidade. Foram recebidos a balas. Porém a longo prazo, depois de muita luta, recuperaram a água, a irrigação de suas terras, que o governo havia entregado a uma corporação britânica. Isso ocorreu faz um par de anos. Defender-nos juntos: falando da água, outro exemplo mais recente. O petróleo move a sociedade de consumo, como se sabe, e como também se sabe, tem maus costumes. Entre outras manias, tem aquela de derrubar governos, provocar guerras, intoxicar o ar e deixar podre a água. Há pouco, uma maré negra, pegajosa e mortal, cobriu as costas da Galícia e ainda mais além. Um barco petrolífero partiu-se ao meio e derramou milhares e milhares de litros de fuel-oil, com a irresponsabilidade e a impunidade que se tornaram costume nesses tempos em que o mercado manda e o Estado não controla nada. E então, frente a um Estado cego e a um governo surdo, que não fez mais do que encolher os ombros, os músculos secretos da sociedade civil desataram a sua energia: uma multidão de voluntários enfrentou a invasão inimiga com mãos limpas, armada de mastros e estacas e de tudo aquilo que pudesse encontrar. Os voluntários não derramaram lágrimas de crocodilo nem pronunciaram discursos de teatro.

Defender-nos juntos e compartilhar comida: uma tonelada de comida e de roupa chegou recentemente, de trem, ao rincão mais pobre da província argentina de Tucumán, onde há crianças que morrem de fome. E esse envio solidário provinha dos ‘cartoneros’, os pobres mais pobres de Buenos Aires, que ganham a vida revolvendo o lixo, porém são capazes de compartilhar o pouco, ou quase nada, que têm.

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Qual é a palavra que mais se escuta em todas as línguas? A palavra eu. Eu, eu, eu. Apesar disso, um estudioso das línguas indígenas, Carlos Lenkersdorf, revelou que a palavra mais usada pelas comunidades maias, a que está no centro de seus dizeres e viveres, é a palavra nós. Em Chiapas, nós se diz tik.

Para isso nasceu e cresceu este Fórum Social Mundial, na cidade de Porto Alegre, modelo universal da democracia participativa: para dizermos nós. Tik, tik, tik.

* Palavras pronunciadas no Terceiro Fórum Social Mundial. Direitos exclusivos de Página/12, na Argentina.

29 de enero del 2003

 

FSM 2003

Los valores sin precio

Eduardo Galeano

 

En estos días están ocurriendo, en muchos países a la vez, numerosas manifestaciones populares contra la vocación guerrera de los amos del planeta. En las calles de muchas ciudades, esas manifestaciones dan testimonio de otro mundo posible. El mundo tal cual es transpira violencia por todos los poros y está sometido a una cultura militar que enseña a matar y a mentir.

David Grossman, que fue teniente coronel del ejército de los Estados Unidos y está especializado en pedagogía militar, ha demostrado que el hombre no está naturalmente inclinado a la violencia. Contra lo que se supone, no es nada fácil enseñar a matar al prójimo. La educación para la violencia, que brutaliza al soldado, exige un intenso y prolongado adiestramiento. Según Grossman, ese adiestramiento comienza, en los cuarteles, a los dieciocho años de edad. Fuera de los cuarteles, comienza a los dieciocho meses de edad. Desde muy temprano, la televisión dicta esos cursos a domicilio.

Su compatriota, el escritor John Reed, había comprobado, en 1917, que "las guerras crucifican la verdad". Muchos años después, otro compatriota, el presidente Bush Padre, que había desatado la primera guerra contra Irak con el noble propósito de liberar a Kuwait, publicó sus memorias. En ellas confiesa que los Estados Unidos habían bombardeado Irak porque no se podía permitir "que un poder regional hostil tuviera de rehén buena parte del suministro mundial de petróleo". Quizá, quien sabe, alguna vez el presidente Bush Hijo publicará una fe de erratas sobre su propia guerra contra Irak. Donde dice: "Cruzada del Bien contra el Mal", debe leerse: "Petróleo, petróleo y petróleo".

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Más de una fe de erratas será necesaria. Por ejemplo, habrá que aclarar que donde dice: "Comunidad internacional", debe leerse: "Jefes guerreros y grandes banqueros".

¿Cuántos son los arcángeles de la paz que nos defienden de los demonios de la guerra? Cinco. Los cinco países que tienen derecho de veto en el Consejo de Seguridad de las Naciones Unidas. Y esos custodios de la paz son, además, los principales fabricantes de armas. En buenas manos estamos.

¿Y cuántos son los dueños de la democracia? Los pueblos votan, pero los banqueros vetan. Una monarquía de triple corona reina sobre el mundo. Cinco países toman las decisiones en el Fondo Monetario Internacional. En el Banco Mundial, mandan siete. En la Organización Mundial de Comercio, todos los países tienen derecho de voto, pero jamás se vota. Estas organizaciones, que gobiernan el mundo, merecen nuestra gratitud: ellas ahogan a nuestros países, pero después nos venden salvavidas de plomo.

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En 1995, la American Psychiatric Association publicó un informe sobre la patología criminal. ¿Cuál es, según los expertos, el rasgo más típico de los delincuentes habituales? La inclinación a la mentira. Y uno se pregunta: ¿No es éste el más perfecto identikit del poder universal?

