.As fotografias somos nós
Ensaio sobre a TORTURA INFLIGIDA AOS OUTROS



 

 



 
   

Notas sobre o que foi feito –e porque– aos prisioneiros, pelos americanos.

por Susan Sontag

Fonte: The New York Times Magazine, 23 de maio de 2004

Tradução Imediata

...Tortura na prisão de Abu Ghraib (2004)

I.

Por muito tempo –pelo menos seis décadas– as fotografias assentaram as bases de como os conflitos importantes são julgados e lembrados. O museu da memória ocidental é agora, sobretudo, de tipo visual. As fotografias têm um poder insuperável de determinar aquilo que lembramos dos eventos, e agora parece provável que a associação fundamental, para as pessoas no mundo todo, com relação à guerra que os Estados Unidos lançaram preventivamente no Iraque no ano passado, serão as fotografias dos prisioneiros iraquianos sendo torturados pelos americanos, na mais infame das prisões de Saddam Hussein, Abu Ghraib.

A administração Bush e seus defensores procuraram sobretudo limitar o desastre de relações públicas –a disseminação das fotografias– ao invés de lidar com os complexos crimes de liderança e de política revelados pelas imagens. Houve, em primeiro lugar, um deslocamento da realidade para as fotografias em si. A resposta inicial da administração foi dizer que o presidente estava chocado e enojado com as fotografias –como se o erro ou o horror residisse nas imagens, e não naquilo que elas retratam. Evitou-se também usar a palavra "tortura". Os prisioneiros teriam sido vítimas de eventuais "abusos", eventualmente de "humilhação" –isso foi tudo aquilo que se admitiu. "A minha impressão é de que nesse ponto a acusação é de abuso, o que é diferente de tortura", disse o Secretário da Defesa Donald Rumsfeld numa coletiva à imprensa. "Assim, portanto, não vou lidar com a palavra ‘tortura’."

As palavras alteram, as palavras acrescentam, as palavras subtraem. Há dez anos, verificou-se a árdua tarefa de se evitar a palavra "genocídio", enquanto cerca de 800.000 tutsis em Ruanda foram massacrados em poucas semanas, pelos seus vizinhos hutus, indicando que o governo americano não tinha nenhuma intenção de fazer qualquer coisa a respeito. Recusar-se de chamar o que ocorreu em Abu Ghraib –e o que tem ocorrido em todo o resto do Iraque, no Afeganistão e em Guantânamo– pelo seu verdadeiro nome, tortura, é tão escandaloso quanto a recusa de se chamar o genocídio em Ruanda de genocídio. Eis uma das definições de tortura contidas em uma das convenções das quais os Estados Unidos são signatários: " qualquer ato pelo qual se inflige intencionalmente severa dor ou sofrimento a uma pessoa, seja de ordem física ou mental, com propósitos tais como obter da mesma ou de uma terceira pessoa informações ou uma confissão". (A definição vem da Convenção Contra a Tortura e Outras Crueldades, Tratamento ou Punição Desumana ou Degradante, de 1984. Definições similares têm existido há algum tempo no direito e em tratados, começando com o Artigo 3 –comum às quatro convenções de Genebra de 1949– e muitas convenções recentes sobre direitos humanos.) A convenção de 1984 declara: "nenhuma circunstância excepcional, de qualquer tipo, mesmo em estado de guerra ou sob ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outro tipo de emergência pública, poderá ser invocada como justificativa para a tortura". E todos os convênios sobre tortura especificam que ela inclui o tratamento que objetiva humilhar a vítima, tal como deixar nus os prisioneiros em celas ou corredores.

Seja quais forem as ações que esta administração tomar para limitar o dano das revelações crescentes da tortura aos prisioneiros de Abu Ghraib e de outros lugares –julgamentos, cortes marciais, demissões por desonra, demissões de militares de alto escalão e de funcionários públicos responsáveis pela administração e substanciais compensações às vítimas– é possível que a palavra "tortura" continuará a ser banida. Reconhecer que os americanos torturam seus prisioneiros seria contradizer tudo o que esta administração convidou o público a acreditar, quanto à virtude das intenções dos EUA e o direito dos EUA, fluindo diretamente daquela virtude, de empreender uma ação unilateral no cenário mundial.

