"A libertação é vida com dignidade"

Fergus Nicoll entrevista Vandana Shiva no programa Agenda da BBC. A entrevista original pode ser ouvida no site:

http://www.bbc.co.uk/worldservice/programmes/agenda.shtml

 

 


31 de maio de 2002

Tradução Imediata da entrevista para o português (os grifos são nossos):

Aqui Fergus Nicoll.

Esta semana, em Agenda, Fergus Nicoll encontra uma das líderes do movimento anti-globalização, Vandana Shiva.

Ela é uma ecologisa indiana que se tornou uma vigorosa manifestante contra a agricultura de alta tecnologia e a interferência das corporações na vida das comunidades.

Mas sua oposição ao livre comércio faz com que saísse de sintonia com outros representantes do movimento antiglobalização – o qual parece estar perdendo força. Então, o que será que ela realmente pensa quanto ao que o movimento pode alcançar?

E será que a visão que ela tem pode funcionar?

Vandana Shiva, em Agenda, com Fergus Nicoll.

Os manifestantes da campanha anti-globalização vão fazer a sua marca neste fim de semana, com seus protestos contra a reunião do G8 na França. Bem, vai ser difícil chegar ao número de manifestantes que participaram das manifestações de Gênova, em julho de 2001. E isso nos leva a perguntar se a campanha tenha perdido vigor. Os críticos alegam que os ativistas das campanhas contra a OMC, contra o FMI e contra o Banco Mundial tenham trazido poucas ou mesmo nenhuma alternativa concretas. Bem, a Dra. Vandana Shiva é uma das líderes mais importantes do movimento. Ela é indiana, física nuclear, ecologista, vigorosa manifestante contra a agricultura de alta tecnologia, contra a interferência das corporações na vida das comunidades, e a favor de plantações orgânicas e indígenas, cultivadas pela e para a comunidade. Ela é a nossa convidada hoje, em Agenda.

FN: Dra Vandana Shiva, bem-vinda ao programa. A Senhora tem estado fora das notícias nos últimos, acho que é correto dizer, 18 meses, aproximadamente. Será que o movimento anti-globalização perdeu sua força?

VS: Não, acho que, de fato, o movimento tem ganhado força. Se você reconhece que a globalização pós-Seattle é uma globalização com o respado militarista… o que temos visto no mundo todo é a fase seguinte da agenda da globalização, então, o movimento tentando incluir as críticas contra as corporações e contra os governos corruptos e não regulados, que têm se tornado verdadeiros estados corporativos, então efetivamente esse movimento tornou-se maior e inclui o Movimento pela Paz, O fato de que milhões de pessoas em cada país estavam nas ruas em 15 de fevereiro representou algo muito muito maior do que ocorreu em Seattle ou em Gênova. E as preocupações eram as mesmas. As preocupações eram a justiça, as preocupações eram a paz, as preocupações eram a sustentabilidade.

FN: Mas será que não poderia ser dito que as pessoas que queriam ir para as ruas para serem ouvidas pensaram… Bem já que a anti-globalização não funcionou, vamos concentrar nossa agenda em algo muito mais específico e fácil de compreender. Por exemplo, vamos nos concentrar contra a guerra. Talvez os manifesantes que a apóiam estejam se dissolvendo nesse campo mais específico.

