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Bené Fonteles

   

 

MANIFESTO "ANTES ARTE DO QUE TARDE"

 

"A arte só pode estar engajada com a liberdade."
Reinaldo Arenas


O início de um novo século e milênio exige uma reflexão mais apurada do que o ser humano realizou – entre três grandes guerras – de mais inteligente e sensível: sua Arte.

Esta herança de uma Arte de resistência feita no começo do século XX – por mestres como Marcel Duchamp, Man Ray, Erik Satie, Paul Klee, Kasimir Malevitch, Stravinsky, Piet Mondrian, Brancusi, Debussy, Picasso, Schoenberg, Miró, Ravel, Kandinsky, Mahler, Nicholas Roerich e um pouco mais tarde por Alexander Calder, Joseph Beuys, Stockhausen, Luciano Berio, Yves Klein, John Cage, Hundertwasser e Jackson Pollock -, perde seu caminho e entra em crise afundando no pós-nada de um "modernismo" oco.

Além de celebrarem suas vidas com Arte e prazer, alguns destes artistas, apesar da dor de entre-guerras, viveram numa Europa que assaltou, destruiu por inveja e desprezo as grandes civilizações dos egípcios e persas, maias e aztecas, yorubás e nagôs, navajos e sioux, tupis-guaranis… Apesar disso, essa senhora Europa, decadente e culta, também nos lega – através da influência que estas culturas causaram em sua "civilização" – uma Arte da busca de síntese, encontro e, em alguns casos, de essência.

Toda essa tradição é então recriada – vide as coleções de arte africana e ameríndia nos ateliês de artistas importantes do movimento cubista – não só por europeus ou norte-americanos, mas também de latinos importantes no processo cultural que beberam visceralmente na alma popular e a transcenderam: Torres Garcia, Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Guignard, Diego Rivera, Rufino Tamayo, Wilfredo Lan, Volpi, Le Parc, Jesus Soto e os contemporâneos como Rubem Valentim, Hélio Oiticica, Regina Vater, Amélia Toledo e as duas Lígias: Clark e Pape. Artistas que nos honram, não só com sua reflexão estética, mas também por suas buscas de uma identidade e de um sonho de pensar e fazer uma América com a universalidade e um projeto utópico e poético de futuro.

Eu pergunto: o que os artistas ditos contemporâneos, principalmente europeus e norte-americanos com sua arte para consumo estético, catastrófica e sem apontar esperanças, propõem para um projeto construtivo e humanista no século XXI?

Tenho sérias dúvidas sobre alguma resposta coerente e substancial quando visito as exposições e vejo apenas um deserto de idéias e ideais. Viajo só e felizmente por este país que antropofagicamente por natureza, e, infelizmente por ignorância e insegurança, come com exagerada gula, sardinhas enlatadas da cultura oficial: mídias e curadorias internacionais. E, para fomentar inclusões e aprovações de projetos, precisa fazer mais lobby do que vivenciar um verdadeiro processo criativo.

Este também é o Brasil da política dos subsídios econômicos incentivados pela cultura quase mercadológica do seu Ministério da Cultura e não, o da poética dos substratos culturais vindos da dinâmica criadora de seu povo.

É um país em que seus agentes sensíveis, os artistas, esquecem de cantar sua aldeia, e, por assim não interpretá-la, questioná-la e argüí-la, deixam de ser universais. Macaqueando a sintaxe globalizada e uniformizada, eles produzem obras para solitários ambientes museológicos, em vez de gerarem solidárias e responsáveis proposições e transgressões da realidade por meio do re-encantamento poético do humano e de seu mundo.

Resta uma solidão ampliada em meio de uma crise sem oportunidade de criar uma Arte como propunha Joeph Beuys em seu "Manifesto por uma alternativa global", a mesma humana e ecológica que Rubem Valentim sonhava com seu "…ainda que tardio" nos mostrando um "sentir brasileiro e universal". Ambos foram escritos na década de 70, quando ainda era possível se ter atitudes independentes, corajosas e coerentes.

Depois veios a era yuppie com toda a ilusão de seu pó a contaminar a consciência e construir espelhos para o ego e não espaços dignos de reflexão contra a violência gerada pela falta de respeito à diferença, contra a falta de afeto e o não pertencimento à ecologia da Terra.

