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Notas
sobre o que foi feito e porque aos prisioneiros, pelos
americanos.
por
Susan Sontag
Fonte:
The New York Times Magazine, 23 de maio de 2004
Tradução
Imediata
...Tortura
na prisão de Abu Ghraib
(2004)
I.
Por
muito tempo pelo menos seis décadas as fotografias
assentaram as bases de como os conflitos importantes são
julgados e lembrados. O museu da memória ocidental é
agora, sobretudo, de tipo visual. As fotografias têm um poder
insuperável de determinar aquilo que lembramos dos eventos,
e agora parece provável que a associação fundamental,
para as pessoas no mundo todo, com relação à
guerra que os Estados Unidos lançaram preventivamente no
Iraque no ano passado, serão as fotografias dos prisioneiros
iraquianos sendo torturados pelos americanos, na mais infame das
prisões de Saddam Hussein, Abu Ghraib.
A
administração Bush e seus defensores procuraram sobretudo
limitar o desastre de relações públicas a
disseminação das fotografias ao invés
de lidar com os complexos crimes de liderança e de política
revelados pelas imagens. Houve, em primeiro lugar, um deslocamento
da realidade para as fotografias em si. A resposta inicial da administração
foi dizer que o presidente estava chocado e enojado com as fotografias
como se o erro ou o horror residisse nas imagens, e não
naquilo que elas retratam. Evitou-se também usar a palavra
"tortura". Os prisioneiros teriam sido vítimas
de eventuais "abusos", eventualmente de "humilhação"
isso foi tudo aquilo que se admitiu. "A minha impressão
é de que nesse ponto a acusação é de
abuso, o que é diferente de tortura", disse o Secretário
da Defesa Donald Rumsfeld numa coletiva à imprensa. "Assim,
portanto, não vou lidar com a palavra tortura."
As
palavras alteram, as palavras acrescentam, as palavras subtraem.
Há dez anos, verificou-se a árdua tarefa de se evitar
a palavra "genocídio", enquanto cerca de 800.000
tutsis em Ruanda foram massacrados em poucas semanas, pelos seus
vizinhos hutus, indicando que o governo americano não tinha
nenhuma intenção de fazer qualquer coisa a respeito.
Recusar-se de chamar o que ocorreu em Abu Ghraib e o que tem
ocorrido em todo o resto do Iraque, no Afeganistão e em Guantânamo
pelo seu verdadeiro nome, tortura, é tão escandaloso
quanto a recusa de se chamar o genocídio em Ruanda de genocídio.
Eis uma das definições de tortura contidas em uma
das convenções das quais os Estados Unidos são
signatários: " qualquer ato pelo qual se inflige
intencionalmente severa dor ou sofrimento a uma pessoa, seja de
ordem física ou mental, com propósitos tais como obter
da mesma ou de uma terceira pessoa informações ou
uma confissão". (A definição vem da
Convenção Contra a Tortura e Outras Crueldades, Tratamento
ou Punição Desumana ou Degradante, de 1984. Definições
similares têm existido há algum tempo no direito e
em tratados, começando com o Artigo 3 comum às
quatro convenções de Genebra de 1949 e muitas
convenções recentes sobre direitos humanos.) A convenção
de 1984 declara: "nenhuma circunstância excepcional,
de qualquer tipo, mesmo em estado de guerra ou sob ameaça
de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outro
tipo de emergência pública, poderá ser invocada
como justificativa para a tortura". E todos os convênios
sobre tortura especificam que ela inclui o tratamento que objetiva
humilhar a vítima, tal como deixar nus os prisioneiros em
celas ou corredores.
Seja
quais forem as ações que esta administração
tomar para limitar o dano das revelações crescentes
da tortura aos prisioneiros de Abu Ghraib e de outros lugares julgamentos,
cortes marciais, demissões por desonra, demissões
de militares de alto escalão e de funcionários públicos
responsáveis pela administração e substanciais
compensações às vítimas é
possível que a palavra "tortura" continuará
a ser banida. Reconhecer que os americanos torturam seus prisioneiros
seria contradizer tudo o que esta administração convidou
o público a acreditar, quanto à virtude das intenções
dos EUA e o direito dos EUA, fluindo diretamente daquela virtude,
de empreender uma ação unilateral no cenário
mundial.