VS: Não, mesmo. Porque acho muito importante reconhecer que o movimento que expressou suas idéias em Seattle, Washington, Gênova, em Bangalore, em 1991. As pessoas geralmente se esquecem de que as maiores concentrações de protesto aconteceram no Terceiro Mundo. Mais de meio milhão de agricultores em 1991 e 1992… nas ruas, para dizerem basicamente OMC… naquele momento, o Acordo do Gatt sobre agricultura foi uma declaração de morte para os agricultores do Terceiro Mundo. Esses movimentos não são primeiramene CONTRA certas coisas. São, principalmente, A FAVOR de outras coisas. SÃO A FAVOR DO DIREITO DAS PESSOAS DE PODEREM PROVER PELO PRÓPRIO SUSTENTO, SÃO A FAVOR DO DIREITO DAS PESSOAS DE TEREM SEGURANÇA, SÃO A FAVOR DO DIREITO DE CULTURAS DIFERENTES DE EVOLUÍREM EM SEUS PRÓPRIOS TERMOS, O DIREITO DAS PESSOAS DE TEREM GOVERNOS DEMOCRÁTICOS, E NÃO GOVERNOS SUBMISSOS A DECISÕES TOMADAS PELO BANCO MUNDIAL, PELO FMI E PELA OMC. ESSAS SÃO QUESTÕES MUITO FUNDAMENTAIS QUE DIZEM RESPEITO À CONDIÇÃO HUMANA.

FN: Mas elas são também muito difusas, não? Eu me pergunto se não é difícil manter um movimento coerente quando as aspirações são tão difusas.Oviamente, pode-se ter grupos de direitos humanos que se preocupam com questões de democratização, questões ambientais, outras questões… Então como reunir isso tudo para fazer o movimento mais substancial e menos genérico?

VS: Acho que se você olhar para isso tudo DA ESTRATOSFERA DO JORNALISMO INTERNACIONAL, as coisas parecem muito difusas mesmo. MAS SE VOCÊ PERCEBER AS RAÍZES DESSAS EXPRESSÕES, então verá que elas vêm de empenhos muito concretos. Às vezes, empenhos muito positivos. Dizem respeito ao que é uma vida positiva, que a agricultura não deve se basear em monopólios corporativos, em sementes geneticamente manipuladas, em substâncias químicas tóxicas. Que é muito mais próspero para os produtores agrícolas e seguro para os consumidores ter uma agricultura ecológica, uma agricultura sustentável, uma agricultura orgânica, a qual produz mais. É UM GRANDE MITO QUE PRODUZ MENOS. ELA PRODUZ MAIS. Eu administro uma fazenda e nós testamos o tempo todo os orgânicos versus os químicos. Acabamos de fazer estudos sobre os OGMs (organismos geneticamente modificados) intriduzidos na Índia, o algodão BT – fracasso total da colheita. Assim, quando nos engajamos neste nível, é muito concreto o que expressamos. Trata-se das sementes que plantamos, da água que bebemos, de quem terá acesso ao rio…

FN: Compreendo. E vejo que a Senhora é uma advogada muito apaixonada de sua causa. Mas gostaria de voltar ao movimento como um todo. Parece haver uma crise de identidade, levando certos intelectuais do movimento… Bem, George Monbiot já está dizendo: "talvez deveríamos abandonar o rótulo ‘anti-globalização’", talvez ele já venha com muita bagagem… que tal falarmos de um movimento pela justiça global", mas isso parece ainda mais difuso, ainda mais genérico..

VS: Eu sempre achei que o trabalho que eu faço e que os movimentos dos quais participo são parte de um Movimento pela Democracia na Terra, uma mobilização das pessoas em escala planetária, mesmo enquanto estamos empenhados em nosso contexto local, em nossa comunidade local, e em nossas democracias nacionais. Nenhum desses movimentos opera somente num nível só. Esses movimentos são simultaneamente locais, nacionais e globais. E quando vejo meu empenho como parte de uma Democracia Planetária nesses três níveis, vejo também como fazer uma diferença em REDEFINIR A EXISTÊNCIA HUMANA INCORPORADA NO CONTEXTO DA FAMÍLIA PLANETÁRIA E DE TODAS AS ESPÉCIES DA TERRA, INDO ALÉM DA PERCEPÇÃO FOCALIZADA EM COMO SE EXTRAIR O MÁXIMO DA NATUREZA, APOIANDO UM MODELO DE DESENVOLVIMENTO E DE CRESCIMENTO MUITO MAL DEFINIDOS. Em segundo lugar, as nossas economias, que estão se tornando negativas, poderão se tornar positivas somente se internalizarem esse fator ecológico. Há ainda a questão das democracias que estão morrendo. Basta você olhar em volta. As democracias estão morrendo no terceiro mundo, porque as nossas agendas são impostas pelas instituições globais. Mas estão morrendo no Norte também, quando líderes conduzem seus países à guerra, contra a vontade de suas populações. E em vez dos governos serem do povo, para o povo e pelo povo, eles são das corporações, para as corporações e pelas corporações. Então a vida das democracias é uma parte essencial daquilo que estamos falando.