 

Mesmo quando o presidente foi finalmente compelido, à medida em que os danos à reputação dos EUA no mundo todo foram se dilatando e ampliando, a usar a palavra "desculpa", o foco do pesar ainda parecia ser o dano à pretensão da América quanto à sua superioridade moral. Sim, o Presidente Bush disse em Washington, no dia 6 de maio, quando estava ao lado do rei Abdullah II da Jordânia, que "sentia muito pela humilhação sofrida pelos prisioneiros iraquianos e a humilhação sofrida por suas famílias". Mas continuou dizendo que "estava igualmente sentido pelo fato de que as pessoas que olhavam para essas imagens não compreendiam a verdadeira natureza e o coração da América".

Ter todos os esforços dos EUA sintetizados por essas imagens deve parecer, àqueles que procuravam alguma justificativa para a guerra que depôs um dos monstruosos tiranos da era moderna, "injusto". Uma guerra, uma ocupação, é inevitavelmente uma imensa tapeçaria de ações. O que torna algumas ações mais representativas e outras não? A questão não é se a tortura era praticada por certos indivíduos (ou seja, "não por todos"), mas se era feita de modo sistemático. Autorizada. Perdoada. Todos os atos são feitos por indivíduos. A questão não é se a maioria ou a minoria dos estadunidenses praticam tais atos, mas se a natureza das políticas processadas por esta administração e as hierarquias dispostas a levá-las a cabo aumentaram a probabilidade de ocorrência desses atos.

II.

Consideradas sob essa luz, as fotografias somos nós. Isto é, elas são representativas das corrupções fundamentais de qualquer ocupação estrangeira juntamente com as políticas características da administração Bush. Os belgas no Congo e os franceses na Argélia praticaram a tortura e a humilhação sexual contra os nativos desprezados e recalcitrantes. Acrescentando-se a essa corrupção genérica o confuso, quase total despreparo dos governantes americanos no Iraque para lidar com as complexas realidades do país depois de sua "libertação". E adicionando-se as típicas e abrangentes doutrinas da administração Bush, principalmente a de que os EUA embarcaram numa guerra sem fim e que os detidos nessa guerra são, se o presidente assim decidir, "combatentes ilegais" –política enunciada por Donald Rumsfeld com relação aos prisioneiros talibãs e da AlQaeda, já em janeiro de 2002– e, dessa forma, como disse Rumsfeld, "tecnicamente" eles "não têm qualquer direito conforme estipulado pelas convenções de Genebra"; o resultado é uma receita perfeita para as crueldades e os crimes cometidos contra os milhares de encarcerados, os quais não têm qualquer acusação formal feita contra eles nem têm acesso a advogados, nas prisões administradas pelos EUA que foram criadas desde os ataques de 11 de setembro.

Assim, portanto, será que a questão real não seriam as fotos em si, mas aquilo que as fotos revelam ter acontecido aos "suspeitos" sob custódia americana? Não: o horror do que é mostrado nas fotos não pode ser separado do horror do fato de que as fotos tenham sido feitas, com os perpetradores posando, rindo da desgraça dos indefesos prisioneiros. Os soldados alemães na Segunda Guerra Mundial tiraram fotos das atrocidades que estavam cometendo na Polônia e na Rússia, mas fotos em que os algozes se colocam junto às suas vítimas são extremamente raras, como pode ser visto no livro recém publicado, "Photographing the Holocaust", de Janina Struk. Se há algo de comparável ao que essas fotos mostram são algumas das fotos dos negros vítimas de linchamento, tiradas entre 1880 e 1930, as quais mostram americanos rindo embaixo do corpo nu e mutilado de um homem ou de uma mulher de cor, enforcados e pendurados em uma árvore. As fotografias dos linchamentos eram lembranças de uma ação coletiva cujos participantes se sentiam perfeitamente justificados com relação ao que tinham feito. Assim também são as fotos de Abu Ghraib.