Mesmo
quando o presidente foi finalmente compelido, à medida em
que os danos à reputação dos EUA no mundo todo
foram se dilatando e ampliando, a usar a palavra "desculpa",
o foco do pesar ainda parecia ser o dano à pretensão
da América quanto à sua superioridade moral. Sim,
o Presidente Bush disse em Washington, no dia 6 de maio, quando
estava ao lado do rei Abdullah II da Jordânia, que "sentia
muito pela humilhação sofrida pelos prisioneiros iraquianos
e a humilhação sofrida por suas famílias".
Mas continuou dizendo que "estava igualmente sentido pelo fato
de que as pessoas que olhavam para essas imagens não compreendiam
a verdadeira natureza e o coração da América".
Ter
todos os esforços dos EUA sintetizados por essas imagens
deve parecer, àqueles que procuravam alguma justificativa
para a guerra que depôs um dos monstruosos tiranos da era
moderna, "injusto". Uma guerra, uma ocupação,
é inevitavelmente uma imensa tapeçaria de ações.
O que torna algumas ações mais representativas e outras
não? A questão não é se a tortura era
praticada por certos indivíduos (ou seja, "não
por todos"), mas se era feita de modo sistemático. Autorizada.
Perdoada. Todos os atos são feitos por indivíduos.
A questão não é se a maioria ou a minoria dos
estadunidenses praticam tais atos, mas se a natureza das políticas
processadas por esta administração e as hierarquias
dispostas a levá-las a cabo aumentaram a probabilidade de
ocorrência desses atos.
II.
Consideradas
sob essa luz, as fotografias somos nós. Isto é, elas
são representativas das corrupções fundamentais
de qualquer ocupação estrangeira juntamente com as
políticas características da administração
Bush. Os belgas no Congo e os franceses na Argélia praticaram
a tortura e a humilhação sexual contra os nativos
desprezados e recalcitrantes. Acrescentando-se a essa corrupção
genérica o confuso, quase total despreparo dos governantes
americanos no Iraque para lidar com as complexas realidades do país
depois de sua "libertação". E adicionando-se
as típicas e abrangentes doutrinas da administração
Bush, principalmente a de que os EUA embarcaram numa guerra sem
fim e que os detidos nessa guerra são, se o presidente assim
decidir, "combatentes ilegais" política enunciada
por Donald Rumsfeld com relação aos prisioneiros talibãs
e da AlQaeda, já em janeiro de 2002 e, dessa forma,
como disse Rumsfeld, "tecnicamente" eles "não
têm qualquer direito conforme estipulado pelas convenções
de Genebra"; o resultado é uma receita perfeita para
as crueldades e os crimes cometidos contra os milhares de encarcerados,
os quais não têm qualquer acusação formal
feita contra eles nem têm acesso a advogados, nas prisões
administradas pelos EUA que foram criadas desde os ataques de 11
de setembro.
Assim,
portanto, será que a questão real não seriam
as fotos em si, mas aquilo que as fotos revelam ter acontecido aos
"suspeitos" sob custódia americana? Não:
o horror do que é mostrado nas fotos não pode ser
separado do horror do fato de que as fotos tenham sido feitas, com
os perpetradores posando, rindo da desgraça dos indefesos
prisioneiros. Os soldados alemães na Segunda Guerra Mundial
tiraram fotos das atrocidades que estavam cometendo na Polônia
e na Rússia, mas fotos em que os algozes se colocam junto
às suas vítimas são extremamente raras, como
pode ser visto no livro recém publicado, "Photographing
the Holocaust", de Janina Struk. Se há algo de comparável
ao que essas fotos mostram são algumas das fotos dos negros
vítimas de linchamento, tiradas entre 1880 e 1930, as quais
mostram americanos rindo embaixo do corpo nu e mutilado de um homem
ou de uma mulher de cor, enforcados e pendurados em uma árvore.
As fotografias dos linchamentos eram lembranças de uma ação
coletiva cujos participantes se sentiam perfeitamente justificados
com relação ao que tinham feito. Assim também
são as fotos de Abu Ghraib.
