Bioterror e Biosegurança

 

 


Vandana Shiva
The Hindu

19 de outubro de 2001

Tradução Imediata

As informações sobre os casos de antraz na Flórida e em Nova York voltaram a renovar as atenções quanto ao bioterror — os riscos e perigos postos por agentes biológicos. Dos Estados Unidos à Índia, os governos estão em alto estado de alerta. Até mesmo a Organização Mundial da Saúde emitiu boletins de advertência. Americanos e europeus têm estocado máscaras anti-gás e antibióticos, e imagens de policiais e investigadores em uniformes de proteção contra os perigos biológicos já começaram a aparecer nas primeiras páginas de jornais e revistas.


O pânico e o medo espalhados pelos riscos de ataques biológicos no período pós-11 de setembro são muito diferentes da complacência que se verificava anteriormente, mesmo se a ameaça à saúde pública e ao ambiente a partir de agentes biológicos perigosos não seja nova. Se devemos responder de modo adequado e consistente ao bioterror, então precisamos levar em conta duas questões básicas. Em primeiro lugar, os agentes biológicos infecciosos causam doenças e matam, independentemente de quem os espalha e de como eles são difundidos. A paranóia atual se origina do medo que eles possam cair nas mãos de terroristas.

Todavia, se os terroristas podem obter esses agentes é porque eles estão disponíveis. E eles constituem um perigo mesmo se não estiverem nas mãos de terroristas. Como Vaclav Havel, Presidente da República Tcheca, disse em seu discurso de abertura do Fórum 2000, em Praga, no dia 14 de outubro: "Bin Laden não inventou os agentes bacteriológicos". Eles foram inventados pelos departamentos de defesa ou pelos laboratórios das corporações. O antraz tem sido parte da escalada da guerra biológica promovida pelos mesmos estados que hoje se preocupam com bioterrorismo. E a engenharia genética de organismos biológicos, tanto para a guerra quanto para o uso em alimentos e na agricultura, está criando novos perigos de ordem biológica, sejam eles intencionais ou não-intencionais. Em segundo lugar, é um fato plenamente reconhecido de que o fortalecimento dos sistemas públicos de saúde é a única resposta contra o bioterrorismo. Entretanto, justamente quando mais se precisa de sistemas de informações de saúde pública, eles estão sendo desmantelados, em consequência das pressões a favor da privatização e da liberalização do comércio. O bioterrorismo deveria ajudar os governos a reconhecerem de que precisamos desesperadamente de uma forte regulamentação sobre a biosegurança e os sistemas públicos de saúde.

O movimento dos cidadãos globais e o movimento dos cientistas preocupados com a biosegurança têm alertado os Governos quanto aos riscos ecológicos e de saúde provocados pela engenharia genética e, portanto, do imperativo de testarem, avaliarem e regularem o lançamento de organismos geneticamente modificados (OGMs) no meio-ambiente. O conflito básico com relação à necessidade de se avaliarem os OGMs quanto aos seus perigos de ordem biológica estava no centro das negociações que se estenderam por uma década, sob a égide da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica e que foram concluídas, finalmente, em fevereiro de 2000, em Montréal, no Protocolo sobre Biosegurança.


Há duas preocupações principais com relação aos riscos potenciais de perigos de ordem biológica a partir dos OGMs. Primeiramente, os vetores usados para a introdução de genes de um organismo para outro, com o objetivo de se produzir um OGM, são agentes biológicos altamente infecciosos e virulentos. De fato, é justamente sua natureza infecciosa que os torna úteis como vetores para introduzir genes alienígenas em organismos biológicos. Os riscos do uso de vetores virulentos na engenharia de novas formas de vida ainda não foram devidamente avaliados. E o seu uso pelo bioterrorismo se torna mais fácil, à medida em que esses vetores são espalhados comercialmente no mundo todo.

Em segundo lugar, como os OGMs são organismos novos, que não existiam na natureza, o seu impacto no ambiente e na saúde humana é ainda desconhecido. A ignorância quanto a esse impacto está sendo tratada como prova de segurança, o que constitui uma abordagem totalmente anti-científica. Ela tem sido definida como a abordagem do "não olhe, não veja" com relação à biosegurança.
A guerra biológica ou o bioterrorismo é o uso deliberado de organismos vivos para matar pessoas. Quando as políticas econômicas baseadas na liberalização e globalização do comércio, deliberadamente espalham doenças fatais e infecciosas tais como a AIDS, a TB e a malária, como resultado do desmantelamento dos sistemas médicos e de saúde, essas políticas também se tornam instrumentos de bioterror. Esse é o modo como grupos de cidadãos têm se organizado em todo o mundo, contra os Acordos TRIPS (Trade Related Intellectual Property Rights — Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio) e GATS (General Agreement on Trade and Services — Acordo Geral em Comércio e Serviços) da Organização Mundial do Comércio. Os TRIPS impõem patentes e monopólios para remédios e medicamentos, colocando-os fora do alcance das populações pobres.


