IMPÉRIO DOS HOMENS DE MELHOR QUALIDADE

A Ideologia da Poliarquia

Noam Chomsky para o counterpunch.org

 

 


11 de novembro de 2003

Tradução Imediata

O texto seguinte é uma passagem do livro Hegemony or Survival: America's Quest for Global Dominance (Hegemonia ou Sobrevivência: a América busca o domínio global) de Noam Chomsky, publicado pela Metropolitan Books.

Há alguns anos, umas das grandes personalidades da biologia contemporânea, Ernst Mayr, publicou algumas reflexões sobre a probabilidade de sucesso na busca de inteligência extraterrestre. Ele considerava as perspectivas muito limitadas. Seu raciocínio tinha a ver com o valor adaptativo daquilo que chamamos "inteligência superior", significando a forma humana específica de organização intelectual. Mayr estimou o número de espécies a partir da origem da vida em cerca de cinqüenta bilhões, sendo que somente uma dentre elas "alcançou o tipo de inteligência necessária para estabelecer uma civilização". Isso foi conseguido muito recentemente, talvez há 100.000 anos atrás. Acredita-se, geralmente, que apenas uma pequena espécie deste grupo tenha sobrevivido, da qual somos todos descendentes.

Mayr especulou que a forma humana de organização intelectual pode não ser favorecida pela seleção. A história da vida na Terra, escreveu ele, refuta a idéia que "é melhor ser inteligente do que estúpido", pelo menos julgando-se pelo sucesso biológico: os besouros e as bactérias, por exemplo, são amplamente mais bem sucedidos que os humanos em termos de sobrevivência. Ele também fez observações bastante sombrias de que "a expectativa de vida média de uma espécie é de cerca 100.000 anos".

Estamos entrando num período da história humana que pode fornecer uma resposta à questão do que é melhor: ser inteligente ou estúpido. A perspectiva mais esperançosa é que essa questão não seja respondida: se houver uma resposta definitiva, ela pode ser somente a de que os humanos constituíam um tipo de "erro biológico", usando seu rateio de 100.000 para se destruírem a si mesmos e, no processo, boa parte do resto.

Certamente, a espécie desenvolveu a capacidade de fazer justamente isso, e um hipotético observador extraterrestre poderia concluir que os humanos demonstraram essa capacidade no decorrer de sua história, dramaticamente nos últimos séculos, com um ataque ao meio-ambiente que sustenta a vida, à diversidade de organismos mais complexos, e com uma selvageria fria e calculada, os uns contra os outros, também.

Duas Superpotências

O ano de 2003 começou com muitas indicações de que as preocupações com relação à sobrevivência humana são extremamente realistas. Para mencionar alguns exemplos apenas, no outono de 2002, soube-se que uma guerra nuclear possivelmente terminal foi evitada por um fio quarenta anos antes. Imediatamente depois desta descoberta assustadora, a administração Bush bloqueou os esforços da ONU no sentido de banir a militarização do espaço, uma séria ameaça à sobrevivência. A administração também encerrou as negociações internacionais para prevenir a guerra biológica e se movimentou para garantir a inevitabilidade de um ataque ao Iraque, apesar de uma oposição popular sem precedentes na história.

Organizações de ajuda com extensa experiência no Iraque e estudos feitos por respeitadas organizações médicas advertiam que a invasão planejada poderia precipitar uma catástrofe humanitária. As advertências foram ignoradas por Washington e provocaram pouco interesse pela mídia. Um força-tarefa de alto nível dos EUA concluiu que os ataques com armas de destruição em massa (ADMs) no interior dos EUA eram "prováveis", e que essa probabilidade aumentaria no evento de uma guerra com o Iraque. Numerosos especialistas e agências de inteligência emitiram advertências semelhantes, acrescentando que a beligerância de Washington, não somente com relação ao Iraque, aumentava a ameaça a longo prazo do terrorismo internacional e a proliferação de ADMs. Essas advertências foram ignoradas.

Em setembro de 2002, a administração Bush anunciou sua Estratégia de Segurança Nacional, declarando o direito de recorrer à força para eliminar qualquer desafio aparente à hegemonia global dos EUA, a qual deveria ser considerada permanente. A nova grande estratégia causou grande preocupação em todo o mundo, até mesmo no seio da elite doméstica de política de relações exteriores. Também em setembro, uma campanha de propaganda foi lançada para representar Saddam Hussein como uma ameaça iminente aos EUA e para insinuar que ele foi responsável pelas atrocidades do 11 de setembro, e que planejava outros ataques. A campanha, lançada concomitantemente com o início das eleições semestrais do Congresso, teve muito sucesso ao provocar uma mudança nas atitudes. Em pouco tempo, desviou a opinião pública americana do espectro global e ajudou a administração a alcançar seus objetivos eleitorais e a definir o Iraque como um teste apropriado para a doutrina recém anunciada de se recorrer à força segundo a própria vontade.

