Comunicado do Movimento de Artistas
sobre a Greve de Fome de Frei Luiz Cappio

 

 




Bené Fonteles
Coordenador do Movimento Artistas pela Natureza
e articulador do Movimento Arte Solidária

Brasília, 26 de setembro de 2005.

Querido Frei Luiz Cappio

 

Duas boas paixões nos unem e reconhecem nossa irmandade: a paixão pelo Velho Chico, nosso lendário e importante rio que um dia cruzou para sempre nossas vidas; o mesmo rio que nos fez aprendiz de seu povo barranqueiro ensinando a conviver com a humildade e a generosidade desta gente. E isso, sem falar do ilimitado poder criativo de suas vidas e de suas artes. A outra boa paixão, é o amor por São Chiquinho de Assis, padroeiro dos ecologistas e que entre eles, foi o primeiro. São Francisco é também o padrinho do rio que ainda teimamos em ver revitalizado para que seu povo tenha direito ao milagre da Vida.

Sua coragem e desprendimento no amor por estas duas paixões que nos unem, e, já uniram tantas vidas por este rio afora, agora ganha a dimensão da intrepidez e da coerência Gandhiana: uma greve de fome até a morte, contra a transposição e pela revitalização do Rio São Francisco. Venho lhe dizer que estarei espiritualmente ao seu lado durante todo o tempo do seu ato, mantendo o maior silêncio possível e me alimentando apenas com o que for necessário à sobrevivência. Quero ter o privilégio desentir um pouquinho do gosto da nobreza de seu gesto. Será a forma solidária de inspirar outros irmãos a compreender, pela sua atitude, o grande serviço que precisam prestar a todos os rios e a suas gentes.

O S. Francisco para nós é mais do que um mero curso d´água a preservar, que vai da nascente no cerrado mineiro ao encontro do mar nordestino no Atlântico. Para nós as águas do Velho Chico transcendem a utilidade de "recurso hídrico", e até mesmo, o elemento estético, fonte de belezas naturais com as quais o rio aponta deslumbramentos em cada um dos cincos estados em que abençoa a quem o despreza e a quem o ama.

Nós sabemos, Frei Luiz, pelo humilde aprendizado, até mesmo com o sofrimento, o que significa este rio para seu povo barranqueiro: - de manhã bem cedo, pescadores, lavadeiras, barqueiros, lavradores e feirantes, vão inaugurar o dia de cócoras em suas margens para colher, com as próprias mãos, a água de se benzer e matar a sede do corpo e da alma.

O Velho Chico é o nosso Rio Ganges (reverenciado na Índia como uma entidade espiritual à qual se recorre para a purificação do corpo e do espírito; é também o rio, para onde os indianos peregrinam de encontro à morte acreditando que a passagem em suas margens trará uma vida melhor na próxima existência).

Para nós, Frei Luiz, irmãos do caminho das Águas do Espírito, buscadores eternos da Verdade, esse rio santo que nasce mineiro no sertão e se eterniza nordestino no mar, vem de muito aquém de sua nascente e vai muito além de sua foz.

Eu que acompanhei, desde o nascedouro, a peregrinação pelo Velho Chico, de 92 a 93, em um ano de caminhada, testemunhei a inteligência e a sensibilidade de estratégias, assim como a competência ecológica, cultural e espiritual, não só sua, mas também de Adriano Martins, Irmã Conceição e Orlando Araújo, seus companheiros. Muitos sacrifícios pessoais foram feitos para partilhar com a população do rio a consciência da necessidade de sua revitalização, que agora vemos ameaçada pelo oportunismo político, pelas ambições econômicas e pelos equívocos nas políticas para o semi-árido.

O seu ato "Uma vida pela Vida" não vai só comover e mobilizar o povo ribeirinho, desde a nascente até a foz, onde sua imagem é, não só a de um bispo da Igreja, muito conhecido, mas também de um Frei e irmão muito admirado e amado. O coração dos brasileiros também será tocado para que todos despertem para cuidar melhor dos seus rios, muitos morrendo indignamente como esgotos a céu aberto. "Uma vida pela Vida" colocará na pauta das discussões políticas e comunitárias a necessidade de conhecer e de aplicar a Lei das Águas nº 9433/97, lei que dá direitos constitucionais a cada cidadão de mover o Ministério Público para defender o uso democrático da água limpa e compartilhada com todos.

