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Millôr Fernandes, em Ipanema, Rio de Janeiro, 1958

   

 

ESPECIAL MILLÔR FERNANDES

por SILVIO MIELI

 

A INFORMAÇÃO DE(S)PONTA

HUMOR METAFÍSICO

ARTE É INTRIGA

Desenho de Millôr Fernandes para ilustrar o seu Hai-Kai:

A vida é um saque

Que se faz no espaço

Entre o tic e o tac

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Informação de(s)ponta

Uma auto-caricatura de Millôr Fernandes trajado de índio, enterrando uma lança vermelha na areia, chamava a matéria de capa: "Pela demarcação das terras de Ipanema; Millôr Fernandes refaz os caminhos do bairro que escolheu para viver". (1) Assim como as madalenas embebidas em chá instigaram a memória involuntária de Marcel Proust no "Caminho de Swann" (primeiro volume de "Em Busca do Tempo Perdido"), um buraco aberto no asfalto da rua Visconde de Pirajá, deixando à mostra sinais dos trilhos por onde passavam antigos bondes, remeteu Millôr Fernandes a uma Ipanema que não existe mais. Antes da exposição bem-humorada dos motivos necessários e suficientes para a demarcação do novo território Ipanemense, Millôr esclarece:

A vantagem de ter vivido depois dele (2) (nasci dois anos depois de sua morte), tê-lo lido exaustivamente (mentira, ele não cansa), ter lido também algum Freud e, sobretudo, chegado ao computador, é que meu metapensamento se tornou instantâneo. Penso no que penso, e como penso e porque penso, o tempo todo, sei logo se a informação me foi dada pelo olfato, pela vista, pelo gosto, pelo ouvido, ou pelo tato (o mais amplo dos sentidos e o único ativo). (3)

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Esta síntese poderia prefaciar qualquer uma das suas obras em prosa (peças de teatro, coletâneas de pensamentos); em verso (livros de poesias); introduzir alguns de seus hai-kais ou integrar o catálogo de uma das cinco exposições que realizou ao longo de mais de 50 anos de carreira. Cairia muito bem na última delas, a mostra coletiva (4) da qual aceitou participar, com cinco guaches sobre papel, por causa do nome: "Jogo de Memória".

Capa da Revista de Domingo do Jornal do Brasil, ano 15, nº 764, 23/12/90, p.14

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Entretanto a articulação lúdica dos elementos da memória, do pensamento/metapensamento, instantaneidade, percepção, pulsa mais forte no tabuleiro do jogo onde a informação desponta no encontro entre duas linguagens. Ao invés de criar um mercado para os seus desenhos, Millôr preferiu investir nos processos industriais gráficos, reproduzindo-os em jornais e revistas, espaços abrangentes e economicamente recompensadores. Assim, ele demarcou parte do seu território criativo numa região fronteiriça entre as artes gráficas...

Quando visitei pela primeira vez a Itália, em 1952, fiquei encantado com os pintores pré-renascentistas; depois veio o entusiasmo por Degas. Depois Van Gogh e Paul Klee. Agora os humoristas mais modernos. São eles minha maior admiração... Os humoristas e os artistas gráficos se perdem menos do que os artistas plásticos em geral... Pode ser uma piada ocasional, mas ela deve ter também um alcance social. Ou ser da mais completa e ampla força metafísica... O que tem acontecido é que os artistas plásticos estão se esquecendo do prazer da arte em nome de teorias. Cada desenho que faço me dá prazer. Na medida em que você se diverte, o resultado é melhor. É mais livre. Na minha exposição (5) estou lançando o abstracionismo lúdico.(6)

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E o outro estado lúdico de Millôr Fernandes é a comunicação verbal:

Eu não estou negando a beleza de uma tela, agora são 5 bilhões de pessoas nesse mundo falando, 5 bilhões de pessoas criando na palavra. Só a palavra tem 5 bilhões de pessoas criando permanentemente. Por mais pintores que existam, por mais que a música tenha atingido a classe média, não tem tanta gente desenvolvendo um produto como a palavra...Mas eu dou um exemplo mais clássico. Os chineses têm uma frase que se repete cansativamente: "Uma imagem vale mil palavras". E eu sempre digo: diz isso sem palavra! (7)