O Presidente Bush e seus associados também persistiram na destruição dos esforços internacionais para reduzir as ameaças ao ambiente, reconhecidamente muito graves, através de pretextos que mal conseguiram disfarçar sua dedicação a estreitos setores do poder privado. O Climate Change Science Program (CCSP, ou Programa de Ciência para a Mudança Climática) da administração, escreveu Donald Kennedy, editor da revista Science, é um travesti que "não incluiu qualquer recomendação para a limitação de emissões ou outras formas de mitigação", contentando-se com "alvos de redução voluntários que, mesmo se alcançados, permitem que as taxas de emissão dos EUA continuem crescendo ao redor de 14% por década". O CCSP nem mesmo considerou a probabilidade, suportada por "um corpo crescente de evidências", de que as mudanças no aquecimento climático a curto prazo que ele ignora "provocarão um processo abrupto não linear", produzindo mudanças dramáticas de temperatura que poderiam representar riscos extremos para os EUA, a Europa e outras zonas temperadas. A atitude "desdenhosa quanto aos compromissos multilaterias relativos ao problema do superaquecimento global" da parte da administração Bush, continuou Kennedy, é a "postura que deu início ao longo e contínuo processo de erosão da amizade com a Europa", levando a um "sério ressentimento".

Em outubro de 2002, era difícil ignorar o fato de que o mundo estava "mais preocupado com o uso descontrolado do poder americano do que… com a ameaça representada por Saddam Hussein", e "tão decidido a limitar o poder do gigante do que… em confiscar as armas do déspota". As preocupações mundiais aumentaram nos meses sucessivos, enquanto o gigante deixava claras as suas intenções de atacar o Iraque, mesmo quando os inspetores da ONU, que ele relutantemente tolerava, não descobriram as armas que poderiam fornecer o pretexto. Em dezembro, o apoio à guerra de Washington não chegava a alcançar os 10 por cento em quase todas as partes, exceto nos EUA, segundo as sondagens internacionais. Dois meses depois, depois de imensas manifestações em todo o mundo, a imprensa reportava que "haveria ainda duas superpotências no planeta: os EUA e a opinião pública mundial" ( "os Estados Unidos" aqui querendo dizer o poder do estado, e não a opinião pública ou mesmo a opinião da elite).

No começo de 2003, pesquisas revelavam que o medo com relação aos EUA tinha alcançado novos níveis em todo o mundo, juntamente com a desconfiança de sua liderança política. O desrespeito pelos direitos e necessidades humanos mais elementares associado com a demonstração de um desprezo pela democracia praticamente sem paralelos, acompanhados de uma profissão de sincera dedicação pelos direitos humanos e pela democracia. Esses acontecimentos foram profundamente inquietantes para aqueles que se preocupam com o mundo que vão deixar para seus netos.

Embora os planejadores da administração Bush estejam num dos extremos do espectro político tradicional dos EUA, seus programas e doutrinas têm muitos pré-cursores, tanto na história dos próprios EUA como entre os prévios aspirantes ao poder global. Fato ainda menos auspicioso, suas decisões podem não ser consideradas irracionais dentro do contexto da ideologia prevalecente e das instituições que a corporificam. Há um amplo precedente histórico para o desejo dos líderes de ameaçar e recorrer à violência face ao risco significativo de catástrofe. Mas os riscos são muito maiores hoje. A escolha entre hegemonia e sobrevivência raramente, ou talvez nunca, tenha sido colocada de modo tão absoluto.

Vamos tentar desembaraçar alguns dos muitos fios que compõem essa complexa tapeçaria, concentrando nossa atenção no poder mundial que proclama a hegemonia global. Suas ações e doutrinas mestras devem constituir uma preocupação básica para todos os habitantes do planeta, sobretudo, é claro, para os americanos. Muitos desfrutam de vantagens e liberdade pouco comuns, daí a capacidade de moldar o futuro, e deveriam encarar com cuidado as responsabilidades que são o corolário imediato de tais privilégios.

Território inimigo

Aqueles que querem encarar suas responsabilidades com um empenho genuíno em relação à democracia e à liberdade — — mesmo à sobrevivência decente — — deveriam reconhecer as barreiras que existem em seus caminhos. Em estados violentos, elas não são disfarçadas. Em sociedades mais democráticas, as barreiras são mais sutis. Embora os métodos difiram muito das sociedades mais brutais para as mais livres, os objetivos são, de muitas formas, similares: garantir que o "grande selvagem", como Alexander Hamilton chamava o povo, não supere seus os limites que lhe são designados.

