Fórum Social Mundial

Dignidade, Indignação e Encantamento.

 

 


Bene Fonteles

fevereiro de 2005

"Coragem grande é poder dizer sim!"

Caetano Veloso

Passada a poeira dos seis dias, deu para avaliar o Fórum Social Mundial como o acontecimento mais importante ocorrido no planeta, neste início de século XXI. Foi grande a emoção ao encontrar mais de 150.000 mil vidas vindas de todos os continentes da Terra com um mesmo sonho: compartilhar experiências para um Mundo mais solidário na economia, na política, na arte e na filosofia. Todos por uma ciência com consciência e uma espiritualidade fundamentada mais na ética do que na crença.

Por isso, faltou tato político, cultural e espiritual aos organizadores do FSM quando falharam ao não convidar os governantes de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, que autorizaram a ocupação de espaços da cidade, ou, a sair dos erários públicos, o dinheiro que financiou grande parte do Fórum. Falou-se muito, entre os gaúchos, da falta de elegância, distanciamento político e generosidade dos que gerem um evento feito para democraticamente para todos, inclusive os governos eleitos legitimamente pelo povo.

O aprendizado com estas lições, e as vivências, tão diversas, advindas de tantos povos, foi o tom deste encontro multicultural e o dom de sua pluralidade. Nele, a "beleza do compromisso" com a vida — como dizia Gandhi -, e o respeito às diferenças étnicas, criou uma celebração rara para ampliar espaços de consciência e cidadania.

Nos "Diálogos de Rua" promovidos pela "Aliança por um Mundo Responsável Plural e Solidário", e organizados pela Rede Mundial de Artistas em Aliança, que aconteceram num pequeno palco sonorizado às margens do exuberante Guaíba, tivemos a participação espontânea de transeuntes, que desejavam comunicar criativamente suas unicidades e diferenças, mais do que comungar a igualdade de ideais ou de princípios.

O começo do século XXI anuncia uma nova fraternidade não mais de "eleitos", e sim de seres humanos com anseios plurais e identificados com uma liberdade transcendente a qualquer realidade, seja nos becos estreitos de Sowetto ou nas ruas largas de Manhattan.

Sim, era de uma beleza e de harmonia ímpar saber nestas rodas de conversa, tão fora de hábito nas capitais, mas tão comuns na cultura do interior brasileiro - que haviam pessoas muito interessadas em narrativas sobre árvores e de suas importâncias no ciclo da vida pessoal; das tradições e sabedorias indígenas contadas por nativos e artistas; de arte solidária com a vida, em exercícios criativos de cidadania, encantamentos e alumbramentos poéticos com o Mundo.

Além da luta pelos direitos civis, tão justas e necessárias, havia a fome do essencial pela beleza, a compaixão e a amorosidade das trocas. Os "Diálogos de Rua", animados pelo inspirado poeta Hamilton Faria, abriam espaços largos e circulares para se falar sem medos de si, do outro e do compromisso cidadão que fundamenta mundos: perdoar sem culpas a si, para poder perdoar o outro.

Sim, ali no Fórum havia um lugar não só para as utopias, mas, também, para se reconhecer e dialogar com o outro, que é você mesmo num espelho sem Narciso. Era o ágora - como a dos gregos -, no agora, um espaço filosófico para se saber o sentido real da saudação dos povos maias: "I’Lakeche" — "Eu sou o outro você", ou, a dos hindus: "Namastê""A divindade que habita em mim saúda a divindade que habita em você", ou ainda, a dos nossos indígenas kaxinauá: "Txai" — "Metade de mim em você e metade de você em mim".

Aliás, "Txai" era também a moeda oficial de troca do 5º FSM, - cujo mote da economia solidária estava em ampla discussão nos vários espaços temáticos, geridos pelas Ongs com apoio ministerial e sindical. "Txai" propõe que o escambo possa ser uma nova forma de transmutar o consumismo voraz, transformar o capitalismo veloz, transcender o comunismo e o socialismo ainda venal em algo mais humano, real e respeitoso com os recursos naturais da Terra.