O traço de Millôr Fernandes (Fig.1) sofreu grande influência do artista, desenhista e caricaturista Saul Steinberg. "Deste eu diria apenas uma palavra — fulgurante. Eu o considero o maior artista de todo o séc. XX", confessaria Millôr. Em 1955 ambos dividiram o primeiro prêmio num concurso de desenhos em Buenos Aires. Mas a informação cotidiana, valorizada pelos vínculos entre a linguagem verbal e não verbal afirmaria-se como sua marca registrada desde a seção POST-SCRIPTUM-POSTE ESCRITO, que aos 16 anos mantinha na revista carioca "A Cigarra". Depois em "O Cruzeiro", com a célebre seção PIF-PAF, a mais lida da revista que é até hoje o maior fenômeno de vendagem no país. Millôr dispunha de duas páginas onde alternava desenhos, histórias, poemas, testes, além de eventuais reportagens. Foi despedido por causa de uma delas, "A verdadeira história do Paraíso", assinada pelo filósofo Emmanuel Vão Gôgo, um dos seus pseudônimos, que afirmava coisas do tipo: "Mestre, respeito o senhor, mas não a sua obra. Que paraíso é esse que tem cobra?". (8)

Desenho de Saul Steinberg

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A primeira exposição ocorreu em 1957, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O jornal carioca "Correio da Manhã", festejava a "transformação do alegre caricaturista de ontem no fino humorista de hoje, este bem pouco conhecido, pois seus melhores trabalhos permanecem sempre no círculo dos seus íntimos à espera da grande oportunidade". (9) Dois trabalhos dessa época chamam atenção, o "Memento de Ravena", caricaturando a relação do público frente à obra de arte (o casal quer perenizar o momento da visita aos mosaicos ravenianos) e o "Enterro de Mondrian", destruído no incêndio do MAM-Rio e refeito em 1977. Neste último, as linhas geométricas, objeto de tantos estudos por parte de Mondrian, transformam-se em estandartes carregados por personagens vestidos de padres.

"Memento de Ravena" (1957). Bico de pena. Millôr assinou o trabalho como Emanuel Vão Gôgo

 

Millôr Fernandes, "Enterro de Mondrian" (1957-1977). Tríptico, nanquin e guache

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Em 1964 Millôr funda com Ziraldo, Jaguar e Fortuna (pioneiros do cartum no Brasil) e outros desenhistas o jornal quinzenal "O Pif-Paf", considerado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) do regime militar como o início da imprensa alternativa no Brasil. O jornal só chegou ao oitavo número. Uma advertência escrita por Millôr praticamente antecipa as causas da vida curta do "Pif-Paf":

Quem avisa, amigo é: se o governo continuar deixando que certos jornalistas falem em eleições; se o governo continuar deixando que determinados jornais façam restrições à sua política financeira; se o governo continuar deixando que alguns políticos teimem em manter suas candidaturas; se o governo continuar deixando que algumas pessoas pensem por sua própria cabeça; e, sobretudo, se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda sua crítica e irreverência, dentro em breve estaremos caindo numa democracia. (10)

No final dos anos 60 funda "O Pasquim", que mexeu visivelmente com a mentalidade jornalística durante os anos de censura cerrada: "Não estou desanimando vocês não, mas uma coisa eu digo: se essa revista for mesmo independente não dura três meses, se durar três meses, não é independente. Longa vida a essa revista!",(11) augurava Millôr no primeiro número do "Pasquim" que não conheceu a segunda metade da década de 70. Aqui também uma observação antecipa a morte prematura: "P.S....nós, os humoristas, temos bastante importância para ser presos e nenhuma para ser soltos". (12)

Muitas das idéias desenvolvidas no "Pasquim", Millôr aprimoraria durante a sua passagem pelas revistas "Veja", "Isto É" , "Isto É - Senhor" e no seu "quadrado" diário no "Jornal do Brasil" . Destaque para as colunas rápidas com definições objetivas, como as Reflexões sem Dor ("O dedo do destino não deixa impressão digital"); os Apotegmas do Vil Metal ("Só o tenho em boa conta porque no fim pago a conta"); o Dicionário das Idéias Imediatas (verbete Deus: "agora com os astronautas se mudou para mais longe", verbete Ator: "não representa nada"); as Definições Definitivas, Ora Pílulas, Perguntas Impossíveis de Responder ; os Poemeus ("Quem vai julgar/Quem é belo ou feio/o que me odeia/ou eu que os odeio?"), os Provérbios nada Proverbiais ("Deus dá o frio a quem não tem dentes") ou a seção Livre pensar é só Pensar: "Cada um carrega a sua cruz. Ainda bem que eu não sou religioso".