FN: Mas quem é a audiência para isso? Me desculpe, sei que é algo sensível, mas a mensagem é para as camadas da classe média mais favorecidas que são ligeiramente de esquerda, na Europa e nos EUA, que poderão concordar com isso… Mas quem concorda com a Senhora e está em posição de poder fazer alguma coisa a respeito?

VS: Bem, o seu ex-ministro do Comércio, por exemplo. Há alguns dias ele declarou: "Eu estava errado. O livre-comércio não serve o Terceiro Mundo." Todo mundo sabe que a democracia está em crise. Com a globalização, a democracia representativa se torna inevitavelmente contra as pessoas. E em consequência, precisa criar estados policiais, tornar-se mais militarista, destruir os direitos humanos e as liberdades civis, em todo o mundo. Não se trata de questão sensível. São jovens, por exemplo, numa reunião de que participei recentemente, em Saint Louis, na sede da Monsanto, jovens que participaram da conferência e manifestavam silenciosamente foram detidos, na base fictícia de que não tinham licença para manifestar. Não é necessária uma licença para se manifestar silenciosamente. Está havendo uma marcha silenciosa no Corn Belt (Região do Milho) nos EUA, a favor de uma América livre de OGMs. Essas detenções não têm nada a ver com "questões sensíveis" da classe média. MAS DE QUESTÕES DE VIDA OU MORTE PARA OS POBRES, PARA AS TRIBOS QUE FORAM EXECUTADAS PARA QUE SUAS TERRAS PUDESSEM SER APROPRIADAS POR EMPRESAS DE MINERAÇÃO E DE EXPLORAÇÃO DE MADEIRA, NA ÍNDIA. Mulheres às quais é negado o direito da água. Mas é uma questão de vida ou morte também para AQUELES QUE PROCURAM UMA VIDA LIVRE E A LIBERDADE. E em questões do quotidiano e de suas liberdades civis. No norte…

FN: Bem, vamos falar de livre comércio, já que a Senhora acabou de mencionar o assunto. Recentemente, no contexto das corporações e da guerra dos EUA no Iraque a Senhora escreveu, vou citar… "O livre-comércio é totalmente não livre. É coercitivo, corrupto, fraudolento e violento." Fora daquele contexto específico do Iraque, como é que esse argumento se aplica no resto do mundo todo? Porque a Senhora negaria a um agricultor indiano o acesso ao mercado alemão?

VS: Eu não estou em posição de negar o que quer que seja a quem quer que seja. Mas estou numa posição que me permite avaliar o que ocorre, por exemplo, quando se removem restrições à importação, e são despejados produtos OGMs artificialmente subsidiados. Os agricultores perdem dois terços de sua renda, as batatas que cultivaram por 255 rupias passam a ser vendidas por 40 rupias e as pepsis fazem 20 bilhões em uma estação, por obterem batatas baratas para suas batatinhas fritas. É o mesmo no caso dos camarões e de outras atividades, onde a globalização significa ‘compras mais baratas’ pelas corporações que têm grandes monopólios e forçam os nossos produtos agícolas, dos milhares de safras que plantamos, em quatro ou cinco commodities para comércio. Nenhum agricultor do terceiro mundo ganha com uma agricultura globalizada. As corporações ganham. Os camponeses estão sendo exterminados. Nossa organização contou mais de 20.000 suicídios de agricultores. Os camponeses estão vendendo seus rins, de modo a poderem participar dessa AGRICULTURA GENOCIDA.