¿Qué debe leerse, por ejemplo, donde dice: "libertad de trabajo"? Debe leerse: derecho de los empresarios a arrojar al tacho de la basura dos siglos de conquistas obreras. Se trabaja el doble a cambio de la mitad: horarios de goma, salarios enanos, despidos libres, y que Dios se ocupe de los accidentes, las enfermedades y la vejez. Las principales empresas multinacionales, Wal-Mart y McDonald's, prohíben expresamente los sindicatos. Quien se afilia un sindicato pierde su empleo en el acto. En el mundo de hoy, que castiga la honestidad y recompensa la falta de escrúpulos, el trabajo es objeto de desprecio. El poder se disfraza de destino, dice ser eterno, y mucha gente se baja de la esperanza como si fuera un caballo cansado. Por eso la elección de Lula a la presidencia del Brasil va mucho más allá de las fronteras de este país: la victoria de un obrero sindicalista, que encarna la dignidad del trabajo, ayuda a difundir las vitaminas que todos necesitamos contra la peste de la desesperanza.

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Para que no se diga que en Porto Alegre nos reunimos los contreras y resentidos de siempre, aclaremos que en algo estamos de acuerdo con los más altos dirigentes del mundo: también nosotros somos enemigos del terrorismo. Estamos contra el terrorismo en todas sus formas. Podríamos proponer a Davos una plataforma común. Y acciones comunes para capturar a los terroristas, que empezarían por la pegatina, en todas las paredes del planeta, de carteles que digan Wanted:

-Se busca a los mercaderes de armas, que necesitan la guerra como los fabricantes de abrigos necesitan el frío.

-Se busca a la banda internacional que secuestra países y jamás devuelve a sus cautivos, aunque cobra rescates multimillonarios que el lenguaje del hampa llama servicios de deuda.

-Se busca a los delincuentes que en escala planetaria roban comida, estrangulan salarios y asesinan empleos.

-Se busca a los violadores de la tierra, a los envenenadores del agua y a los ladrones de bosques.

-Y también se busca a los fanáticos de la religión del consumo, que han desatado la guerra química contra el aire y el clima de este mundo.

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El poder identifica valor y precio. Dime cuánto pagan por ti, y te diré cuánto vales. Pero hay valores que están más allá de cualquier cotización. No hay quien los compre, porque no están en venta. Están fuera del mercado, y por eso han sobrevivido.

Porfiadamente vivos, esos valores son la energía que mueve los músculos secretos de la sociedad civil. Provienen de la memoria más antigua y del más antiguo sentido común. Este mundo de ahora, esta civilización del sálvese quien pueda y cada cual a lo suyo, está enferma de amnesia y ha perdido el sentido comunitario, que es el papá del sentido común. En épocas remotas, en lo más temprano de los tiempos, cuando éramos los bichos más vulnerables de la zoología terrestre, cuando no pasábamos de la categoría de almuerzo fácil en la mesa de nuestros vecinos voraces, fuimos capaces de sobrevivir, contra toda evidencia, porque supimos defendernos juntos y porque supimos compartir la comida. Hoy en día, es más que nunca necesario recordar esas viejas lecciones del sentido común.

Defendernos juntos, pongamos por caso, para que no nos roben el agua. El agua, cada vez más escasa, ha sido privatizada en muchos países, y está en manos de las grandes corporaciones multinacionales. (De aquí a poco, si seguimos así, también privatizarán el aire: por no pagarlo, no sabemos valorarlo y no merecemos respirarlo.) Para que el agua siga siendo un derecho, y no un negocio, una pueblada desprivatizó el agua, en la región boliviana de Cochabamba. Las comunidades campesinas marcharon desde los valles y bloquearon la ciudad. Les contestaron a balazos. Pero a la larga, después de mucho pelear, recuperaron el agua, el riego de sus sembradíos, que el gobierno había entregado a una corporación británica. Esto ocurrió hace un par de años. Defendernos juntos: hablando del agua, otro ejemplo más reciente. El petróleo mueve la sociedad de consumo, como se sabe, y, como también se sabe, tiene malas costumbres. Entre otras manías, se le da por derribar gobiernos, provocar guerras, intoxicar el aire y pudrir el agua. Hace poco, la marea negra, pegajosa y mortal, cubrió la mar y las costas de Galicia y más allá. Un barco petrolero se partió por la mitad y derramó miles y miles de litros de fuel-oil, con la irresponsabilidad y la impunidad que se han vuelto costumbre en estos tiempos en que el mercado manda y el Estado no controla nada. Y entonces, ante un Estado ciego y un gobierno sordo, que no hizo más que encogerse de hombros, los músculos secretos de la sociedad civil desataron su energía: una multitud de voluntarios enfrentó la invasión enemiga a mano limpia, armada de palos y tachos y lo que se pudiera encontrar. Los voluntarios no derramaron lágrimas de cocodrilo ni pronunciaron discursos de teatro.

Defendernos juntos y compartir la comida: una tonelada de comida y de ropa llegó recientemente, en tren, al rincón más pobre de la provincia argentina de Tucumán, donde hay niños que mueren de hambre. Y ese envío solidario provenía de los cartoneros, los pobres más pobres de Buenos Aires, que se ganan la vida revolviendo la basura pero son capaces de compartir lo poco, lo casi nada, que tienen.

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¿Cuál es la palabra que más se escucha en el mundo, en casi todas las lenguas? La palabra yo. Yo, yo, yo. Sin embargo, un estudioso de las lenguas indígenas, Carlos Lenkersdorf, ha revelado que la palabra más usada por las comunidades mayas, la que está en el centro de sus decires y vivires, es la palabra nosotros. En Chiapas, nosotros se dice tik.

Para eso ha nacido y crecido este Foro Social Mundial, en la ciudad de Porto Alegre, modelo universal de la democracia participativa: para decir nosotros. Tik, tik, tik.

* Palabras pronunciadas en el tercer Foro Social Mundial. Derechos exclusivos de Página/12 en Argentina.

 

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