As fotografias dos linchamentos eram do tipo foto-troféus, tiradas por um fotógrafo com o propósito de serem colecionadas, armazenadas em álbuns, exibidas. As fotos tiradas pelos soldados americanos em Abu Ghraib, entretanto, refletem uma mudança no uso feito das fotos; menos objetos a serem preservados do que mensagens a serem disseminadas, circuladas. Uma câmera digital é uma possessão comum entre os soldados. Se, antigamente, fotografar a guerra era tarefa para fotojornalistas, agora os próprios soldados são todos fotógrafos, registrando a guerra, seus divertimentos, suas observações daquilo que consideram pitoresco, suas atrocidades, além de trocarem as imagens entre eles e enviá-las por e-mail ao mundo todo.

Há cada vez mais registro do que as pessoas fazem, e isso feito por elas mesmas. Pelo menos, ou especialmente, nos EUA. O ideal de Andy Warhol de fotografar eventos reais em tempo real –a vida não é editada; porque deveria ser editado o seu registro?– tornou-se uma norma para inúmeras emissões via web, nas quais as pessoas registram o seu dia, cada uma em seu próprio reality show.

Aqui estou eu, andando e bocejando e fazendo um alongamento, escovando os dentes, preparando o café-da-manhã, levando as crianças para a escola. As pessoas registram todos os aspectos de suas vidas, armazenando-os nos arquivos de seus computadores, e enviando esses arquivos. A vida em família integra-se com o registro da vida em família, mesmo quando, ou especialmente quando, a família está passando por alguma crise ou desgraça. Certamente, gravar em vídeo, com dedicação e de modo incessante, um ao outro, em conversa ou monólogo, no decorrer de muitos anos, foi o material mais impressionante de "Capturing the Friedmans", o recente documentário de Andrew Jarecki sobre uma família de Long Island envolvida numa acusação de pedofilia.

Para um número cada vez maior de pessoas, a vida erótica é o que pode ser capturado em fotos digitais e vídeo. E talvez a tortura seja mais atraente, como algo que mereça ser registrado, quando contém um componente sexual. É certamente revelador, à medida em que mais fotos de Abu Ghraib são vistas pelos público, que as fotos de tortura são entrefolhadas com imagens pornográficas de soldados americanos fazendo sexo os uns com os outros. De fato, a maioria das fotos das torturas tem uma temática sexual, como aquelas mostrando a coerção para que os prisioneiros fizessem ou simulassem atos sexuais entre si. Uma exceção, já canônica, é a foto do homem obrigado a ficar de pé em cima de uma caixa, encapuçado e envolto em fios, e a quem foi dito, segundo consta, que seria eletrocutado caso caísse da caixa. Ainda assim, fotos de prisioneiros forçados em posições dolorosas, ou obrigados a ficarem de pé com os braços estendidos são infreqüentes. Do fato de que elas contam como tortura, não há dúvida nenhuma. Basta ver o terror no rosto das vítimas, embora tal "estresse" se inclua dentro dos limites que o Pentágono considera aceitáveis. Mas a maioria das fotos parece parte de uma confluência mais ampla de tortura e pornografia: uma jovem mulher puxando um homem nu com uma coleira é uma clássica imagem de ‘dominadora’. E cabe refletir sobre o quanto da tortura sexual infligida aos presidiários de Abu Ghraib tenha sido inspirada pelo vasto repertório de imagens pornográficas disponíveis na Internet, e que as pessoas comuns, ao enviarem pela web imagens de si próprias, tentam imitar.

III.

Viver é ser fotografado, ter um registro da própria vida e, portanto, continuar a própria vida como que esquecendo, ou pretendendo ter esquecido das atenções ininterruptas da câmera. Mas viver é também posar. Agir é participar da comunidade de ações registradas como imagens. A expressão de satisfação frente aos atos da tortura sendo infligida às vítimas nuas, atadas e impotentes é somente parte da história. Há uma profunda satisfação quanto ao fato de se estar sendo fotografado, e em função disso, da disposição a se responder não com um olhar formal, direto (como em outros tempos), mas com uma expressão de satisfação. Os eventos são desenhados, em parte, para serem fotografados. O sorriso é um sorriso para a câmera. Ficaria faltando algo se, depois de se empilhar os homens nus, não se pudesse tirar uma foto dos mesmos.