Millôr Fernandes e a "Abertura Política" de 1978, em Veja de 20/12/78

Uma das marcas de Millôr Fernandes nas suas intervenções na imprensa escrita: a mistura de frases proverbiais sintéticas e objetivas com cartuns ou caricaturas, em Veja de 02/04/80

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Humor Metafísico

Em uma das coletâneas de seus Hai-Kais, Millôr Fernandes faz uma pequena introdução para fins didáticos aos não iniciados na arte oriental dos Hai-Kus ou Hokkus (mais conhecidos como Hai-Kais mesmo), afirmando que "apesar de sua forma frágil, quase volátil, dependendo da imagística mais do que qualquer outra poesia, uma implosão, não uma explicitação, o Hai-Kai é, contudo, uma forma fundamentalmente popular e, inúmeras vezes, humorística, no mais metafísico sentido da palavra". (13) O importante será observar que a obra de Millôr, desde o desenho a bico de pena até a utilização do computador, é que é metafísica, no mais humorístico sentido da palavra.

 

Desenho de Millôr Fernandes para ilustrar o seu Hai-Kai:

Probleminhas terrenos:

Quem vive mais

Morre menos ?

 

Quando Henri Bergson contrapõe humor de um lado e ironia de outro, está, na verdade, criando uma dimensão antagônica entre o real e o ideal, o que é do que deveria ser. A ironia, segundo Bergson, consiste em enunciar "o que deveria ser fazendo crer que é precisamente o que é". (14) Ao contrário, o humor procede descrevendo "minuciosa e meticulosamente o que é fingindo crer que é assim mesmo que as coisas deveriam ser". (15) Assim, ambas são formas de sátiras, mas a ironia é de natureza oratória, pertence à categoria do ideal ligado à moral ("a idéia do bem que deveria ser"), enquanto o humor pertence ao real, de onde tenta buscar a essência:

O humorista é aqui um moralista disfarçado de sábio, algo como um anatomista que só faria a dissecação para nos desgostar; e o humor, no sentido estrito do termo, é mesmo uma transposição do moral em científico." (16)

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"Ora, o humor e a metafísica encontram-se no mesmo exercício de dissecação da realidade tal como ela é e não como o bom senso ou o senso comum gostariam que ela fosse. É por isso que o paradoxo, um dos recursos lingüísticos preferidos de Millôr, é o pano de fundo para a aproximação entre humor e metafísica. O bom senso, operando uma verdadeira anulação das diferenças, afirma-se como "a ideologia das classes médias, que se reconhecem na igualdade como produtos abstratos", define Deleuze. Já no senso comum os diferentes objetos igualizam-se "e os diferentes eus tendem a se uniformizar". Logo, o que Deleuze identifica no paradoxo como manifestação da filosofia (ao contrário do bom senso), é válido também para os efeitos paradoxais no humor:

"...o paradoxo quebra o exercício comum e leva cada faculdade diante do seu próprio limite, diante de seu incomparável, o pensamento diante do impensável que, todavia, só ele pode pensar, a memória diante do esquecimento, que é também seu imemorial, a sensibilidade diante do insensível, que se confunde com o seu intensivo. (DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro, Graal, 1988, p.365)

No hai-kai destacado no início, humor e metafísica encontram-se para atingir o que Bergson considera essencial na atividade do caricaturista, que é o de adivinhar sob as harmonias superficiais da forma, as revoltas profundas da matéria. (17) Mas ambos os recursos estarão tanto mais próximos da realidade em constante transformação quanto menos lançar mão dos artifícios analíticos para retratar os fenômenos. Tomemos como exemplo a caricatura publicada no "Jornal do brasil", em abril de 1988.