Renovação de linguagem:

Os jovens no 5º Acampamento Intercontinental da Juventude, no Parque Harmonia, engajados no tema "Fazer outro Mundo", decidiram não circular em seus espaços bebidas fabricadas por grandes corporações mundiais, preferindo sucos tropicais. Além de uma mudança de hábitos e vícios, essa atitude propunha uma coerência ética contra a indústria que financia trustes e guerras. A ética pessoal desses jovens avizinha-se de um novo paradigma, também antenado com o cuidado básico pela saúde. Embora a maconha fosse fumada livremente dentro do acampamento, lá fora, qualquer pobre coitado era preso e atuado. O não saber o lugar certo onde colocar o lixo, era outra das incoerências cometidas pelos adolescentes que em sua maioria exercitavam a cidadania num fórum pela primeira vez.

De qualquer forma, o Acampamento Intercontinental dava lugar ao viço da solidariedade e soluções de convivência pacífica entre tantas tribos tatuadas de esperança. Todas as artes de ser no Mundo ali eram contempladas e celebradas.

Milton Nascimento — que pena, nunca foi a nenhum dos Fóruns -, poderia ter cantado com toda coerência uma canção de letra modificada para a propícia ocasião: "A tribo toda reunida, Nações não mais divididas ao sol".

Em nossa Vera Cruz gaúcha o calor era de rachar, mesmo sendo um ponto geográfico do país tão próximo da Antártica. Eram mais de 35 graus de um verão com a umidade de um Guaíba sujo, contudo ainda tão vasto e tão belo. Nele naveguei e o vi dividido em ilhas de pescadores pobres e de privilegiados burgueses. Mas, do ponto de vista de uma geopolítica ampla e inclusiva, estávamos nós, mais do que agraciados pela gauchada boa, que nos recebeu de maneira tão generosa e sempre sábia.

Sim, fiquei encantado pela generosidade de uma Porto Alegre acolhedora, não só pela oportuna entrada de R$ 60 milhões no mercado deixados pelos "turistas revolucionários", mas também pelo fato da cidade respirar cidadania, renovação de sua linguagem cultural como urbe, urdindo espaços intimistas para colher e ampliar um novo projeto articulador de civilidade.

Havia também a força da tradição hospedeira dos pampas e de uma cultura popular à beira de receber uma das festas de maior querência: as ruas estavam inundadas de pontos de venda repletos de barquinhos azuis, feitos dos mais diversos materiais, que esperavam receber as oferendas para a Senhora dos Navegantes ou para Iemanjá. Iria acontecer no 2 de fevereiro uma festa sincrética, igual à da cidade do São Salvador, levando milhares de fiéis das ruas para o mar. Do Rio Vermelho, a praia, ou o Guaíba, o estuário, baianos e gaúchos chegam para saudar a deusa ou o espírito das águas. Era o fórum espiritual local, em que o povo cantaria e dançaria sua aldeia, para se sentirem mais universais, em reverência milenar ao mito da Deusa Mãe.

Sim, no Fórum como na festa, todos se encontravam com a memória do prazer e do fazer artesanal com o político e com o espiritual. Atitudes de fusão que devem contar sempre, na prática da cidadania consciente junto com a reflexão e o questionamento das coisas deste mundo.

Apontando outros caminhos:

Na Caminhada pela Paz - que reuniu mais de 100 mil cidadãos planetários -, e por um Mundo mais consciente de suas responsabilidades eletivas, nós, de diferentes tribos e facções éramos os artistas utópicos sempre prontos a refazer a Terra da perspectiva de um lugar mais digno do humano. Por isso, carecemos de uma paisagem mais criativa, ecológica e ambiciosa. Querendo por isso, um outro mundo impossível e passível de uma dignidade exuberante, de um respeito extraordinário pela diferença nesta vida ordinária que a realidade rasa nos impõe.

Sim, queremos muito, pois como canta Caetano, "Muito é muito pouco". Por sinal, outros artistas de extrema importância no país, nunca deram as caras no Fórum. A ausência destes artistas é sentida, porque suas presenças solidárias referendariam as propostas de cidadania compartilhada que o FSM espera de todas as esferas da sociedade. Gilberto Gil tanto na Índia como em Porto Alegre, arrasou como ministro propondo subversão digital, e como artista, cantando e emocionando os mais de 100 mil que vinham do caminhar pela paz. Aliás, o tom destoante desta caminhada foi que mais uma vez, os participantes, não souberam o que fazer com o lixo, deixando um rastro infeliz de incoerência e sujeira.