Olhando essas fotos nos perguntamos como alguém pode rir dos sofrimentos e das humilhações de um outro ser humano? Lançar cães de guarda na altura dos genitais e das pernas de prisioneiros nus que procuram recuar? Forçar prisioneiros acorrentados, encapuçados a se masturbarem ou simularem sexo oral entre si? E nos sentimos quase ingênuos por perguntar, já que a resposta é, evidentemente, que as pessoas fazem isso às outras. Estupro e dor infligidas nos genitais se incluem entre as mais comuns formas de tortura. Não só em campos de concentração nazistas e em Abu Ghraib, sob a direção de Saddam Hussein. Os americanos também aplicaram e aplicam essas torturas quando lhes dizem para fazê-la, ou quando sentem que aqueles sobre os quais eles têm poder absoluto merecem ser humilhados, atormentados. Eles as aplicam quando são levados a crer que as pessoas que estão torturando pertencem a uma raça ou a uma religião inferior. Porque o significado dessas fotos não é apenas que esses atos foram praticados, mas que os perpetradores aparentemente não tinham nenhum senso de que havia algo de errado naquilo mostrado pelas fotos.

Ainda mais assombroso, já que o propósito das fotos era o de fazê-las circular e que fossem vistas por muitas pessoas: era divertido. E essa idéia de divertimento é cada vez mais –ao contrário daquilo que o Presidente Bush está dizendo ao mundo– parte da "verdadeira natureza e coração da América". É difícil medir a crescente aceitação da brutalidade no quotidiano, nos EUA, mas sua evidência está em todas as partes, começando com os vídeo games de assassinatos, um dos entretenimentos principais dos meninos –será que ainda vai demorar muito para sair o vídeo game "Interrogando os Terroristas?"– e chegando à violência que se tornou endêmica aos rituais de grupos de jovens, em exuberantes excitações. O crime violento está em baixa, mas o fácil deleite através da violência parece ter aumentado. Dos rudes tormentos infligidos aos calouros em muitas escolas suburbanas de segundo grau nos EUA –como aquelas ilustradas no filme de Richard Linklater de 1993, "Dazed and Confused" – aos obscuros rituais de brutalidade física e humilhação sexual praticados em fraternidades colegiais e em equipes esportivas, a América se tornou um país no qual as fantasias e a prática da violência são vistas como um bom entretenimento, um divertimento.

Aquilo que antes era segregado como pornografia, como o exercício de ansiosos desejos sado-masoquistas –como no último filme de Pier Paolo Pasolini, quase impossível de se ver, "Salò" (1975), retratando orgias de torturas no reduto fascista do norte da Itália, no fim da era de Mussolini– está passando agora por um processo de normalização, por alguns, como um jogo animado e válvula de escape para relaxamento. "Empilhar homens nus" é como uma travessura de uma fraternidade de colegiais, disse um ouvinte a Rush Limbaugh e aos milhões de americanos que escutam esse programa de rádio. É de se perguntar: será que o ouvinte viu as fotos? Não importa. A observação –ou será que é fantasia?– foi acertada. O que ainda pode chocar alguns americanos foi a resposta de Limbaugh: "Exatamente!", exclamou ele. "É exatamente o meu ponto. Não é nada diferente do que acontece na iniciação do Skull and Bones (N.T.: fraternidade em que foi iniciado o atual presidente George W. Bush, assim como o futuro candidato democrata Kerry e que significa, literalmente, Crânio e Ossos) e vamos acabar arruinando a vida das pessoas por causa disso, e vamos atrapalhar os esforços dos nossos militares, e daí vamos martelar a eles, só porque se divertiram." "Eles" são os soldados americanos, os torturadores. E Limbaugh continuou: "Vocês sabem, essas pessoas correm riscos de levar tiros todos os dias. Eu falo da necessidade dessas pessoas de se divertirem. Por acaso vocês já ouviram falar em válvula de escape emocional?"