Muitos artistas interessantes caíram nessa armadilha, até mesmo os que ainda dialogavam experimentalmente com a Vida através da Arte e não da pressa voraz do mercado.

Aonde está uma Arte feita com as necessidades do espírito e a vontade visceral do prazer e não com as próprias vísceras, excrementos e outros elementos brutos para satisfazer a mera "sensation"? Para que chamar mais atenção da mídia, de colecionadores e "curadores" esdrúxulos e oportunistas do que da nossa necessidade real de educar a sensibilidade? Por que então não investir em afinar sensorialmente a consciência sensível de um público carente de agentes transformadores e transmutadores da realidade?

É precioso ler com atenção "O conceito ampliado de Arte" de Joseph Beuys, no qual referindo-se ao "princípio criativo", exige uma melhor forma de pensar, acuidade no sentir e verdadeiros critérios estéticos para nortear uma obra de Arte e seu papel na comunidade. E para isso o artista não precisa ter só uma inteligência criativa, é também necessário ter princípios filosóficos, éticos e espirituais.

Por que produzir uma arte só para a sensação dos sentidos quando o discernimento da mente e da alma nos pede mais responsabilidade com a matéria, a palavra, o pensamento e a obra?


O que a Arte nos exige é um exercício sensitivo e intuitivo para uma nova forma de perceber, estar e pertencer ao Mundo, aquele que neste novo milênio se prepara para compreender as outras dimensões que a ciência já experimenta ou visiona.

Albert Einstein não estava brincando com o acaso quando disse que "Deus não joga dados". Até alguns executivos já sabem disso e percebem as extensões sutis e infinitas do despertar para uma mente não só ocasional e objetiva, mas consciente de um projeto incondicional de libertação. Por isso meditam e lêem livros sobre a nova ética escritos por Tenzin Gyatso, o Dalai Lama, Fritjof Capra ou Leonardo Boff. Enquanto isso, muitos "artistas ingênuos" e desinformados sobre o novo paradigma, lêem teorias acadêmicas sobre o vazio do vazio. Pior, pensam e agem com o egoísmo de uma arte individualista, esteticista, antiecológica e perversa em sua utilização da matéria orgânica. É preciso perguntar a pedra ou a uma árvore – como faziam nossos ancestrais do oriente – para saber o que elas querem ser, e não impor uma forma a suas matérias luminosas e inteligentes. Como artistas, somos também alquimistas e nos cabe recordar o que custou a Van Gogh o fato de descobrir que sua vida era a Arte, e, que a matéria de sua pintura era luz e energia.

Essa mesma energia parece que iluminou a cidade de São Paulo no ano de 2000, quando assistiu uma das mais sadias manifestações de cidadania cultural da classe teatral invadindo e legitimando espaços públicos com seu manifesto "Arte contra a Barbárie". Os questionamentos e perguntas eram os mesmos a que já me referi e ainda outros:

- Que arte é essa onde o "curador", produtor e atravessadores culturais, são mais importantes do que a concepção e o sacro-ofício dos artistas?
Eu insisto: que espécie de seres são estes que deixam-se guiar mais por teorias estéticas pensadas na academia do que por suas intuições e vivências solidárias e responsáveis com o povo do seu país, a Natureza e a universalidade do planeta?

– Que arte é essa que agora não mais procura o "exercício experimental da liberdade" como nos desejava Mário Pedrosa e que não mais transgredindo o sistema, ainda se põe respaldada pela mídia e pela academia a serviço dos vícios da indústria do entretenimento cultural?

Para que serve esta arte: Que vira fetiche e curiosidade quantitativa do jornalismo em vez de inspiração privilegiada para o exercício sadio da crítica nos caderno culturais? Que é mero resultado fácil de mercado e "produto cultural" em vez de engrandecimento, instrumento de evolução da inteligência subjetiva e ascensão do espírito humano?

Portanto, eu quero como um revolucionário embora tardio, sacudir nossas atitudes viciadas em projetos de vida aprovados pela Lei de Incentivo à Cultura. E, por mendigarmos patrocínio nas empresas, que aliviam seu ônus econômico e às vezes até sua consciência pelo que prejudicam à saúde humana ou exploram e poluem indevidamente os recursos naturais. Tudo isso, muitas vezes para realizar mais uma exposição vazia, mais um cd sem amor à música, mais um teatro absurdo sem serviço à consciência planetária ou mais um balé para dançar narciso.