Frei Luiz, o seu caminho corajoso de vida, que há décadas vem servindo ao povo do semi-árido pelas margens deste rio, aponta não só para a revitalização como uma bandeira que denuncia a sentença de morte de um rio. Seu caminho de coerência aponta também um facho luminoso de discernimento e clareza crítica sobre a ignorância e a omissão de uns somada à ambição de outros. Todos querendo fazer da transposição uma política governamental voltada para o agro ou hidro-negócio, sem uma consulta séria aos mais interessados, às populações ribeirinhas, e que nada, ou pouco, resolverá da situação aflitiva e carente do semi-árido brasileiro porque o cerne dos problemas nunca é tocado.

Sua greve de fome até a morte mostrará a Vida aos que não sabem o que fazem Dela, e o fazem através de ações incoerentes com plena falta de sabedoria e conhecimento sobre o rio, não só do ponto de vista ambiental, mas também pelo lado cultural e espiritual. Sua greve de fome aflorará a Vida onde quer que haja solo propício. Ela mostrará, da mesma forma como Gandhi mostrou à nação indiana, que as pessoas não são oprimidas só pelos poderosos, mas o são também por suas próprias limitações e por uma cultura acomodada e alimentada por tradições religiosas que incutem o medo, a culpa e a indolência. Sua nobre ação requer a reação da "beleza do compromisso" que Gandhi nos deixou como herança. Ela pede também ao povo do rio um maior compromisso com aquele que lhe dá tanto sustento, beleza e vida e por isso, deve ser a razão maior de seu afeto e gratidão.

A beleza do seu compromisso com a Vida, vai certamente despertar a adormecida consciência da nação brasileira que ainda não acordou no berço - já não tão esplêndido - para o seu verdadeiro potencial: a força mobilizadora e transformadora da cidadania que poderá fazer do Brasil um gigante pela própria natureza e inspirar solidariedade e amor ao Mundo. Sua greve de fome, também mostrará que estamos vergonhosamente cuspindo no prato em que comemos, por omissão e por falta de coragem e cuidados com aquilo que Deus criou e deixou para o uso, o zelo e o carinho dos humanos.

Desejo sim que seu sacrifício franciscano, como os muitos que o santo de Assis fez para estar junto e a serviço dos mais humildes, frutifique entre nós, os mais arrogantes e omissos, e dê no risco frágil da morte, a vida à Vida.

Porém, se o seu ato não tocar o coração dos governantes, que são os grandes responsáveis também pela revitalização do rio, junto com as ONGs e toda a sociedade civil, então parece que restarão poucas esperanças. Mas, mesmo assim, permanecerei nesse caminho com uma fé inabalável, quem sabe, quase a mesma que move o seu caminhar por este rio São Francisco servindo a todos como parte da sua própria alma. Essa é a sua verdadeira religião, aquela que encontra o Sagrado em todos e em todas as coisas. Seu serviço humilde compreende este Todo como a metáfora de um rio. Navega além desse rio que já foi sentido por seu corpo e seu espírito, e toca nossas almas com águas fundadoras e fundamentais. Elas, movidas por seu passar, nos falam do fluxo, da transparência, flexibilidade, leveza e disponibilidade para todas as relações.

Benza, Frei Luiz, com esse seu gesto as nossas águas internas ainda impuras e egoístas. Que ele purifique nosso espírito da ignorância da mente e das ambições da carne. Que redima em nosso coração aquilo que ainda não despertou de todo para a humildade do serviço e para a compaixão. Que ele inspire nossas vidas para a sabedoria que rege acima de tudo, e que seja um gesto de compartilhar um projeto de libertação.

Receba minha gratidão por tudo o que me ensinou desde o dia em que o conheci, em 1991, naquela comunidade que a sua inspiração fundou em Nazaré, na Bahia. Ali, naquele momento, assumimos uma parceria para que a peregrinação pelo São Francisco acontecesse com plenitude e naturalidade, e, ali também, nossos caminhos se fizeram pelas mesmas águas do Espírito Santo. Ele, com seu fogo de Pentecostes nos inspirou sonhos de preservação, afeitos à integridade e à harmonia, à arte e à ciência, à transcendência e à espiritualidade.

Receba o carinho e a força de vigília e oração permanente do seu irmão e companheiro nesta vida e na Vida da

Eternidade.

Paz, luz, amor e bem.

 

Bené Fonteles

Coordenador do Movimento Artistas pela Natureza

 

 

 

 

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