FN: Porque pessoas influentes e organizações influentes… Estou pensando, por exemplo, na OXFAM, na International Development Charity, Clare Short, a ex-secretária britânica para o Desenvolvimento Internacional, sustentam a posição de que não deveria ser negado a essas pessoas o acesso aos mercados internacionais, pelo contrário, elas deveriam ser ajudadas a isso?

VS: Bem, o acesso aos mercados é um conceito maravilhoso. Mas aqueles que apoiam cegamente esse acesso aos mercados através de regimes de livre-comércio e de agendas de globalização se esquecem de que os processos pelos quais ocorre o acesso aos mercados, seja da África, por exemplo, para a Inglaterra, é por meio de um sistema de escravidão institucionalizado, da dispossessão dos camponeses, da destruição dos produtores autônomos vindo ao encontro de suas necessidades. É o mesmo que ocorreu quando os ingleses forçaram os camponeses indianos a produzirem o indigo, prevenindo-os de produzirem alimentos para si mesmos. Tivemos a revolta do indigo que, eventualmente, levou ao movimento pela independência..

FN: Mas deixe eu voltar para a pergunta. A questão que coloco, por exemplo, alguém que trabalha na sua fazenda, ou em uma fazenda similar, na Índia, tem alguma razão pela qual eles deveriam ser impedidos de vender suas mercadorias na Europa ou nos EUA?

VS: Eu encorajo totalmente os mecanismos de justo comércio e de comércio de solidariedade. Podutores de belos tecidos podem encontrar seus mercados em outros lugares através de parcerias justas, dignas e de auto-respeito.

FN: Mas então porque não modificar o livre comércio ao invés de combatê-lo?

VS: Bem, mas o que dizemos, basicamente, é que precisamos reescrever as regras do comércio, de modo a garantirmos que não sejam criados direitos ilegítimos de propriedade, por exemplo, direitos de propriedade de sementes, direitos de propriedade em relação à água, de mercadização da água. O COMÉRCIO INTERNACIONAL SEMPRE ESTEVE ENTRE NÓS, MUITO ANTES QUE OS INGLESES TIVESSEM CHEGADO À ÍNDIA, MUITO ANTES DA OMC. Muito antes da OMC, tínhamos um tratado de livre comércio, por meio do qual a Companhia das Índias Orientais tomou posse da Índia, em 1711…. Essas questões não são absolutamente novas, e o justo comércio tem sido reinventado vez após vez, onde comércio se faz entre parceiros em condição de igualdade, previnindo o controle e a destruição de economias locais pelos interesses corporativos.

FN: Sim, e justamente essa é uma questão chave, não é mesmo? Através da história, o livre comércio tem sido reinventado a partir de dentro do sistema. Será que é possível reinventá-lo a partir de fora, com esse tipo de pressão? Não seria mais construtivo conseguir essas mudanças a partir dos mecainsmos já existentes?

VS: Alguns dos mecanismos existentes são totalmente ilegítimos.

FN: Por exemplo?

VS: Por exemplo, direitos de propriedade para aquilo que é necessariamente propriedade comum. Água, biodiversidade, conhecimento, tradições, que agora estão sendo pirateadas e possuídas como monopólios. Ou a falsidade de um regime de comércio onde não se deveria produzir e vender através do dumping (N.T.:venda a preços bem inferiores que o normal), mas onde o inteiro acordo de agricultura baseia-se no dumping. É a legalização do dumping. Algodão, soja, milho, trigo são todos vendidos internacionalmente pelos EUA pela metade do preço. E as taxas de dumping têm subido de 20, 20 por cento até 50 por cento, desde que surgiu a OMC, porque a OMC tornou-se um mecanismo para o comércio fraudulento. Precisamos de uma mudança muito drástica, precisamos de uma revisão dos acordos TRIPS, para excluir o patenteamento das formas de vida e a legalização da biopirataria, precisamos prevenir que seja adotada a agenda de Doha, a qual prevê a remoção de todas as barreiras ao comércio e as barreiras não tarifárias ao comércio de água e serviços do meio-ambiente. E, definitivamente, precisamos de mudanças drásticas quanto à forma como é implementada a agricultura, como a comida é produzida e comercializada. O fato de que as negociações sobre a agricultura pararam mostra que não é só o Movimento nas ruas que reivindica uma mudança, mas os governos também, todos absolutamente cheios com esse conjunto de regras completamente fraudolento.