Por exemplo, os remédios contra a AIDS, que custam US$ 200 sem patentes, custam US$ 20.000 com as patentes. Os TRIPS e as patentes de remédios se tornam verdadeiras receitas para a disseminação de doença e morte, porque elas colocam a cura fora do alcance dos pobres. De modo similar, a privatização dos sistemas de saúde, assim como imposto pelo Banco Mundial, sob os Programas de Ajuste Estrutural (PAE), e também propostos pelo GATS, propagam doenças infecciosas porque foram suprimidos e desmantelados os sistemas de saúde pública decentralizados e de baixo custo. Essas também são formas de bioterror. Elas são diferentes dos atos praticados por terroristas somente porque são perpetradas pelos poderosos, e não pelos marginalizados e excluídos, e são cometidas pelo fanatismo da ideologia de livre mercado, e não pelas ideologias religiosas fundamentalistas. Mas em termos do seu impacto, são a mesma coisa. Elas matam espécies e pessoas inocentes, espalhando a doença.
Parar a difusão do bioterror em todos esses níveis requer acabar com a proliferação de tecnologias que criam organismos biológicos potencialmente perigosos. Isso também requer que se pare com a proliferação de políticas econômicas e de comércio que estão desfalcando os sistemas públicos de saúde, difundindo doenças infecciosas e tornando as sociedades mais vulneráveis ao bioterrorismo.

Vandana Shiva é Diretora do Research Foundation for Science, Technology and Ecology, em Nova Déli.

The Hindu (New Delhi)
October 19, 2001

Bioterror and biosafety
By Vandana Shiva


The reports of anthrax cases in Florida and New York have put a renewed focus on bioterror - the risks and hazards posed by biological agents. From the U.S. to India, Governments are on high alert. Even the World Health Organisation has issued warnings. Americans and Europeans have been stockpiling gas masks and antibiotics, and images of policemen and investigators in biohazard suits have started to make front-page appearances in newspapers and magazines.

The panic and fear being spread about biohazards in the post-September 11 period is so different from the complacency earlier, even though the threat to public health and the environment from hazardous biological agents is not new. If we have to respond adequately and consistently to bioterror, we need to take two basic issues into account. Firstly, infective biological agents cause disease and kill, irrespective of who spreads them and how they spread. The current paranoia arises from the fear that they could get into terrorist hands.

However, terrorists can get them because they are around. And they pose hazards even if they are not in terrorist hands. As Vaclav Havel, President of the Czech Republic, said in his opening remarks of Forum 2000 in Prague on 14th October, "Bin Laden did not invent bacterial agents". They were invented in defence or corporate labs. Anthrax has been part of the ascend of biological warfare of the very states which are today worried about bioterrorism. And genetic engineering of biological organisms, both for warfare and food and agriculture, is creating new biohazards, both intended and unintended. Secondly, it is fully recognised that stronger public health systems is the only response to bioterrorism. However, precisely at a time when public health reports are needed most, they are being dismantled under privatisation and trade liberalisation pressures. Bioterrorism should help governments recognise that we desperately need strong biosafety regulation and public health systems.

The global citizens movement and the movement of concerned scientists for biosafety have been alerting Governments to the ecological and health risks of genetic engineering and therefore the imperative to test, assess and regulate the release of genetically modified organisms (GMOs) into the environment. This basic conflict over the need to assess GMOs for biohazards was at the heart of negotiations that stretched over a decade under the aegis of the United Nations Convention on Biological Diversity and were finally concluded in February 2000 in Montreal on the Protocol on Biosafety.


There are two major concerns for potential risks of biohazards from GMOs. Firstly, the vectors used for introducing genes from one organism to another to make a GMO are highly infectious and virulent biological agents. It is, in fact, their infectious nature which makes them useful as vectors to introduce alien genes into biological organisms. The risks of the use of virulent vectors for engineering novel life forms have not been assessed. And their use for bioterrorism becomes easier as they spread commercially around the world.

Secondly, since GMOs are novel organisms which have not existed in nature, their impact on the environment and on human health is not known. Ignorance of the impact is being treated as proof of safety, a totally unscientific approach. This has been called a "don't look, don't see" approach to biosafety.

Biowarfare or bioterrorism is the deliberate use of living organisms to kill people. When economic policies based on trade liberalisation and globalisation deliberately spread fatal and infectious diseases such as AIDS, TB and malaria, by dismantling health and medical systems, they too become instruments of bioterror. This is the way citizens groups have organised worldwide against the TRIPS (Trade Related Intellectual Property Rights) Agreement and GATS (General Agreement on Trade in Services) of the WTO. TRIPS imposes patents and monopolies on drugs, taking essential medicines beyond the reach of the poor.

For example, AIDS medicine, which costs $200 without patents, costs $20,000 with patents. TRIPS and patents on medicines become recipes for spreading disease and death because they take cure beyond people's reach. Similarly, privatisation of health systems as imposed by the World Bank under SAPS (Structural Adjustment Programmes) and also proposed in GATS, spreads infectious diseases because low cost, decentralised public health systems are withdrawn and dismantled. These are also forms of bioterror. They are different from the acts of terrorists only because they are perpetrated by the powerful, not the marginalised and the excluded and they are committed for the fanaticism of the free market ideology, not fundamentalist religious ideologies. But in impact they are the same. They kill innocent people and species by spreading disease.

Stopping the spread of bioterror at all these levels requires stopping the proliferation of technologies which create potentially hazardous biological organisms. It also requires stopping the proliferation of economic and trade policies which are crippling public health systems, spreading infectious diseases and leaving societies more vulnerable to bioterrorism.

Vandana Shiva is Director, Research Foundation for Science, Technology and Ecology, New Delhi.

(The writer is Director, Research Foundation for Science, Technology and
Ecology, New Delhi).



 

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