Não houve maior ironia do destino do que José Sarney, o vice, assumir a presidência nas circunstâncias em que o Brasil vivia em 1985. Diante dessa ironia maior, portanto, a sutil ironia de Millôr denuncia que a situação por si só já estaria invertida (do latim vice-versa: às avessas). Estamos ainda no nível do que deveria ser. Ocorre que ele não só quer fazer crer que assim é na realidade (completando a definição de Bergson para a ironia), como carrega nos traços e nas letras (característica básica da caricatura) ao dizer: nunca (advérbio de tempo) um vice (Sarney) foi tão (advérbio de intensidade) versa (invertido, contrário, oposto, às avessas). Sendo que a palavra versa, além de estar invertida, foi escrita de cabeça para baixo e como se fosse o negativo das outras letras (as letras V, E, R, S, A aparecem em branco num fundo preto). Firma-se a noção de contrariedade absoluta e radical em relação ao vice a partir das palavras colocadas em primeiro plano. As indicações do cartunista deixam claras suas opiniões e confirmam sua revolta e seu posicionamento sobre a questão: negativo, inverso, de cabeça para baixo.

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O humor nasce justamente do que deveria ser, Tancredo Neves (o que não foi), cuja caricatura serve de fundo para a construção verbal. Dos limites superficiais do rosto de Tancredo surgem três caricaturas totalmente deformadas ("as revoltas profundas da matéria") de Sarney, uma das quais, a mais nítida, está de cabeça para baixo, à esquerda da palavra versa. O mais intrigante, porém, é que as caricaturas guardam entre si uma certa semelhança. É como se todas tivessem origem na mesma matriz (baseada nos traços característicos de Tancredo), que foi passando por fases sucessivas de deformação, degenerescência, até chegar a Sarney. A marca registrada é o bigode implícito e mal delineado (não se sabe onde começa a boca e onde termina o bigode e vice-versa) nas quatro caricaturas.

Importante observar também que, para Bergson, o riso seria uma espécie de castigo, pelo qual corrigimos desvios ocorridos dentro das normas rígidas de comportamento sob as quais vivemos. A visão impiedosa e pouco solidária de Millôr em relação ao ex-presidente Sarney é evidente em toda série de cartuns que tocam sua imagem. Não só os seus possíveis escorregões, mas cada elemento do seu caráter é tratado causticamente. Nesse sentido, a palavra versa alude também ao fato de Sarney ser escritor, poeta, membro da Academia Brasileira de Letras. Mas, segundo o cartunista, um versificador "às avessas", além de "negativo" e com uma falta de flexibilidade que só não comove porque poderia interromper o riso e comprometer a crítica.

Se há uma característica essencial na obra de Millôr (que será fundamental para nos aproximarmos da série "Arte é Intriga" no próximo item) é que sua técnica visual, seu traço, e sua estrutura lingüistica sintética e objetiva procuram reconhecer o real na própria variabilidade. O humor metafísico de Millôr instala-se na tendência dos fatos cotidianos por um esforço perceptivo:

Pois é, a gente chega a um apuramento, a um domínio tão grande do raciocínio lógico, que de repente tem a impressão que esse raciocínio já não está funcionando mais. A nossa percepção fica sendo uma percepção "sensorial, metafísica. As verdades da vida nos chegam sensorialmente, é verdade que fundadas no raciocínio lógico, mas esse não mais se mostra, da mesma forma que um alicerce de um edifício desaparece quando se "constrói o edifício..." (18)

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Arte é Intriga

Há uma tela do pintor italiano Giorgio De Chirico exposta no Museu de Arte Moderna de New York que intriga a começar pelo título: "O Grande Metafísico". Numa praça entrecortada pela sombra de prédios clássicos ergue-se a estátua de um personagem envolvido quase até a cabeça por objetos geométricos, panos, quinquilharias dependuradas; a figura, ainda que sem rosto, parece dirigir seu olhar ou para algum ponto da praça ou para além dela. O tema é recorrente na obra do artista considerado um dos precursores do surrealismo. A situação do "Grande Metafísico" toca, impressiona, intriga profundamente.