FN: Gostaria de explorar por um minuto o seu background, Vandana Shiva… uma radical, e para muitos uma extremista.

VS: Bem, eu escolhi ser física porque adoro uma vida calma.

FN: (risos) Não parece uma vida muito calma…

VS: Eu amo uma vida calma. Adoro a calma… minha teoria quântica, refletir sobre os sistemas da natureza…

FN: Vamos voltar para antes da teoria quântica… porque a Senhora fez seu doutorado em Teoria Quântica, mas antes disso, a Senhora nasceu e cresceu em Deradam, aos pés do Himalaia. Como era sua família?

VS: Uma família impressionante. Minha mãe tinha muita instrução. Foi a primeira a se graduar na comunidade, tornou-se parte da comunidade de refugiados do Paquistão. Daquilo que se tornou o Paquistão depois da partição. E como refugiada, decidiu desistir de trabalhar para o governo e se tornar uma agricultora. E meu pai, que estava no exército britânico, largou seu trabalho para se tornar um conservador de florestas. Então, quando cheguei na cena, tinha uma mãe com muita educação mas que se dedicava à agricultura e um pai que tinha sido militar, mas que estava se dedicando à conservação.

FN: Raízes ‘verdes’?

VS: Absolutamente, mas em cada passo nossos pais nos ensinavam que se você não estiver ligado às coisas pequenas da vida, o carro que dirige, a casa em que vive, e se você viver segundo a sua consciência, não há nada que podem tirar de você. Portanto, ninguém pode meter medo em você. E acho que minha família, meus pais foi o lugar onde aprendi a não ter medo. Mas não é uma falta de medo no sentido barato e limitado, mas em termos de manter suas crenças e reconhecer de que é só disso que se precisa. Assim não há nada que possa ser retirado de você.

FN: Algum modelo?

VS: As mulheres de Chipka, um movimento impressionante que me fez tornar uma ecologista… Os rios secavam, as florestas encolhiam e as mulheres se manifestavam, se atavam às árvores. E isso num momento em que eu começava a me preocupar com o assunto. As mulheres impediam o abate das árvores. E em 1981, depois de uma década de ação, obtivemos a proibição. E hoje vou ao Himalaia para trabalhos de conservação de sementes e de agricultura e vejo essas mulheres que carregam cinquenta quilos nas costas, e o mais radiante sorriso. Têm tanto para dar ao mundo. Fiquei tão impressionada e vi que podemos ter modos tão limitados de pensar na liberação. Para mim, a libertação é VIDA COM DIGNIDADE… PARA A PESSOA, A COMUNIDADE, O PAÍS…

FN: E quanto à sua vida normal, a Senhora falou das atividades agrícolas, mas quando não está em conferências, dando entrevistas, etc. a sua vida é uma vida de classe média confortável e moderna? Com televisão e tudo mais do quotidiano?

VS: Minha família, a partir da geração dos meus pais, sempre compartilhou o que tinha, na grande casa que temos em Deradan, com um belo jardim de lichias. É como um espaço da comunidade, os agricultores vêm de vilarejos remotos e quando vêm ficam com a gente, então, sim, tivemos privilégios, mas os privilégios não são para o nosso consumo, os privilégios são para servir a sociedade e tive a sorte de ter uma bela família. Tenho um irmão, uma irmã e ainda vivemos todos juntos. Tenho uma belíssima e calorosa família e um belo grupo de amigos. E tenho um belo filho de 21 anos.