As
fotografias dos linchamentos eram do tipo foto-troféus, tiradas
por um fotógrafo com o propósito de serem colecionadas,
armazenadas em álbuns, exibidas. As fotos tiradas pelos soldados
americanos em Abu Ghraib, entretanto, refletem uma mudança
no uso feito das fotos; menos objetos a serem preservados do que
mensagens a serem disseminadas, circuladas. Uma câmera digital
é uma possessão comum entre os soldados. Se, antigamente,
fotografar a guerra era tarefa para fotojornalistas, agora os próprios
soldados são todos fotógrafos, registrando a guerra,
seus divertimentos, suas observações daquilo que consideram
pitoresco, suas atrocidades, além de trocarem as imagens
entre eles e enviá-las por e-mail ao mundo todo.
Há
cada vez mais registro do que as pessoas fazem, e isso feito por
elas mesmas. Pelo menos, ou especialmente, nos EUA. O ideal de Andy
Warhol de fotografar eventos reais em tempo real a vida não
é editada; porque deveria ser editado o seu registro?
tornou-se uma norma para inúmeras emissões via web,
nas quais as pessoas registram o seu dia, cada uma em seu próprio
reality show.
Aqui
estou eu, andando e bocejando e fazendo um alongamento, escovando
os dentes, preparando o café-da-manhã, levando as
crianças para a escola. As pessoas registram todos os aspectos
de suas vidas, armazenando-os nos arquivos de seus computadores,
e enviando esses arquivos. A vida em família integra-se com
o registro da vida em família, mesmo quando, ou especialmente
quando, a família está passando por alguma crise ou
desgraça. Certamente, gravar em vídeo, com dedicação
e de modo incessante, um ao outro, em conversa ou monólogo,
no decorrer de muitos anos, foi o material mais impressionante de
"Capturing the Friedmans", o recente documentário
de Andrew Jarecki sobre uma família de Long Island envolvida
numa acusação de pedofilia.
Para
um número cada vez maior de pessoas, a vida erótica
é o que pode ser capturado em fotos digitais e vídeo.
E talvez a tortura seja mais atraente, como algo que mereça
ser registrado, quando contém um componente sexual. É
certamente revelador, à medida em que mais fotos de Abu Ghraib
são vistas pelos público, que as fotos de tortura
são entrefolhadas com imagens pornográficas de soldados
americanos fazendo sexo os uns com os outros. De fato, a maioria
das fotos das torturas tem uma temática sexual, como aquelas
mostrando a coerção para que os prisioneiros fizessem
ou simulassem atos sexuais entre si. Uma exceção,
já canônica, é a foto do homem obrigado a ficar
de pé em cima de uma caixa, encapuçado e envolto em
fios, e a quem foi dito, segundo consta, que seria eletrocutado
caso caísse da caixa. Ainda assim, fotos de prisioneiros
forçados em posições dolorosas, ou obrigados
a ficarem de pé com os braços estendidos são
infreqüentes. Do fato de que elas contam como tortura, não
há dúvida nenhuma. Basta ver o terror no rosto das
vítimas, embora tal "estresse" se inclua dentro
dos limites que o Pentágono considera aceitáveis.
Mas a maioria das fotos parece parte de uma confluência mais
ampla de tortura e pornografia: uma jovem mulher puxando um homem
nu com uma coleira é uma clássica imagem de dominadora.
E cabe refletir sobre o quanto da tortura sexual infligida aos presidiários
de Abu Ghraib tenha sido inspirada pelo vasto repertório
de imagens pornográficas disponíveis na Internet,
e que as pessoas comuns, ao enviarem pela web imagens de si próprias,
tentam imitar.
III.
Viver
é ser fotografado, ter um registro da própria vida
e, portanto, continuar a própria vida como que esquecendo,
ou pretendendo ter esquecido das atenções ininterruptas
da câmera. Mas viver é também posar. Agir é
participar da comunidade de ações registradas como
imagens. A expressão de satisfação frente aos
atos da tortura sendo infligida às vítimas nuas, atadas
e impotentes é somente parte da história. Há
uma profunda satisfação quanto ao fato de se estar
sendo fotografado, e em função disso, da disposição
a se responder não com um olhar formal, direto (como em outros
tempos), mas com uma expressão de satisfação.