"O Grande Metafísico", Giorgio De Chirico

A mesma sensação é relatada por Millôr Fernandes, só que diante de um retrato a óleo do alemão George Grosz (que entre 1918 e 1925 criou uma das maiores coleções de desenhos satirizando a sociedade alemã):

Era apenas um retrato de um homem de uns 40 anos com os óculos de aro de ouro. E eu nunca me esqueci deste quadro, desse homem me olhando naquele quadro, porque me impressionou profundamente. Claro que eu posso arranjar razões razoáveis, razões intelectuais para explicar porque Grosz pintava dessa ou daquela maneira. Mas, na verdade, aquilo me intrigou; ficou aquela "figura me olhando e eu não sei até hoje se existe alguma coisa além daquela pintura, alguma coisa que fosse metafísica. (19)

Os dois exemplos abordam elementos considerados intrigantes suscitados por pinturas ditas "convencionais" do ponto de vista das técnicas utilizadas pelos artistas. Porém, será o próprio Millôr a aprofundar a discussão sobre arte como intriga (a partir do segundo semestre de 1987), quando alguns dos seus desenhos passam a ser feitos através da técnica computer painting, com o auxílio de um microcomputador XT acoplado a um monitor em cores.

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Na revista "Isto É" (nº 560, de 26/08/87) surge o primeiro desenho da série "Arte é Intriga". Uma mulher boquiaberta, cuja expressão lembra a litogravura "O Grito" do expressionista norueguês Edward Munch, veio acompanhada da seguinte nota explicativa: "EXECUTADO POR COMPUTADOR PC-XT, SORRY PECEFERIA". A partir daí, Millôr passou a incluir sob o mesmo título "Arte é Intriga" algumas de suas intervenções digitais, sempre fiel à tradição de promover encontros entre o verbal e o não-verbal, só que agora procurando observar qual a natureza da intriga emergente da tela do computador:

A idéia de intriga veio exatamente de eu estar fazendo um desenho no computador. Tudo tem um grau de imprevisibilidade muito grande, mas o computador tem muito mais no caso do desenho. Você começa a fazer o desenho e ele vai se compondo com a tua possibilidade de criatividade e, de repente, o computador faz uma coisa que você não esperava. Você registra e dá um bom resultado. Então quando eu fiz uns desenhos eu coloquei o título "Arte é Intriga", porque aquela coisa me intrigava. (20)

Às vezes só o título ("Arte é Intriga") aparecia sobreposto ao desenho, em outras ocasiões um pequeno comentário dialogava com a criação digital. O paradoxo também foi incorporado à série, quando ao apresentar uma seleção de oito desenhos computadorizados, Millôr responde: "Alô, isto é uma gravação. O Millôr não está. Só o computador".

É preciso não perder de vista que a mídia impressa é o espaço privilegiado destas incursões do artista plástico Millôr Fernandes. Muitas etapas de produção dentro dos jornais ou revistas já estão informatizadas (alguns têm quase a totalidade do processo "automatizado"). Apesar de dotados com o que há de mais sofisticado na área da editoração eletrônica, grande parte da mídia impressa continua com a mesma mentalidade da revolução industrial. O terminal de computador é concebido ainda como ferramenta, talvez uma máquina de escrever um pouco mais completa; os softwares de editoração eletrônica são tomados como simples agilizadores de procedimentos antes realizados manualmente por diagramadores e paginadores.

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Na prática, o tempo economizado pela queima dessas etapas, ao invés de concentrar-se na redação visando uma melhor qualidade do produto final, evade-se para outros setores. Além disso o jornalismo impresso tenta competir com o imediatismo da informação televisiva; na impossibilidade de imprimir o presente, ao vivo, arma uma tática de antecipação, tentando prever o que vai ou o que pode acontecer. Tomando o tempo como um limite externo determinado pelas imagens televisivas, a mídia impressa baseada na previsão dos eventos assume a pretensão do domínio temporal. Esta postura em relação a um limite externo aliada a um inevitável narcisismo interno oprimem o jornalista no sentido de embutir cada vez mais elementos, dentro do espaço que lhe cabe e do tempo exíguo que lhe resta. Há uma urgência na antecipação que logo se transforma num processo angustiante movido pela aposta na imagem (a própria do jornalista e a televisiva). No concreto, quando o jornalismo impresso aluga um tempo incompatível com a natureza da sua linguagem, vê-se coagido a projetar informações na forma de profecias; o valor da informação torna-se diretamente proporcional ao número de imagens que se consegue projetar. A potencialidade dos recursos impressos, baseada na articulação criativa entre os domínios do verbal e não-verbal, reduz-se a uma ferramenta que tenta alcançar um tempo perdido. Esta batalha desproporcional foi retratada por Millôr com requintes tragicômicos no desenho "Registro Fúnebre na Era da Informática" , que capta a amargura do editor que se suicidou atirando-se dentro da máquina de fax do jornal.