.....

..............................Cena de "Salò" (1975)................................Tortura na prisão de Abu Ghraib (2004)

Choque e pavor é o que os nossos militares prometeram aos iraquianos. E choque e horror é o que essas fotos anunciam ao mundo, e o que os EUA entregaram: um padrão de comportamento criminoso em aberto desprezo das convenções humanitárias internacionais. Agora, soldados posam, dedão para cima, em frente das atrocidades que cometeram, e enviando as fotos depois para seus amigos. Segredos da vida privada com relação aos quais, previamente, se teria feito qualquer coisa para esconder, e que agora são um clamor para ser ‘convidado a revelar tudo’ em algum show de televisão. O que é revelado por essas fotos é tanto a cultura do descaramento e falta de vergonha quanto a admiração reinante pela brutalidade sem qualquer arrependimento.

IV.

A noção de que as desculpas ou as manifestações de "repugnância" feitas pelo presidente e seu secretário de defesa sejam uma resposta suficiente é um insulto ao nosso sentido histórico e moral. A tortura de prisioneiros não é uma aberração. É uma conseqüência direta das doutrinas de luta mundial do tipo "ou-está-conosco-ou-está-contra-nós", com as quais a administração Bush procurou mudar, e muda radicalmente a posição internacional dos EUA, redefinindo muitas instituições e prerrogativas no âmbito interno. A administração Bush empenhou o país numa doutrina de guerra pseudo-religiosa, uma guerra perpétua –já que "a guerra contra o terror" não é nada menos do que isso. A guerra perpétua é tomada como justificativa para o encarceramento perpétuo. Aqueles retidos no império penal extra-judicial dos EUA são "detidos", "prisioneiros", uma palavra que se tornou recentemente obsoleta, já que poderia indicar que eles têm direitos segundo o direito internacional e o direito de todos os países civilizados. Essa perpétua "guerra global contra o terrorismo" –dentro da qual tanto a ‘bastante justificável’ invasão do Afeganistão quanto a ‘impossível de ganhar’ idiotice no Iraque foram declaradas por decreto do Pentágono– inevitavelmente conduz à demonização e desumanização de qualquer indivíduo que a administração Bush declare ser um possível terrorista: uma definição que não está aberta a debates e é, com efeito, geralmente feita em segredo.

As acusações contra a maioria das pessoas detidas nas prisões do Iraque e do Afeganistão sendo inexistentes –a Cruz Vermelha reporta que de 70 a 90 por cento dos detidos parece não ter cometido crime algum além do fato de se encontrarem no lugar errado no momento errado, e terem sido pegos junto a algum bando de "suspeitos"– a principal justificativa para prendê-los é a "interrogação". Interrogação sobre o que? Sobre qualquer coisa. Seja o que for que o detido possa saber. Se a interrogação é o motivo para se deter prisioneiros indefinidamente, então a coerção física, a humilhação e a tortura se tornam inevitáveis.

Cabe lembrar: não estamos falando dos casos muito raros, das situações " prestes a explodir", as quais são às vezes usadas como casos-limite que justificam a tortura de prisioneiros que teriam conhecimento de um ataque iminente. Estamos falando de coleta de informações genéricas e não específicas, autorizadas pelos administradores militares e civis dos EUA para obter maiores informações sobre o obscuro império de malfeitores com relação aos quais os americanos não conhecem praticamente nada, em países com relação aos quais são particularmente ignorantes: em princípio, qualquer tipo de informação poderia ser útil. Uma interrogação que não produziu qualquer tipo de informação (não importando em que consista essa informação) deve ser considerada um fracasso. Quanto mais qualquer justificativa em termos de preparar os prisioneiros para falar. Amansando-os ou estressando-os –esses são os eufemismos para as práticas bestiais nas prisões americanas onde são detidos os suspeitos de terrorismo. Infelizmente, como anotou o Sargento Ivan (Chip) Frederick em seu diário, às vezes um prisioneiro pode chegar a ficar tão estressado que acaba morrendo. A foto de um homem enfiado num saco plástico com gelo sobre o peito pode se tratar de uma ilustração daquilo de que Frederick está falando.