Sim, fiquei dignificado como cidadão ao ver do portão do mercado público, centenas de judeus vindos de vários países, com bandeiras do estado de Israel, faixas e camisetas azuis pedindo pelos dois estados, o israelita e o palestino - a ser criado -, unidos e em paz. Todos foram se juntar como rio ao mar na caminhada que deixou este ano de ter o nome de marcha para se tornar também semanticamente mais pacífica.

Sim, fiquei encantado pelos editoriais do melhor jornal local, o Zero Hora. Um destes inspirados textos, de nome "Semeadura de utopias" dizia: "É a diversidade que estimula a compreensão das diferenças e até o aprendizado para o espanto". E terminando, o editorialista nos espanta ao afirmar: "Todos os fóruns terão algum sentido prático se Sharon em Davos ou os adolescentes acampados em Porto Alegre sensibilizarem o Mundo para o direito humano fundamental de continuar sonhando".

Sim, graças aos novos deuses internautas e também aos velhos analfabetos digitais, felizmente, John Lennon não tinha razão, pois o sonho apenas está começando. Ele, o sonho, prossegue um imaginário coletivo milenar de criar realidades paralelas. E, junto com a arte tem cada vez mais responsabilidades de compartilhar seus exercícios de liberdade e transformação para ampliar os campos de consciência.

Por causa da arte - que está mais perto do eterno e pela causa da vida - que está mais junto da impermanência -, descobrimos que a Terra é uma ótima escola para aprender sobre o efêmero. Como o planeta nosso corpo também entra em estado de decrepitude e senilidade. Entretanto, o espírito se ilumina e evolui, decretando o inefável triunfo sobre a carne com o advento inevitável da morte.

Os conservacionistas — às vezes, muitos conservadores -, que me perdoem, mas a Terra está em constante transformação natural ou causada pelos seus habitantes passageiros e irresponsáveis. O que não precisamos é abreviar o seu estado terminal, com um suicídio coletivo sem dignidade, harmonia e esperança. Estas também são lições fundamentais do Fórum e para fóruns futuros.

Por isso, o FSM nos aponta caminhos de divino otimismo em relação ao ser humano. Este, tomado pelo entusiasmo da consciência de compartilhar com todos os seres vivos o seu papel de co-criador da história do Universo.

Por isso, também, acreditamos que a inteligência sensível do humano, nunca, em toda sua história civilizatória, foi tão solidária com os princípios fundamentais da vida, que vão além de uma mera carta de direitos humanos referendada pela ONU e, muitas vezes, infelizmente impossível de ser respeitada.

Sim, nunca tanta vida que alimenta vidas esteve tão acessível ao viver de todos. E eu falo, também, do campo das informações de mídias inclusivas e libertárias, sejam elas místicas, filosóficas ou científicas.

Embora, grande parte da massa esteja controlada por uma mídia imediática e mergulhada numa miséria emblemática da condição humana, esta miséria, porém, não vive só nas favelas de Mumbai, no Rio ou em Johannesburg. Os moradores dos guetos chiques são cada vez mais prisioneiros de alta segurança, pois ainda não sabem que abundância é ter e compartilhar.

Estas são as boas novas que nos trazem mais fé do que crenças neste quinto Fórum.

A beleza da diversidade:

Sim, fiquei alegre e encantado no meio do porto, de tanta diversidade em festa, quando visitei a barraca no setor de Arte e Criação que abrigava as super organizadas associações internacionais das prostitutas. No Brasil, como no mundo, elas são muito atuantes para conseguir não só a justa regulamentação de sua profissão, mas também na prevenção da AIDS que as ameaça e amedronta. Para a doença do século XX, encenam peças teatrais educativas como "Cabaré Davida", ou publicações dedicadas ao tema que são além de bem feitas, diretas e eficazes. E pasmem, seu jornal, "Beijo da Rua", já na quinta edição - segundo depoimento de uma bancária atuante -, é mais bem editado e com mais conteúdo jornalístico do que o periódico do Sindicato Nacional dos Bancários.