O controle da população tem sido sempre uma preocupação dominante do poder e privilégio, especialmente desde a primeira revolução moderna e democrática, na Inglaterra do século XVII. Os que se auto-definiam "homens de melhor qualidade" ficavam estarrecidos quando uma "multidão atordoada de selvagens com formato humano" rejeitava a estrutura básica do conflito civil que enfurecia a Inglaterra entre o rei e o Parlamento, e reivindicava um governo "feito de camponeses como nós, que sabemos o que queremos", e não de "cavaleiros e cavalheiros que nos fazem as leis, que são escolhidos em função do medo e sendo que tudo o que fazem é nos oprimir, sem conhecer as dores do povo". Os homens de melhor qualidade reconheciam que se as pessoas são tão "depravadas e corruptas" de modo a "conferir posições de poder e confiança a homens mal-intencionados e não merecedores de confiança, eles desviam seu poder para esse fim, às expensas daqueles que são bons, embora esses sejam poucos". Quase três séculos depois, o idealismo wilsoniano, como é geralmente chamado, adotou uma posição similar. No exterior, é responsabilidade de Washington garantir que o governo esteja nas mãos dos " bons, embora sejam poucos". Dentro da nação, é necessário salvaguardar um sistema de tomada de decisão de elite e ratificação pública - - uma "poliarquia", na terminologia da ciência política — e não democracia.

Copyright © 2003 Aviva Chomsky, Diane Chomsky, and Harry Chomsky

 

 

 

Empire of the Men of Best Quality

The Ideology of the Polyarchy

By NOAM CHOMSKY

The following is an excerpt from thebook Hegemony or Survival: America's Quest for Global Dominance by Noam Chomsky, published by Metropolitan Books.

Counterpunch. org

November 1 / 2, 2003

A few years ago, one of the great figures of contemporary biology, Ernst Mayr, published some reflections on the likelihood of success in the search for extraterrestrial intelligence. He considered the prospects very low. His reasoning had to do with the adaptive value of what we call "higher intelligence," meaning the particular human form of intellectual organization. Mayr estimated the number of species since the origin of life at about fifty billion, only one of which "achieved the kind of intelligence needed to establish a civilization." It did so very recently, perhaps 100,000 years ago. It is generally assumed that only one small breeding group survived, of which we are all descendants.

Mayr speculated that the human form of intellectual organization may not be favored by selection. The history of life on Earth, he wrote, refutes the claim that "it is better to be smart than to be stupid," at least judging by biological success: beetles and bacteria, for example, are vastly more successful than humans in terms of survival. He also made the rather somber observation that "the average life expectancy of a species is about 100,000 years."

We are entering a period of human history that may provide an answer to the question of whether it is better to be smart than stupid. The most hopeful prospect is that the question will not be answered: if it receives a definite answer, that answer can only be that humans were a kind of "biological error," using their allotted 100,000 years to destroy themselves and, in the process, much else.

The species has surely developed the capacity to do just that, and a hypothetical extraterrestrial observer might well conclude that humans have demonstrated that capacity throughout their history, dramatically in the past few hundred years, with an assault on the environment that sustains life, on the diversity of more complex organisms, and with cold and calculated savagery, on each other as well.

Two Superpowers

The year 2003 opened with many indications that concerns about human survival are all too realistic. To mention just a few examples, in the early fall of 2002 it was learned that a possibly terminal nuclear war was barely avoided forty years earlier. Immediately after this startling discovery, the Bush administration blocked UN efforts to ban the militarization of space, a serious threat to survival. The administration also terminated international negotiations to prevent biological warfare and moved to ensure the inevitability of an attack on Iraq, despite popular opposition that was without historical precedent.

Aid organizations with extensive experience in Iraq and studies by respected medical organizations warned that the planned invasion might precipitate a humanitarian catastrophe. The warnings were ignored by Washington and evoked little media interest. A high-level US task force concluded that attacks with weapons of mass destruction (WMD) within the United States are "likely," and would become more so in the event of war with Iraq. Numerous specialists and intelligence agencies issued similar warnings, adding that Washington's belligerence, not only with regard to Iraq, was increasing the long-term threat of international terrorism and proliferation of WMD. These warnings too were dismissed.