Os eventos são desenhados, em parte, para serem fotografados.
O sorriso é um sorriso para a câmera. Ficaria faltando
algo se, depois de se empilhar os homens nus, não se pudesse
tirar uma foto dos mesmos.
Olhando
essas fotos nos perguntamos como alguém pode rir dos sofrimentos
e das humilhações de um outro ser humano? Lançar
cães de guarda na altura dos genitais e das pernas de prisioneiros
nus que procuram recuar? Forçar prisioneiros acorrentados,
encapuçados a se masturbarem ou simularem sexo oral entre
si? E nos sentimos quase ingênuos por perguntar, já
que a resposta é, evidentemente, que as pessoas fazem isso
às outras. Estupro e dor infligidas nos genitais se incluem
entre as mais comuns formas de tortura. Não só em
campos de concentração nazistas e em Abu Ghraib, sob
a direção de Saddam Hussein. Os americanos também
aplicaram e aplicam essas torturas quando lhes dizem para fazê-la,
ou quando sentem que aqueles sobre os quais eles têm poder
absoluto merecem ser humilhados, atormentados. Eles as aplicam quando
são levados a crer que as pessoas que estão torturando
pertencem a uma raça ou a uma religião inferior. Porque
o significado dessas fotos não é apenas que esses
atos foram praticados, mas que os perpetradores aparentemente não
tinham nenhum senso de que havia algo de errado naquilo mostrado
pelas fotos.
Ainda
mais assombroso, já que o propósito das fotos era
o de fazê-las circular e que fossem vistas por muitas pessoas:
era divertido. E essa idéia de divertimento é cada
vez mais ao contrário daquilo que o Presidente Bush
está dizendo ao mundo parte da "verdadeira natureza
e coração da América". É difícil
medir a crescente aceitação da brutalidade no quotidiano,
nos EUA, mas sua evidência está em todas as partes,
começando com os vídeo games de assassinatos, um dos
entretenimentos principais dos meninos será que ainda
vai demorar muito para sair o vídeo game "Interrogando
os Terroristas?" e chegando à violência
que se tornou endêmica aos rituais de grupos de jovens, em
exuberantes excitações. O crime violento está
em baixa, mas o fácil deleite através da violência
parece ter aumentado. Dos rudes tormentos infligidos aos calouros
em muitas escolas suburbanas de segundo grau nos EUA como
aquelas ilustradas no filme de Richard Linklater de 1993, "Dazed
and Confused" aos obscuros rituais de brutalidade física
e humilhação sexual praticados em fraternidades colegiais
e em equipes esportivas, a América se tornou um país
no qual as fantasias e a prática da violência são
vistas como um bom entretenimento, um divertimento.
Aquilo
que antes era segregado como pornografia, como o exercício
de ansiosos desejos sado-masoquistas como no último
filme de Pier Paolo Pasolini, quase impossível de se ver,
"Salò" (1975), retratando orgias de torturas no
reduto fascista do norte da Itália, no fim da era de Mussolini
está passando agora por um processo de normalização,
por alguns, como um jogo animado e válvula de escape para
relaxamento. "Empilhar homens nus" é como uma travessura
de uma fraternidade de colegiais, disse um ouvinte a Rush Limbaugh
e aos milhões de americanos que escutam esse programa de
rádio. É de se perguntar: será que o ouvinte
viu as fotos? Não importa. A observação ou
será que é fantasia? foi acertada. O que ainda
pode chocar alguns americanos foi a resposta de Limbaugh: "Exatamente!",
exclamou ele. "É exatamente o meu ponto. Não
é nada diferente do que acontece na iniciação
do Skull and Bones (N.T.: fraternidade em que foi iniciado o atual
presidente George W. Bush, assim como o futuro candidato democrata
Kerry e que significa, literalmente, Crânio e Ossos) e vamos
acabar arruinando a vida das pessoas por causa disso, e vamos atrapalhar
os esforços dos nossos militares, e daí vamos martelar
a eles, só porque se divertiram." "Eles" são
os soldados americanos, os torturadores. E Limbaugh continuou: "Vocês
sabem, essas pessoas correm riscos de levar tiros todos os dias.
Eu falo da necessidade dessas pessoas de se divertirem. Por acaso
vocês já ouviram falar em válvula de escape
emocional?"