Elas dizem: "Nós que somos a Rede Brasileira das Prostitutas, não temos, no caminho de nossos acertos, medo de errar!", e ainda, "As mulheres boas vão para o céu, as mulheres más vão para qualquer lugar". Isto está em destaque num dos folders em que contam sua história nascida no Iº Encontro Nacional das Prostitutas em l987 no Rio de Janeiro, e com outras atuações em fóruns internacionais. Formando a Rede Brasileira das Prostitutas, defendem os mesmos direitos civis de saúde e liberdade que qualquer um que se preze humano e digno, deseja para seu fórum íntimo. Bravo!

Sim, estamos finalmente derrubando fronteiras não só geopolíticas, mas também, preconceituais. E isto não está a acontecer desde a queda do Muro de Berlim. Estamos erguendo em meio à globalização, uma universal e livre maneira de digerir as diferenças e gerir o Mundo pelo imagético ilimitado da criação. Isto também acontece através da virtualidade sem muros da internet, e, principalmente pela conspiração silenciosa do querer uma educação escolar e universitária mais libertária e humanista que precisa ainda contagiar o sistema educacional. Ao formar crianças e jovens, os educadores devem ter na mente e na alma, que estão educando a percepção e a sensibilidade dos que vão enfrentar com criatividade o desafio do futuro.

Sim, um virtuoso mundo de novos ideais se ergue sólido e sem fronteiras como sonhou Lennon em "Imagine". Um mundo sem barreiras para o imaginário de poéticos e políticos, cientistas e místicos, afinal, todos são os mágicos da Terra, e enfim, unificados em suas pluralidades.

Sim, tinha também no Fórum um gostinho escorrendo pelos lábios da memória, que começou a ter sabor de mudanças na década de 60 com o maio de Paris; com os festivais de rock nos campus da Europa e da América do Norte ou nas passeatas pelas liberdades culturais e políticas na América do Sul.

Estávamos em Porto Alegre, refazendo um velho caminho de lutas e sonhos advindos de outras e da minha própria geração. Agora, somamos a tudo isto - depois até de chegarmos ao poder -, a experiência da tolerância e da compaixão exercitada na metade do século XX pelo santo-político e pelo político-santo, o radicalíssimo Mahatma Gandhi. Ele agiu de forma revolucionária pela libertação de seu povo e dos povos do Mundo, em ações de não-violência, ainda não compreendidas em sua totalidade nem pela militância radical da mística que também faz a importância social do MST. Seria muito útil que na sua recém fundada Universidade Florestan Fernandes — um maravilhoso nome para uma justa homenagem -, pudessem os estudantes, refletirem sobre os princípios gandhianos que configuram anseios pacíficos de descolonizar territórios de mente e de espaço. E neles, deixar fluir gestos mais pacíficos de reformar o agrário e o egrégio.

O que aprendemos:

Que lições práticas e visionárias incorporamos no e do FSM nesta e das suas outras quatro edições?

Benny S. J. da "Organização Plantation Setor Social Fórum" do Sri Lanka diz que: "A voz das pessoas oprimidas pelo capitalismo foi ouvida"; Paolo Giliardi da "Política Trotskista e Militância Sindical" da Suíça: "O Fórum provou que existe resistência, que não há um consenso em torno do neoliberalismo"; Abenor Alfaro que trabalha com índios produtores de coca na Bolívia: "Comprovamos que os problemas em vários países são os mesmos e que só a unidade entre os povos pode resolvê-los"; Jose Luiz Uzcategui do "Comitê Internacional Revolucionário Bolivariano" da Venezuela: "Avançamos no aprofundamento dos processos revolucionários"; Saad Lujber do "Movimento Revolucionário da Líbia": "Há um consenso de que a verdadeira democracia não existe, e é preciso lutar por ela"; Isabel Pirajibe do "Movimento Nacional de Luta pela Moradia": "Houve trabalhos bons que foram ofuscados"; José Saramago, escritor português: "Ou os que se revoltam contra a supremacia dos poderosos aceitam o contraditório, a auto-crítica e pluralismo de idéias, ou continuarão celebrando a si próprios, mas sempre inertes e a reboque".