Para não aniquilar o tempo, portanto para não perdê-lo, a imprensa escrita precisa redescobri-lo. Redescobrir o tempo perdido para a mídia eletrônica significa, num primeiro momento, não querer dominar um tempo concebido como entidade externa veiculada eletronicamente. A imprensa é tecida no e do seu próprio ritmo. Ele é imanente a ela e já basta a hora do fechamento de qualquer edição como barreira improrrogável. Millôr traz essa questão para dentro do universo das informações escritas ao lançar um "jogo de memória" disputado pelas informações numa nova dimensão temporal. Ou, na prática, Millôr redescobre o tempo perdido pela mídia impressa através da "computer art" . Quanto à palavra arte, ele a utiliza no mesmo sentido sugerido por Proust e tão bem captado por Deleuze:

O tempo redescoberto, em seu estado puro, está contido nos signos da arte. Não se deve confundi-lo com outro tempo redescoberto, o dos signos sensíveis, que é apenas um tempo que se redescobre no seio do próprio tempo perdido, e que também mobiliza todos os recursos da memória involuntária, dando-nos uma simples imagem da eternidade... O que a arte nos faz redescobrir é o tempo tal como se encontra enrolado na essência, tal como nasce no mundo envolvido da essência, idêntico à eternidade. O extratemporal de Proust é esse tempo em estado de nascimento e o sujeito-artista que o redescobre. Por essa razão podemos dizer com todo o rigor que só a obra de arte nos faz redescobrir o tempo: a obra de arte é o único meio de redescobrir o tempo". Ela porta os signos mais importantes, cujo sentido está contido numa complicação primordial, verdadeira eternidade, tempo original absoluto. (21)

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Quanto ao instrumento computador (apto a dialogar rapidamente com seu operador) Millôr o colocará a serviço da captação de uma informação que o sensibiliza por algum motivo e que ele prefere chamar de intriga. Assim, o que da realidade cotidiana lhe é intrigante, passa a ser retrabalhado pelo computador e impresso na revista. Mas para este registro corporificado numa revista ter valor de intriga (ou valor de informação) também para o leitor, o desenho deve igualmente tocá-lo, intrigá-lo. Na verdade, fazendo uma alusão ao dialeto proustiano, a "arte como intriga" desperta, de fato, a nossa memória involuntária.

Encaramos dezenas de páginas impressas onde fulgura a memória voluntária, que segundo Samuel Beckett "... não é memória, mas simples consulta ao índice remissivo do Velho Testamento do indivíduo... Apresenta-nos um passado monocromático. As imagens que escolhe são tão arbitrárias quanto as escolhidas pela imaginação e igualmente distantes da realidade... O material que fornece não contém nada do passado; uma vez removida nossa ansiedade e nosso oportunismo, não passa de uma projeção uniforme e enevoada — isto é, nada". (22) De repente os olhos encontram algo explosivo, "uma deflagração total, imediata, deliciosa", que em sua chama "consumiu o Hábito e seus labores e em seu fulgor revela o que a falsa realidade da experiência não pôde e jamais poderá revelar — o real". (23) .

Por mais restrições que Millôr Fernandes aponte na arte abstrata, quanto mais próximos da abstração são os seus desenhos, maior a diluição operada na fronteira arte e jornalismo obtida pela série "Arte é Intriga". Em meio a uma linguagem escrita desgastada pelas referências, que ao invés de reveladora congela e paralisa os fatos, cujas tendências deveria reportar, o traço digital de Millôr é registro único e presente.