As fotos não vão desaparecer. Essa é a natureza do mundo digital na qual elas vivem. De fato, parece que elas foram necessárias para que nossos líderes reconhecessem o problema que têm nas mãos. Afinal de contas, as conclusões dos relatórios compilados pela Comissão Internacional da Cruz Vermelha, assim como de outros relatórios feitos por jornalistas e de protestos de organizações humanitárias sobre as punições hediondas infligidas aos "detentos" e aos "suspeitos terroristas" nas prisões gerenciadas pelos militares dos EUA, primeiro no Afeganistão, depois no Iraque, têm circulado por mais de um ano. Parece pouco provável que esses relatórios tenham sido lidos pelo Presidente Bush ou pelo Vice-presidente Dick Cheney, ou por Condoleezza Rice ou por Rumsfeld. Aparentemente, foram necessárias as fotos para chamar a atenção deles, quando ficou claro que os fatos não poderiam ser sufocados; foram as fotos que tornaram tudo "real" para Bush e associados. Até então, tinha havido só palavras, as quais são mais fáceis de encobrir em nossa era de infinita auto-reprodução e auto-disseminação, e tão mais fáceis de esquecer.

Assim, agora, as fotos vão continuar a nos "atacar" –pelo menos é assim que muitos americanos vão sentir. As pessoas vão acabar se acostumando a elas? Alguns americanos já estão dizendo que já viram o suficiente. Não é o mesmo para o resto do mundo. Guerra perpétua: fluxo perpétuo de fotografias. Será que os editores vão debater agora se deveriam mostrar mais fotos, ou será que mostrá-las isoladamente (o que, com algumas das imagens mais conhecidas, como a do homem encapuçado em cima da caixa, dá, em alguns casos, uma visão mais assombrosa), seria "de mau gosto" ou, implicitamente, demasiado políticas? Por "políticas", leia-se: críticas ao projeto imperial da administração Bush. Porque não há dúvidas de que as fotografias causam danos, como testemunhou Rumsfeld: "a reputação de homens e mulheres honrados das forças armadas que estão defendendo com coragem, responsabilidade e profissionalismo nossa liberdade em todo o globo". Esse dano –contra a nossa reputação, nossa imagem, nosso sucesso como única super-potência– é o que a administração Bush mais deplora. Como a proteção de "nossa liberdade" –a liberdade de 5 por cento da humanidade– que tornou necessária a presença de soldados americanos "em todo o globo" é um fato raramente debatido pelos nossos representantes eleitos no governo.

O rebate já começou. Os americanos já estão sendo advertidos para não cederem a uma orgia de auto-condenação. A contínua publicação das fotos está sendo interpretada por muitos americanos como uma indicação de que não temos o direito de nos defendermos: afinal, foram eles (os terroristas) que começaram. Eles –Osama bin Laden? Saddam Hussein? Que diferença faz?– nos atacaram primeiro. O Senador James Inhofe de Oklahoma, membro do Partido Republicano na Comissão de Serviços Armados do Senado, diante da qual testemunhou o secretário da Defesa Rumsfeld, declarou estar certo que não ele era o único membro da comissão a estar mais "indignado com a indignação" sobre as fotos do que com aquilo que as fotos em si mostravam. "Esses prisioneiros", explicou o senador Inhofe, "vocês sabem que eles não estão lá por terem cometido infrações de trânsito. Se eles estão no Bloco de Celas 1-A ou 1-B, esses prisioneiros, então, são assassinos, são terroristas, são insurgentes. Muitos deles têm, provavelmente, sangue americano nas mãos, e nós, aqui, ficamos tão preocupados com o tratamento dispensado a esses indivíduos." É culpa da "mídia", que está provocando, e vai continuar a provocar ainda mais violência contra os americanos no mundo todo. Mais americanos morrerão. Por causa dessas fotos.