Luiz Inácio da Silva, nosso presidente, herói em outros Fóruns, aprendeu neste a conviver também com as vaias, as dezenas que ganhou de presente do novo partido de esquerda. A Globo ampliou-as para milhares. A elas, as vaias, respondeu o presidente com um bom humor que deveria ilustrar qualquer estadista, chamando-as de uma "harmonia gostosa" que já estava acostumado desde os tempos sindicais. E fez um discurso realista, muito coerente com os sentimentos do Fórum, cuja organicidade da dialética nos espaços temáticos, foi uma das melhores qualidades a serem seguidas em outras edições internacionais.

Hugo Chávez, presidente da Venezuela, personagem que mantemos entre a admiração dos que sofrem sobre pressão externa, e a desconfiança dos que preferem agradar a esquerda radical com seu discurso populista, estava no Fórum com sua comitiva exagerada de 400 pessoas. Soltou para a imprensa que o aplaudiu os cachorros, principalmente contra o big brother americano de quem pretende subverter a ordem, mas cujo poder não difere quase nada dos ditadores que tanto admira. Chávez que corre o perigo de se transformar em caricatura política latino-americana de militar revolucionário, com um diálogo diplomático de difícil identidade até com o governo brasileiro, saiu como um herói dos jovens e militantes desavisados que lotaram o ginásio de esportes Gigantinho. Resta o questionamento se seu discurso feroz contra os EUA, destoa ou não das proposta fundamentais do FSM.

Por tudo isto, também, não fiquei encantado, mas sim indignado com a situação dos refugiados na África, no Brasil e na França. A situação dos refugiados na França, como em outros países, está denunciada pela estética questionadora das instalações e fotografias contundentes da artista brasileira Marie Ange Bordas que as chamou de "Deslocamentos".

Marie Ange conviveu intensamente com refugiados de várias nacionalidades e criou com eles uma obra interativa e incômoda no Museu de Arte Contemporânea. O museu instalado nos armazéns - onde em parte do Fórum aconteciam os encontros de Arte e Criação -, abrigava com a exposição de Marie Ange muitos questionamentos sobre nosso papel de estar no Mundo e não nos envolvermos ativamente com ele. Por isso a ela, Marie, cabe o nome que cunhamos em 1992 por ocasião de nossas atuações na ECO-92: artivista. A passividade não cabia junto a sua instalação onde uma frase do refugiado na França, L. Neto — vindo de Angola -, se torna inesquecível: "Quando você está esperando, só existe, por que vê os outros vivendo".

O Movimento ArteSolidária:

Neste viés dos armazéns, onde a arte e a criação se misturavam a conversas sobre políticas de paz e articulações de sobrevivência com nomes como Eduardo Galeano ou Frei Betto, Marie Ange habitou seus queridos refugiados no exílio de uma pátria, e muito mais, de si mesmos. Neste mesmo espaço de convívio e confronto com múltiplas realidades planetárias, inserimos o Movimento ArteSolidária surgido durante o Fórum Mundial de Cultura em São Paulo em 2004 por iniciativa de doze parceiros interculturais.

O Movimento ArteSolidária, uma rede para a conexão de quem a faz no país, participou também de encontros temáticos como "O reencantamento do Mundo, o artista e as responsabilidades humanas", e, da I Conferência de Arte-Cidadania lotada dos que trabalhavam com arte na educação e que preparavam o Fórum Nacional de Arte e Cidadania para 2005.

Em todos estes encontros houve uma intensa troca de experiências já vivenciadas de arte solidária com interatividade cultural de um público que era não só criativo e poético, mas também ético em suas atitudes reivindicatórias pela busca da democratização dos espaços culturais. A tônica era sempre de torná-los mais acessíveis e inclusivos com depoimentos e propostas de ações concretas e inspiradoras vindas de seus estados e países.

Sim, fiquei muito encantado com o cortejo musical e espontâneo dos jovens do Acampamento Intercontinental da Juventude que ao visitarem e revirarem o lixo da cidade criaram dos restos instrumentos para um batuque que conseguiu empolgar a muitos. Formaram uma procissão bizarra e elétrica com uma alegria e leveza que me levou às lágrimas.