.....
..............................Cena
de "Salò" (1975)................................Tortura
na prisão de Abu Ghraib
(2004)
Choque
e pavor é o que os nossos militares prometeram aos iraquianos.
E choque e horror é o que essas fotos anunciam ao mundo,
e o que os EUA entregaram: um padrão de comportamento criminoso
em aberto desprezo das convenções humanitárias
internacionais. Agora, soldados posam, dedão para cima, em
frente das atrocidades que cometeram, e enviando as fotos depois
para seus amigos. Segredos da vida privada com relação
aos quais, previamente, se teria feito qualquer coisa para esconder,
e que agora são um clamor para ser convidado a revelar
tudo em algum show de televisão. O que é revelado
por essas fotos é tanto a cultura do descaramento e falta
de vergonha quanto a admiração reinante pela brutalidade
sem qualquer arrependimento.
IV.
A
noção de que as desculpas ou as manifestações
de "repugnância" feitas pelo presidente e seu secretário
de defesa sejam uma resposta suficiente é um insulto ao nosso
sentido histórico e moral. A tortura de prisioneiros não
é uma aberração. É uma conseqüência
direta das doutrinas de luta mundial do tipo "ou-está-conosco-ou-está-contra-nós",
com as quais a administração Bush procurou mudar,
e muda radicalmente a posição internacional dos EUA,
redefinindo muitas instituições e prerrogativas no
âmbito interno. A administração Bush empenhou
o país numa doutrina de guerra pseudo-religiosa, uma guerra
perpétua já que "a guerra contra o terror"
não é nada menos do que isso. A guerra perpétua
é tomada como justificativa para o encarceramento perpétuo.
Aqueles retidos no império penal extra-judicial dos EUA são
"detidos", "prisioneiros", uma palavra que se
tornou recentemente obsoleta, já que poderia indicar que
eles têm direitos segundo o direito internacional e o direito
de todos os países civilizados. Essa perpétua "guerra
global contra o terrorismo" dentro da qual tanto a bastante
justificável invasão do Afeganistão quanto
a impossível de ganhar idiotice no Iraque foram
declaradas por decreto do Pentágono inevitavelmente
conduz à demonização e desumanização
de qualquer indivíduo que a administração Bush
declare ser um possível terrorista: uma definição
que não está aberta a debates e é, com efeito,
geralmente feita em segredo.
As
acusações contra a maioria das pessoas detidas nas
prisões do Iraque e do Afeganistão sendo inexistentes
a Cruz Vermelha reporta que de 70 a 90 por cento dos detidos
parece não ter cometido crime algum além do fato de
se encontrarem no lugar errado no momento errado, e terem sido pegos
junto a algum bando de "suspeitos" a principal justificativa
para prendê-los é a "interrogação".
Interrogação sobre o que? Sobre qualquer coisa. Seja
o que for que o detido possa saber. Se a interrogação
é o motivo para se deter prisioneiros indefinidamente, então
a coerção física, a humilhação
e a tortura se tornam inevitáveis.
Cabe
lembrar: não estamos falando dos casos muito raros, das situações
" prestes a explodir", as quais são às vezes
usadas como casos-limite que justificam a tortura de prisioneiros
que teriam conhecimento de um ataque iminente. Estamos falando de
coleta de informações genéricas e não
específicas, autorizadas pelos administradores militares
e civis dos EUA para obter maiores informações sobre
o obscuro império de malfeitores com relação
aos quais os americanos não conhecem praticamente nada, em
países com relação aos quais são particularmente
ignorantes: em princípio, qualquer tipo de informação
poderia ser útil. Uma interrogação que não
produziu qualquer tipo de informação (não importando
em que consista essa informação) deve ser considerada
um fracasso. Quanto mais qualquer justificativa em termos de preparar
os prisioneiros para falar. Amansando-os ou estressando-os esses
são os eufemismos para as práticas bestiais nas prisões
americanas onde são detidos os suspeitos de terrorismo. Infelizmente,
como anotou o Sargento Ivan (Chip) Frederick em seu diário,
às vezes um prisioneiro pode chegar a ficar tão estressado
que acaba morrendo. A foto de um homem enfiado num saco plástico
com gelo sobre o peito pode se tratar de uma ilustração
daquilo de que Frederick está falando.