Há uma resposta a essa acusação, naturalmente. Americanos estão morrendo não por causa das fotos, mas devido àquilo que as fotos revelam estar acontecendo, e acontecendo com a cumplicidade da cadeia de comando –assim insinuou o Major General Antonio Taguba, assim disse a recruta Lynndie England e assim sugeriu (entre outros) o senador Lindsey Graham da Carolina do Sul, um republicano, depois que viu toda a gama de imagens no dia 12 de maio. "Algumas delas têm uma natureza elaborada, o que me cria suspeitas se havia outras pessoas dirigindo ou encorajando essas ações", disse o senador Graham. O senador Bill Nelson, democrata da Flórida, disse que ver as versões isoladas de uma foto, mostrando uma pilha de homens nus num corredor –uma versão que revelava quantos soldados estavam presentes na cena, alguns dos quais não estavam nem mesmo prestando atenção no que ocorria– estava em contradição com a afirmação do Pentágono de que somente um pequeno grupo embusteiro de soldados estavam envolvidos. "Em algum momento", disse o senador Nelson sobre os torturadores, "alguém lhes disse ou deu uma piscadela para que praticassem tais ações". Um advogado para o Specialist Charles Graner Jr., que está na foto, fez o cliente identificar os homens na versão isolada das fotos; segundo o The Wall Street Journal, Graner disse que quatro dos homens pertenciam à inteligência militar e um era um contratante civil que trabalhava para a inteligência militar.

 

V.

Mas a distinção entre fotografia e realidade –assim como entre politicagem e política– pode facilmente evaporar. E é isso que a administração espera acontecer. "Existem muitíssimas fotos e vídeos adicionais", Rumsfeld admitiu em seu testemunho. "Se elas forem divulgadas ao público, obviamente, as coisas vão piorar." Piorar para a administração e seus programas, presumivelmente, não para aqueles que são as vítimas reais –e potenciais?– da tortura.

A mídia pode autocensurar-se mas, como admitiu Rumsfeld, é difícil censurar soldados no exterior, os quais não escrevem cartas para casa, como no passado, cartas que podem ser abertas e lidas pelos censores militares, os quais passam a tinta preta sobre as linhas inaceitáveis. Os soldados de hoje, ao contrário, funcionam como turistas; como Rumsfeld disse: "correndo o mundo com câmeras digitais e tirando essas fotos inacreditáveis e enviando-as, contra a lei, à mídia, para nossa surpresa". O esforço da administração para esconder as fotos é feito em várias frentes. Atualmente, o argumento está passando por uma virada jurídica: agora as fotos são classificadas como evidência em futuros casos criminosos, cujo resultado pode ser prejudicado se elas caírem aos olhos do público. O presidente republicano da Comissão dos Serviços Armados do Senado, John Warner, da Virgínia, depois do show de slides de 12 de maio, imagem após imagem de humilhações sexuais e violência contra prisioneiros iraquianos, disse que acreditava "com convicção" que essas novas fotos "não deveriam ser divulgadas ao público". Acho que isso poderia colocar em perigo ainda maior os homens e mulheres de nossas forças armadas que estão prestando serviço."

Mas o que levará à situação-limite a acessibilidade das fotos derivará do esforço contínuo para proteger a administração e encobrir o nosso governo desastroso no Iraque –identificar a "indignação" a respeito das fotos com uma campanha para debilitar o poder dos militares americanos e os propósitos que eles servem atualmente. Da mesma forma que muitas pessoas consideram uma crítica implícita à guerra mostrar na televisão as fotos de soldados americanos mortos durante a invasão e a ocupação do Iraque, também será considerado não patriótico disseminar as novas fotos e macular a imagem da América.

Afinal de contas, estamos em guerra. Guerra perpétua. E guerra é inferno, um inferno bem pior do que imaginavam as pessoas que nos levaram a essa guerra podre. Em nosso salão dos espelhos digital, as fotos não vão desaparecer. Sim, parece mesmo que uma foto vale mil palavras. E mesmo que nossos líderes prefiram não olhá-las, ainda assim haverá outros milhares de fotos e vídeos. Incontrolável.

 

<devir> info@imediata.com

M