Na palavra metafísica, o pintor De Chirico não via nada de tenebroso. "E a mesma tranqüilidade e insensata beleza da matéria que me parece metafísica", afirmava. Digamos que Millôr levou o tema literalmente "aos jornais" na "Proposta para Discussão Metafísica sobre a Inutilidade de Tudo ou Qualquer Coisa":

A luz brilhante de um sol que não aquece, iluminando flores que não cheiram, refletidas num rio que não corre. Na paisagem pintada, um pássaro imóvel canta uma canção inaudível numa sombra sem frescura. A arte é isso! A arte é Intriga!

Mas assim continuaríamos na representação ou, quando muito, diante de alguns signos sensíveis da memória involuntária que, adverte Deleuze, "são da vida e não da arte...representam apenas o esforço da vida para nos preparar para a arte e para a revelação final da arte". (24) Há algo ainda mais intrigante do que um meio de exploração da memória voluntária. Repete infinitamente mas parece não ter original:

AMBOS

GÊMEOS, DIREITO-AVESSO

CASAL OU BIFURCAÇÃO

PLÁGIO, FRAUDE, DUPLICATA

ECO E SIMULAÇÃO

DUPLO, TRANSLADO, SOMBRA

O DOBRO OU OUTRA PORÇÃO

PAR, XIPÓFAGOS, CóPIA,

NUM ESPELHO TRAIÇÃOMICRO, FAX, XEROX, VIVER É REPETIÇÃO

 

 

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Referências:

 

(1)Millôr Fernandes, "Pela demarcação da terras de Ipanema", in Revista de Domingo do Jornal do Brasil, ano 15, nº 764, 23/12/90, p.14.

(2)Aqui Millôr Fernandes refere-se a Marcel Proust (1871-1922).

(3)Millôr Fernandes, op. cit., p.14.

(4)A mostra coletiva "Jogo de Memória" ficou na Galeria Montessanti em São Paulo de 4 a 29 de abril de 1989. Além de Millôr, participaram os seguintes artistas plásticos: Grassman, Iberê Camargo, Darel, Wesley Duke Lee, Flávio Shiró e Flávio de Carvalho.

(5) Millôr refere-se à terceira exposição dos seus desenhos realizada na Galeria Grafitti, no Rio de Janeiro, em maio de 1975.

(6) Roberto Marinho de Azevedo, "Sou apenas um humorista", in Veja, 28/05/75, p.4.

(7) Depoimento ao programa "Roda Viva" da TV Cultura de São Paulo, em abril de 1989.

(8) Hamilton Ribeiro, "Esse Millôr é louco?", in Realidade, dezembro de 1970, p.107.

(9)Desenhos humorísticos de Millôr Fernandes, in Correio da Manhã, 29/08/57.

(10)H.Ribeiro, op. cit., p.17.

(11)Millôr Fernandes, "Millôr no Pasquim". São Paulo, Círculo do Livro, 1977, p.15.

(12)Idem, ibidem, p.15.

(13)Millôr Fernandes, Hai-Kais. Rio de Janeiro, Editora Nórdica, 1986.

(14)Henri Bergson, Le Rire. 97a ed., Paris, Presses Universitaires de France, 1950, p.97.

(15)Idem, ibidem, p.97.

(16) Idem, ibidem, p.98.

(17)Idem, ibidem, p.20.

(18)H.Ribeiro, op. cit., p.109.

(19)Depoimento de Millôr Fernandes prestado em 21/11/90 durante o "Iº Encontro Latino-Americano de Humor Brasil-Argentina" ocorrido no Memorial da América Latina em São Paulo.

(20)Idem item nº19.

(21)Gilles Deleuze, Proust e os Signos. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 1987, pp.46-7.

(22)Samuel Beckett, Proust. Porto Alegre, L&PM Editores, 1986, p.25.

(23)Idem, ibidem, p.26.

(24)G.Deleuze, op. cit., pp.64-5.

 

Links:

Site oficial:

http://www.uol.com.br/millor/home.htm

millôr Frenandes na Mostra de Poesia Visual:

http://www.imediata.com/BVP/Millor_Fernandes/index.html

 

 

 

samba<info@imediata.com>