FN: E será que ele vai se rebelar com o seu modo de ver o mundo?

VS: Ele já me disse: "Mãe, acho brilhante o que você faz, por dez anos vou fazer o que você faz, mas depois vou fazer outras coisas."

FN: Porque a Senhora não é uma política, porque o modo como fala, a Senhora se sai muito bem. E daí, a Senhora poderia mudar o sistema a partir de dentro.

VS: Bem, se o ‘de dentro’ tivesse mais espaço, talvez eu pudesse ser uma política, mas percebi que o de dentro é muito rígido, com seus parlamentos totalmente ignorantes a respeito da OMC, com o executivo ficando todo poderoso e preocupado em substituir os tribunais e o parlamento.

FN: Isso é verdade para a Índia?

VS: É verdade para a Índia. É um de nossos grandes problemas. O fato de que fomos capazes de fazer alianças com 200 organizações, todos os partidos da oposição, 4 primeiros-ministros contra a OMC comprova totalmente o fato de que as instituições que forneciam qualquer apoio e liberdade foram todas destruídas e vejo isso tudo. Vejo alguns amigos que são ministros poderosos e que têm as mãos totalmente atadas. Não podem dizer uma palavra. Acredito ter mais liberdade para viver, praticar e dizer aquilo que penso. E de todo jeito, francamente, acredito que eu faço aquilo que faço porque amo muito a vida, amo muito as pessoas, amo muito a natureza. E não gosto do poder. O poder não me tenta de modo nenhum.

FN: Queria lhe falar de poder. A Senhora foi reconhecida pela revista Asia Week, recentemente, como uma das 5 pessoas mais influentes e, portanto, mais poderosas, de toda a Ásia. Se isso é verdade, em que se baseia esse poder?

VS: Acho que só por acreditar naquilo que faço. Eu nunca digo qualquer coisa só porque alguém espera que eu diga. Só digo o que tem a ver com a minha consciência, com o que a minha vida me diz. E é essa liberdade, de longe, que me dá o poder.

FN: Bem, alguém diria que seria liberdade por não ser responsável. Um político teria que passar por esse tipo de escrutínio.

VS: Não. Nós também passamos por escrutínio. Muito profundo. Vou nas cidades onde as pessoas estão morrendo. Se eu não for responsável por eles, se eu vou, dou minha palestra e for embora, não poderei voltar uma segunda vez. Não teria qualquer forma de apoio. Não estamos nisso há um ou dois dias. Quando começamos a salvar sementes em 1987, ou promover a agricultura com a visão de que os camponeses da Índia não deveriam estar morrendo, estamos envolvidos nisso durante um período de 20, 30 anos. Voltamos às comunidades e essas comunidades são nosso sistema de responsabilidades. Eles aceitam ou rejeitam o que dizemos. E se apoiam o que lhes trazemos é porque escolhem apoiar, porque é precisamente aquilo que estão buscando. Nosso sistema de responsabilidade é muito mais amplo, mais rigoroso, porque lidamos com pessoas que não têm nenhum compromisso formal com a gente e cuja única fidelidade é o propósito comum e o interesse dos excluídos.

FN: Muito do que a Senhora diz ou escreve expressa uma forte característica anti-americana. E outros no movimento têm talvez sido indiscretos quanto, por exemplo, aos ataques do 11 de setembro, a guerra no Iraque, e assim por diante. A senhora é anti-americana?

VS: Alguns de meus melhores amigos são americanos. Gosto muito deles. Estudei na América do Norte, ensinei em universidades da América. Sou contra o abuso do poder.

FN: A Senhora acha que eles estão abusando do poder que têm?

