Tortura e miséria em nome da liberdade

 

 


Harold Pinter

Fonte: publicado em 14 de outubro de 2005 pelo Independent/Reino Unido

Tradução Imediata

As observações a seguir fizeram parte do discurso de aceitação do prêmio Wilfred Owen Award por Harold Pinter, neste ano.

O grande poeta Wilfred Owen articulou a tragédia, o horror — e, de fato, a piedade — da guerra, de um modo que nenhum outro poeta fez. Mesmo assim, não aprendemos nada. Quase 100 anos depois de sua morte, o mundo se tornou mais selvagem, mais brutal, mais impiedoso.

Mas o "mundo livre", conforme nos falam, enquanto formado pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha, é diferente do resto do mundo, já que nossas ações são ditadas e sancionadas por uma autoridade moral e uma paixão moral desculpadas por alguém chamado Deus. Certas pessoas acham difícil compreender isso, mas não Osama Bin Laden, que deve achar isso muito fácil.

O que diria Wilfred Owen da invasão do Iraque? Um ato bandido, um ato de flagrante terrorismo de estado, demonstrando absoluto desprezo pelo conceito de Direito Internacional. Uma ação militar arbitrária inspirada por uma série de mentiras e ainda mais mentiras e uma manipulação grosseira da mídia, e portanto, do público. Um ato com a intenção de consolidar o controle militar e econômico estadunidense do Oriente Médio, camuflado — como recurso final (todas as outras justificativas falharam na tentativa de se justificarem a si mesmas) — como liberação. Uma formidável imposição de força militar responsável pela morte e mutilação de milhares e milhares de pessoas inocentes.

Um relato independente e totalmente objetivo sobre a população civil morta no Iraque, na revista médica The Lancet, estima que a cifra se aproxima de 100.000. Mas nem os EUA nem o Reino Unido se dão ao trabalho de contar os mortos no Iraque. Como disse o General Tommy Franks, do Comando Central dos EUA: "Nós não contamos os mortos".

Nós levamos ao povo do Iraque a tortura, as bombas de fragmentação, o urânio empobrecido, inúmeros atos de matanças aleatórias, miséria e degradação e chamamos isso de "levar a liberdade e a democracia ao Oriente Médio". Mas, como sabemos todos, não nos deram as boas-vindas com as previstas flores. O que soltamos é uma resistência feroz e irremitente, mutilação e caos.

Neste ponto, o leitor poderia dizer: mas, e as eleições iraquianas? Bem, o próprio Presidente Bush respondeu a essa pergunta, quando disse: "Não podemos aceitar que possam ocorrer eleições democráticas num país sob ocupação militar estrangeira". Tive que ler esta declaração duas vezes antes de me dar conta de que ele estava falando do Líbano e da Síria.

O que Bush e Blair vêem, na realidade, quando se olham no espelho?

Creio que Wilfred Owen compartilharia nosso desprezo, nossa repulsa, nossa náusea e nossa vergonha, tanto com relação à linguagem quanto com as ações dos governos americano e britânico.

Harold Pinter acaba de ganhar o Prêmio Nobel para a literatura de 2005.

© 2005 The Independent

 

Torture and Misery in the Name of Freedom

by Harold Pinter

 Published on Friday, October 14, 2005 by the Independent/UK

The following remarks were adapted during Mr. Pinter's acceptance speech on winning the Wilfred Owen Award earlier this year.

 

The great poet Wilfred Owen articulated the tragedy, the horror - and indeed the pity - of war in a way no other poet has. Yet we have learnt nothing. Nearly 100 years after his death the world has become more savage, more brutal, more pitiless.

But the "free world" we are told, as embodied in the United States and Great Britain, is different to the rest of the world since our actions are dictated and sanctioned by a moral authority and a moral passion condoned by someone called God. Some people may find this difficult to comprehend but Osama Bin Laden finds it easy.

What would Wilfred Owen make of the invasion of Iraq? A bandit act, an act of blatant state terrorism, demonstrating absolute contempt for the concept of International Law. An arbitrary military action inspired by a series of lies upon lies and gross manipulation of the media and therefore of the public. An act intended to consolidate American military and economic control of the Middle East masquerading - as a last resort (all other justifications having failed to justify themselves) - as liberation. A formidable assertion of military force responsible for the death and mutilation of thousands upon thousands of innocent people.

An independent and totally objective account of the Iraqi civilian dead in the medical magazine The Lancet estimates that the figure approaches 100,000. But neither the US or the UK bother to count the Iraqi dead. As General Tommy Franks of US Central Command memorably said: "We don't do body counts".

We have brought torture, cluster bombs, depleted uranium, innumerable acts of random murder, misery and degradation to the Iraqi people and call it " bringing freedom and democracy to the Middle East". But, as we all know, we have not been welcomed with the predicted flowers. What we have unleashed is a ferocious and unremitting resistance, mayhem and chaos.

You may say at this point: what about the Iraqi elections? Well, President Bush himself answered this question when he said: "We cannot accept that there can be free democratic elections in a country under foreign military occupation". I had to read that statement twice before I realised that he was talking about Lebanon and Syria.

What do Bush and Blair actually see when they look at themselves in the mirror?

I believe Wilfred Owen would share our contempt, our revulsion, our nausea and our shame at both the language and the actions of the American and British governments.

Harold Pinter recently won the 2005 Nobel Prize for Literature.

© 2005 The Independent

 

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