As
fotos não vão desaparecer. Essa é a natureza
do mundo digital na qual elas vivem. De fato, parece que elas foram
necessárias para que nossos líderes reconhecessem
o problema que têm nas mãos. Afinal de contas, as conclusões
dos relatórios compilados pela Comissão Internacional
da Cruz Vermelha, assim como de outros relatórios feitos
por jornalistas e de protestos de organizações humanitárias
sobre as punições hediondas infligidas aos "detentos"
e aos "suspeitos terroristas" nas prisões gerenciadas
pelos militares dos EUA, primeiro no Afeganistão, depois
no Iraque, têm circulado por mais de um ano. Parece pouco
provável que esses relatórios tenham sido lidos pelo
Presidente Bush ou pelo Vice-presidente Dick Cheney, ou por Condoleezza
Rice ou por Rumsfeld. Aparentemente, foram necessárias as
fotos para chamar a atenção deles, quando ficou claro
que os fatos não poderiam ser sufocados; foram as fotos que
tornaram tudo "real" para Bush e associados. Até
então, tinha havido só palavras, as quais são
mais fáceis de encobrir em nossa era de infinita auto-reprodução
e auto-disseminação, e tão mais fáceis
de esquecer.
Assim,
agora, as fotos vão continuar a nos "atacar" pelo
menos é assim que muitos americanos vão sentir. As
pessoas vão acabar se acostumando a elas? Alguns americanos
já estão dizendo que já viram o suficiente.
Não é o mesmo para o resto do mundo. Guerra perpétua:
fluxo perpétuo de fotografias. Será que os editores
vão debater agora se deveriam mostrar mais fotos, ou será
que mostrá-las isoladamente (o que, com algumas das imagens
mais conhecidas, como a do homem encapuçado em cima da caixa,
dá, em alguns casos, uma visão mais assombrosa), seria
"de mau gosto" ou, implicitamente, demasiado políticas?
Por "políticas", leia-se: críticas ao projeto
imperial da administração Bush. Porque não
há dúvidas de que as fotografias causam danos, como
testemunhou Rumsfeld: "a reputação de homens
e mulheres honrados das forças armadas que estão defendendo
com coragem, responsabilidade e profissionalismo nossa liberdade
em todo o globo". Esse dano contra a nossa reputação,
nossa imagem, nosso sucesso como única super-potência
é o que a administração Bush mais deplora.
Como a proteção de "nossa liberdade" a
liberdade de 5 por cento da humanidade que tornou necessária
a presença de soldados americanos "em todo o globo" é
um fato raramente debatido pelos nossos representantes eleitos no
governo.
O
rebate já começou. Os americanos já estão
sendo advertidos para não cederem a uma orgia de auto-condenação.
A contínua publicação das fotos está
sendo interpretada por muitos americanos como uma indicação
de que não temos o direito de nos defendermos: afinal, foram
eles (os terroristas) que começaram. Eles Osama bin
Laden? Saddam Hussein? Que diferença faz? nos atacaram
primeiro. O Senador James Inhofe de Oklahoma, membro do Partido
Republicano na Comissão de Serviços Armados do Senado,
diante da qual testemunhou o secretário da Defesa Rumsfeld,
declarou estar certo que não ele era o único membro
da comissão a estar mais "indignado com a indignação"
sobre as fotos do que com aquilo que as fotos em si mostravam. "Esses
prisioneiros", explicou o senador Inhofe, "vocês
sabem que eles não estão lá por terem cometido
infrações de trânsito. Se eles estão
no Bloco de Celas 1-A ou 1-B, esses prisioneiros, então,
são assassinos, são terroristas, são insurgentes.
Muitos deles têm, provavelmente, sangue americano nas mãos,
e nós, aqui, ficamos tão preocupados com o tratamento
dispensado a esses indivíduos." É culpa da "mídia",
que está provocando, e vai continuar a provocar ainda mais
violência contra os americanos no mundo todo. Mais americanos
morrerão. Por causa dessas fotos.