O outro mundo do impossível:

Nomes notáveis como Frei Betto, Emir Nader, Leonardo Boff, Tariq Ali e Adolfo Esquivel entre outros, lançaram ao término do FSM, o "Manifesto de Porto Alegre" com 12 propostas fundamentais, pedindo a urgência prática de suas reivindicações pela política mundial e pelos movimentos civis. Três importantes pontos: "Proibir todo tipo de propriedade sobre conhecimento e seres vivos (tanto humanos quantos animais e vegetais), do mesmo modo que qualquer privatização dos bens comuns da humanidade, em particular a água"; "Garantir o direito à soberania alimentícia de cada país mediante a promoção da agricultura familiar" e "Reformar e democratizar em profundidade as organizações internacionais, entre elas a ONU. Em caso de persistirem as violações da legalidade internacional por parte do EUA, transferir a sede da ONU de Nova York para outro país".

Sim, o lema do FSM "Um outro mundo é possível" no impossível mundo globalizado, nos dá a lição de que onde quer que ele aconteça, em 2006 entre a Venezuela, o Brasil e outros países, na África em 2007, ou ainda como aconteceu na Índia em 2004, será sempre muito importante ao chamar a atenção para um país ou um continente, ao jogar um foco de luz em zonas de perigos ambientais e humanos.

Sim, porque a poluição humana é um dos mais graves problemas do planeta, e ela está à espera não só de resoluções políticas e econômicas, mas de soluções práticas e criativas de toda a sociedade.

Por isso, com todos os erros e acertos, as ongs são fundamentais para a evolução deste processo de soluções políticas compartilhadas e democráticas na construção de uma sociedade civil menos passiva e mais humanística.

Não dá mais para ser displicente com o mundo ao redor, desde a atitude de não deixar a torneira aberta por muito tempo nas necessidades domésticas ou por injustas causas nos fazeres industriais. A solidariedade serve para os que vivem da pesca, e também, para os que são por estes pescados. O alimento saudável é para todos, conceito importante que o Fome Zero ainda não sacou. E a água, é mais que um bem precioso e primordial.

Há também que se exercitar com discernimento e clareza, até chegar a uma tolerância e compaixão em que possamos exercitar a experiência de nos defrontarmos com um irmão a te apontar uma arma e te pedir o que você pensa que é só teu. Ele está te pedindo mesmo sem o teu querer, o desapego dos bens que a traça rói e que a terra há de comer. Nestes atos, as sabedorias búdicas e crísticas se mostram mais filosóficas do que religiosas. Isto também, várias pessoas experienciaram durante o Fórum ao serem assaltadas como minha amiga Eveli Przepiorka. Artista e alquimista que nos facilitava em sua vivência, a respeitar e lidar melhor com a matéria, Eveli compreendeu muito bem no assalto a seu carro, a lição não só do desapego, ela precisou saber também o significado profundo do evento. E, perdoando-se, perdoou também o outro.

O FSM é a prova dos nove de que a felicidade que os indígenas descobriram nos paraísos das Américas — segundo Oswald de Andrade — antes dos portugueses e espanhóis invadirem suas nações -, é finalmente possível. Isto é o que diziam milhares de vozes na mesma voz em um porto alegre.

E que se o sonho não acabou — mesmo porque ele nos é eterno -, então, que se viva a experiência de risco de utilizarmos o tubo de ensaio da utopia que nos oferecem sem medos as provocações oportunas do FSM.

Ele, o Fórum, nos dá um recado radical e essencial igual ao que nos soa da voz mágica e lúcida do xamã mexicano Miguel Ruiz: "Você é o sonho e o sonhador".

Afinal, no meio de tantos nãos à Vida, eu digo muitos sims iguais ao contido no inspirado verso de João Cabral de Melo nos falando num auto de natal nordestino sobre a morte e a vida severina: "É tão belo como um sim / numa sala negativa".

 

Bené Fonteles

Coordenador do Movimento Artistas pela Natureza e

um dos animadores do Movimento ArteSolidária

 

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