VS: Sim, acho que estão abusando do poder que têm, em Washington. E a entrada da tripulação que está sentada na Casa Branca agora mesmo é o primeiro passo do abuso. E a entrada ilegítima deles está sendo usada para devastar o mundo. Com um modo de pensar tão limitado… Olho para aquele grupo de pessoas e as vejo como um período ultrapassado que sobreviveu a si mesmo no século 21.

FN: Mas não é esse o problema… o centro de sua tese é essa disparidade de riqueza no mundo. Mas no fundo, todo mundo quer ser americano, não? O agricultor de Ghana quer ter o mesmo estilo de vida do agricultor de Ohio…

VS: Isso não é absolutamente verdadeiro. Às vezes podem querer ter o estilo de vida do agricultor de Ohio, como se o agricultor de Ohio estivesse vivendo bem… Eu promovo intercâmbio entre agricultores de diferentes partes do mundo. Eu trouxe agricultores dos EUA para a Índia, e eles nos contam a história verdadeira, o que eles realmente estão passando. Dez milhões de dólares é o orçamento que a Monsanto tem para caçar agricultores, através de seus agentes legais, para processá-los e levá-los ao tribunal. O agricultor da América é o que o resto do mundo quer ser só como mito e ilusão.

FN: A Senhora esboçou há pouco, sua solução como o indivíduo, a comunidade num nível governamental… Eu me pergunto se não é tarde demais, se a globalização não tem se produzido há séculos e é um movimento irreversível. Lutar contra ela agora, não significa simplesmente regredir?

VS: A globalização não tem evoluído há séculos. Foi criada, foi rejeitada, outras formas foram introduzidas, formas mais democráticas de governo, formas mais democráticas de economia, e a forma corrente de globalização tem apenas uma década de idade. E já está fracassando. Fracassando em termos da reputação de seus supostos líderes econômicos, das corporações, das bancarrotas. É tão evidente. Está fracassando por não dar às pessoas qualquer segurança. E está fracassando até por não conseguir criar boas economias. Veja só a economia dos EUA, a economia dos Estados da Ásia Oriental…

FN: Mas então ela não deixaria de ser uma ameaça?

VS: O problema é que mesmo em seu fracasso, o quanto está levando para baixo consigo… É por isso que precisamos de alternativas. É por isso que nunca é tarde demais para FAZER AS COISAS DE UM MODO CONSCIENTE. E NÃO PERMITIR QUE AS COISAS SE DEGRADEM NUM SISTEMA SUICIDA E AUTO-DESTRUTIVO, QUE CAMINHA PARA SUA AUTO-EXTINÇÃO. Só nas últimas duas semanas, veja o que conseguimos com o Movimento apenas na Índia. Conseguimos reverter a privatização da água. Conseguimos reverter o controle da coleta do nosso gelo pela Cyngenta, uma empresa gigante de biotecnologia, conseguimos que o governo reconhecesse o fracasso da promessa feita pela biotecnologia. A não permissão da entrada de OMGs. Foram remetidos de volta os estoques de milho geneticamente modificado para os EUA: dois carregamentos de 22 toneladas. Então, estamos num ponto de reverter essa situação. Há novas estruturas, novos processos, novas imaginações sendo moldadas.

FN: Então, a Senhora está constatando pequenas conquistas?

Grandes conquistas.

FN: A Senhora vê a sua visão de mundo se concretizando, de alguma forma? O que mais precisa ser feito?

VS: Acho que durante a próxima década veremos as forças que criaram essa devastação por meio da globalização e, agora, por meio do militarismo, veremos essas forças declinarem, e o trabalho quieto de milhões de pessoas que criam alternativas, que continuam pensando através da esperança, continuam pensando através da solidariedade, que continuam pensando através da justiça, e a prática disso tudo… já presenciamos um florescer disso tudo. Eu faço avaliações do plantio orgânico no mundo todo. E vejo que ele está se espalhando muito mais depressa que os OGMs.

FN: Dra. Vandana Shiva, foi um prazer. Muito obrigado por ter falado em Agenda.

VS: Obrigada.

 

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