Há
uma resposta a essa acusação, naturalmente. Americanos
estão morrendo não por causa das fotos, mas devido
àquilo que as fotos revelam estar acontecendo, e acontecendo
com a cumplicidade da cadeia de comando assim insinuou o Major
General Antonio Taguba, assim disse a recruta Lynndie England e
assim sugeriu (entre outros) o senador Lindsey Graham da Carolina
do Sul, um republicano, depois que viu toda a gama de imagens no
dia 12 de maio. "Algumas delas têm uma natureza elaborada,
o que me cria suspeitas se havia outras pessoas dirigindo ou encorajando
essas ações", disse o senador Graham. O senador
Bill Nelson, democrata da Flórida, disse que ver as versões
isoladas de uma foto, mostrando uma pilha de homens nus num corredor
uma versão que revelava quantos soldados estavam presentes
na cena, alguns dos quais não estavam nem mesmo prestando
atenção no que ocorria estava em contradição
com a afirmação do Pentágono de que somente
um pequeno grupo embusteiro de soldados estavam envolvidos. "Em
algum momento", disse o senador Nelson sobre os torturadores,
"alguém lhes disse ou deu uma piscadela para que praticassem
tais ações". Um advogado para o Specialist Charles
Graner Jr., que está na foto, fez o cliente identificar os
homens na versão isolada das fotos; segundo o The Wall Street
Journal, Graner disse que quatro dos homens pertenciam à
inteligência militar e um era um contratante civil que trabalhava
para a inteligência militar.
V.
Mas
a distinção entre fotografia e realidade assim
como entre politicagem e política pode facilmente evaporar.
E é isso que a administração espera acontecer.
"Existem muitíssimas fotos e vídeos adicionais",
Rumsfeld admitiu em seu testemunho. "Se elas forem divulgadas
ao público, obviamente, as coisas vão piorar."
Piorar para a administração e seus programas, presumivelmente,
não para aqueles que são as vítimas reais e
potenciais? da tortura.
A
mídia pode autocensurar-se mas, como admitiu Rumsfeld, é
difícil censurar soldados no exterior, os quais não
escrevem cartas para casa, como no passado, cartas que podem ser
abertas e lidas pelos censores militares, os quais passam a tinta
preta sobre as linhas inaceitáveis. Os soldados de hoje,
ao contrário, funcionam como turistas; como Rumsfeld disse:
"correndo o mundo com câmeras digitais e tirando essas
fotos inacreditáveis e enviando-as, contra a lei, à
mídia, para nossa surpresa". O esforço da administração
para esconder as fotos é feito em várias frentes.
Atualmente, o argumento está passando por uma virada jurídica:
agora as fotos são classificadas como evidência em
futuros casos criminosos, cujo resultado pode ser prejudicado se
elas caírem aos olhos do público. O presidente republicano
da Comissão dos Serviços Armados do Senado, John Warner,
da Virgínia, depois do show de slides de 12 de maio, imagem
após imagem de humilhações sexuais e violência
contra prisioneiros iraquianos, disse que acreditava "com convicção"
que essas novas fotos "não deveriam ser divulgadas ao
público". Acho que isso poderia colocar em perigo ainda
maior os homens e mulheres de nossas forças armadas que estão
prestando serviço."
Mas
o que levará à situação-limite a acessibilidade
das fotos derivará do esforço contínuo para
proteger a administração e encobrir o nosso governo
desastroso no Iraque identificar a "indignação"
a respeito das fotos com uma campanha para debilitar o poder dos
militares americanos e os propósitos que eles servem atualmente.
Da mesma forma que muitas pessoas consideram uma crítica
implícita à guerra mostrar na televisão as
fotos de soldados americanos mortos durante a invasão e a
ocupação do Iraque, também será considerado
não patriótico disseminar as novas fotos e macular
a imagem da América.
Afinal
de contas, estamos em guerra. Guerra perpétua. E guerra é
inferno, um inferno bem pior do que imaginavam as pessoas que nos
levaram a essa guerra podre. Em nosso salão dos espelhos
digital, as fotos não vão desaparecer. Sim, parece
mesmo que uma foto vale mil palavras. E mesmo que nossos líderes
prefiram não olhá-las, ainda assim haverá outros
milhares de fotos e vídeos. Incontrolável.
<devir>
info@imediata.com
M
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