In September 2002 the Bush administration announced its National Security Strategy, which declared the right to resort to force to eliminate any perceived challenge to US global hegemony, which is to be permanent. The new grand strategy aroused deep concern worldwide, even within the foreign policy elite at home. Also in September, a propaganda campaign was launched to depict Saddam Hussein as an imminent threat to the United States and to insinuate that he was responsible for the 9-11 atrocities and was planning others. The campaign, timed to the onset of the midterm congressional elections, was highly successful in shifting attitudes. It soon drove American public opinion off the global spectrum and helped the administration achieve electoral aims and establish Iraq as a proper test case for the newly announced doctrine of resort to force at will.

President Bush and his associates also persisted in undermining international efforts to reduce threats to the environment that are recognized to be severe, with pretexts that barely concealed their devotion to narrow sectors of private power. The administration's Climate Change Science Program (CCSP), wrote Science magazine editor Donald Kennedy, is a travesty that "included no recommendations for emission limitation or other forms of mitigation," contenting itself with "voluntary reduction targets, which, even if met, would allow US emission rates to continue to grow at around 14% per decade." The CCSP did not even consider the likelihood, suggested by "a growing body of evidence," that the short-term warming changes it ignores "will trigger an abrupt nonlinear process," producing dramatic temperature changes that could carry extreme risks for the United States, Europe, and other temperate zones. The Bush administration's "contemptuous pass on multilateral engagement with the global warming problem," Kennedy continued, is the "stance that began the long continuing process of eroding its friendships in Europe," leading to "smoldering resentment."

By October 2002 it was becoming hard to ignore the fact that the world was "more concerned about the unbridled use of American power than . . . about the threat posed by Saddam Hussein," and "as intent on limiting the giant's power as . . . in taking away the despot's weapons. " World concerns mounted in the months that followed, as the giant made clear its intent to attack Iraq even if the UN inspections it reluctantly tolerated failed to unearth weapons that would provide a pretext. By December, support for Washington's war plans scarcely reached 10 percent almost anywhere outside the US, according to international polls. Two months later, after enormous worldwide protests, the press reported that "there may still be two superpowers on the planet: the United States and world public opinion" ("the United States" here meaning state power, not the public or even elite opinion).

By early 2003, studies revealed that fear of the United States had reached remarkable heights throughout the world, along with distrust of the political leadership. Dismissal of elementary human rights and needs was matched by a display of contempt for democracy for which no parallel comes easily to mind, accompanied by professions of sincere dedication to human rights and democracy. The unfolding events should be deeply disturbing to those who have concerns about the world they are leaving to their grandchildren.

Though Bush planners are at an extreme end of the traditional US policy spectrum, their programs and doctrines have many pre-cursors, both in US history and among earlier aspirants to global power. More ominously, their decisions may not be irrational within the framework of prevailing ideology and the institutions that embody it. There is ample historical precedent for the willingness of leaders to threaten or resort to violence in the face of significant risk of catastrophe. But the stakes are far higher today. The choice between hegemony and survival has rarely, if ever, been so starkly posed.

Let us try to unravel some of the many strands that enter into this complex tapestry, focusing attention on the world power that proclaims global hegemony. Its actions and guiding doctrines must be a primary concern for everyone on the planet, particularly, of course, for Americans. Many enjoy unusual advantages and freedom, hence the ability to shape the future, and should face with care the responsibilities that are the immediate corollary of such privilege.

Enemy Territory

Those who want to face their responsibilities with a genuine commitment to democracy and freedom -- even to decent survival -- should recognize the barriers that stand in the way. In violent states these are not concealed. In more democratic societies barriers are more subtle. While methods differ sharply from more brutal to more free societies, the goals are in many ways similar: to ensure that the "great beast," as Alexander Hamilton called the people, does not stray from its proper confines.

Controlling the general population has always been a dominant concern of power and privilege, particularly since the first modern democratic revolution in seventeenth-century England. The self-described "men of best quality" were appalled as a "giddy multitude of beasts in men's shapes" rejected the basic framework of the civil conflict raging in England between king and Parliament, and called for government" by countrymen like ourselves, that know our wants," not by "knights and gentlemen that make us laws, that are chosen for fear and do but oppress us, and do not know the people's sores." The men of best quality recognized that if the people are so "depraved and corrupt" as to "confer places of power and trust upon wicked and undeserving men, they forfeit their power in this behalf unto those that are good, though but a few." Almost three centuries later, Wilsonian idealism, as it is standardly termed, adopted a rather similar stance. Abroad, it is Washington's responsibility to ensure that government is in the hands of "the good, though but a few." At home, it is necessary to safeguard a system of elite decision-making and public ratification -- "polyarchy," in the terminology of political science -- not democracy.

Copyright © 2003 Aviva Chomsky, Diane Chomsky, and Harry Chomsky

 

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