Enquanto isso, a realidade nos dá um tapa nada sutil em nossa casa sem-vergonha, e nos pede na rua: comida com algum amor e roupa para se vestir da coragem de alguma cor inocente.

Sim, amor, coragem e inocência não é bem o que espreita nossa omissão nas esquinas do mundo. E não adianta subir e blindar os vidros pensando que é só violência. Nada oculta nossa vida ferida em sua dignidade pela ferrugem do medo e do silêncio.

Assim, eu quero que a lembrança viva do fazer humanístico cultural e revolucionário, concilie a diversidade entre seres pares e díspares como Kasturbai&Gandhi e John&Yoko, Thereza de Calcutá e Guevara, todos felizmente ainda nos assombrando. Quero que eles nos inspirem alguma vontade de resistência política e persistência espiritual que o século XX apesar de tudo, deixou como a mais bela herança. Mas, tenho receio que o humanismo virtuoso duramente conquistado com o aval – e até a morte – de tantas vidas, se perca nos vãos de uma tecnologia virtual, destrutiva e consumista que explora os recursos naturais da Mãe Terra de forma tão desumana e cruel.

Por isso, eu desejo uma sabedoria que abandone a pretensão acadêmica de querer salvar o Mundo com o projeto inútil do acúmulo do conhecimento, em vez de querer a redenção da Terra pela nudez imensa da simplicidade do saber popular e natural.

Eu amo a Arte que quebra os vidros da impotência e derruba os muros do medo ou que se desilude com seus próprios limites.

É preciso amadurecer, saindo dessa adolescência burra e não ter medo de tocar o próximo com afeto e respeito pela diferença. Mais vasto é o medo de assumir nossos talentos políticos e poéticos com a vontade entusiasmada de dizer sempre um colorido SIM nesta sala negativa (João Cabral). Falta também a coragem tão humana de reprogramar a mente positiva para a Arte de ser feliz, claro e belo, e sabendo disso, compartilhar nestes tempos de voluntariado: generosidade e abundância…

Nossos ancestrais Maias diziam em seus códices que TEMPO É ARTE. Essa é uma grande dica para empresários e artistas. E, como o ato de criação já é em si um ofício de doação e amor, eu acrescento: ARTE CURA!

Frei Betto nos inspira quando diz: "É uma exigência de nossa saúde espiritual cultivar a subjetividade como o artista esteticamente febril diante de sua obra, o profissional encantado com seu projeto, o militante guevarianamente empenhado em sua luta, a jovem apaixonada, o místico tocado pelo amor de Deus. São estados de plenitude e felicidade". O franciscano nos fala de uma exigência e uma falta de "plenitude e felicidade" similar a que Beuys nos avisava ao dizer em seu manifesto que "esta é a razão da crise". Ela, a tao da crisis, apontando raras oportunidade de mudança e transcendência, persiste nos fazendo perguntas intrigantes e nos exigindo uma resposta urgente e à altura do nosso amor à liberdade.

É preciso exercitar com humildade o poder precioso de nosso livre-arbítrio na responsabilidade solidária com a Vida. Ou, todos faremos papel de passivas vítimas da barbárie globalizada.

Tudo o que nos resta é recuperar a dignidade de ser artista e estar habitado pela grandeza de se expressar como um cidadão incomum, indignado com a miséria que cria o estado de sobrevivência para os sem terra e esperança, os sem teto e alegria.

Agora é a hora dos ARTIVISTAS, mixagem de ativista político com o artista poético, e vice-versa, despertarem o acomodado brasileiro que dorme no berço esplêndido da inconsciência nacional.

O ARTIVISTA é aquele que vai dignificar sua escolha de ter vindo neste momento ao planeta e ao lembrar-se da sua Origem, exigir o melhor de sua herança Divina: a felicidade.

Nós merecemos uma Arte que nos inspire a um projeto mais humano e pacífico em nossa passagem de aprendizes da Terra.

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BENÉ FONTELES, Coordenador do "MOVIMENTO ARTISTAS PELA NATUREZA"

Brasília, 21 de abril de 2001/ Dia dos Inconfidentes.
Escrito para a ocasião do Encontro Mundial Arte e Identidade Cultural na Construção de um Mundo Solidário/ São Paulo, abril-maio de 2001

 

 

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