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"Baleia
queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás.
E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças
se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme,
num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás,
gordos, enormes."
Vidas Secas, Graciliano Ramos
Texto
do locutor: "E o Programa Fome Zero do Governo Federal ganhou
mais uma colaboradora. A cadelinha Perepepê, da socialite
carioca Vera Loyola. O bichinho de estimação da rainha
dos emergentes vai doar um colar de ouro de 18 quilates avaliado
em 3.000 reais para ajudar no programa Fome Zero. A jóia
da cadelinha foi feita pelo seu padrinho, o designer de jóias
Bernardo Langlott. Vera Loyola afirmou que pretende contribuir mais
para combater a fome. Ela promoveu um jantar para 40 amigas e pediu
que cada uma trouxesse de casa um objeto de valor para ser doado
para a campanha."
A nota acima redigida em tom de coluna social ou de seção
de informes de revista de celebridades foi ao ar no último
dia 6 de fevereiro de 2003 nos noticiários do canal da estatal
Radiobrás que oferece um sinal digital, transmitido
via satélite e redistribuído pela operadora de TV
por assinatura NET.O NBR é uma espécie de versão
audiovisual da "Voz do Brasil". Algo como a "Imagem
do Brasil".
Em primeiro lugar observe-se que na nota é a cadelinha, num
rompante caritativo, quem quer doar o colar, caracterizando a utilização
da figura de linguagem conhecida como prosopopéia, na qual
se empresta voz e ação a animais. O recurso foi empregado
magistralmente por Graciliano Ramos no capítulo dedicado
à personagem Baleia, em "Vidas Secas" (1938). Por
meio de Fabiano e Baleia entramos em contato com zonas espinhosas
e pedregosas do universo da seca e da fome, como na cena de sacrifício
da cadela. Fabiano, que vivia longe dos homens e só se dava
bem com os animais, ao perceber que Baleia estava para morrer, resolveu
se antecipar. "Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande
escuridão, com certeza o sol desaparecera
Baleia assustou-se.
Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação
dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas,
procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles",
descreve Graciliano o martírio de Baleia.
No caso da "emergente" Perepepê, que não
come preás nem vigia cabras, a personificação
teve o sentido de transformar a cadelinha numa divulgadora vip do
"Programa Fome Zero", recém-lançado pelo
Governo Federal. Um gesto que ao lado de outros de mesma origem
e natureza, sintetizam o espírito de um tempo marcado por
uma forma peculiar de relação com as imagens.
CAPITAL IMAGINÁRIO
III
Fórum Social Mundial. Estádio Gigantinho, em Porto
Alegre. Num domingo ensolarado, milhares de pessoas se apinhavam
nas arquibancadas do ginásio para discutir temas como "Mídia
e Globalização"; "Homogeneização
do imaginário", "Paz e Valores". Na primeira
palestra da tarde, o atual presidente da Radiobrás Eugênio
Bucci, responsável último pela produção
dos noticiários NBR, cita, num tom de esperança redentora,
o filósofo francês Guy Debord. "O espetáculo
é o capital a um tal grau de acumulação que
se torna imagem", pinçou Bucci da obra "Sociedade
do Espetáculo", do filósofo francês.
Premonitória sob todos os aspectos, a frase de Guy Debord
apresenta duas faces de uma mesma moeda corrente. De um lado revela
a efígie da visibilidade a qualquer preço, ou, se
preferirmos, a "tática da visibilidade total".
Do outro o processo de concretização das imagens espetaculares,
instrumentalizadas para as mais variadas causas e finalidades, inclusive
as de cunho social, como veremos adiante.
"O capital acumulado" de que nos fala Debord refere-se
a uma economia enlouquecida termo utilizado por Robert Kurz,
no prefácio à edição brasileira do livro
"Guy Debord", de Ansel Jape. Economia que aqui não
tem o sentido de produção material, essencial à
subsistência de qualquer sociedade, mas a um processo desrregulado,
desgarrado e desvairado, que promove um arrastão de todas
as esferas da vida humana. Exemplos desse processo estão
presentes na circulação de capital financeiro, no
papel assumido pelas marcas nas sociedades de consumo e na indústria
do entretenimento.
Milhões circulam pelos mercados financeiros mundiais. Esse
dinheiro não está vinculado nem à produção,
nem a nada que seja concreto na economia. O dinheiro sai de um computador
e chega num terminal do outro lado do mundo. É pura abstração.
Mas o processo registra o seu rastro em imagens autônomas,
que com o tempo impregnam a realidade, principalmente no hemisfério
sul, que muda de paisagem à medida que se endivida.
A jornalista canadense Naomi Klein mostrou em "No Logo"
que o importante não é mais a produção
de bens, mas a sofisticação da imagem da marca. As
"coisas" são produzidas na periferia do sistema
econômico mundial, nos países do Terceiro Mundo, enquanto
a imagem da marca é muito bem cuidada nas matrizes das empresas.
Pensemos finalmente na indústria do audiovisual, ou seja,
no cinema, na televisão, nos games e subprodutos. Será
que existe alguma indústria onde o capital se acumulou de
tal modo como na indústria do entretenimento audiovisual?
E se acumulou tão profundamente que passou a viver da espetacularização
dos aspectos mais degradantes e despotencializadores da realidade.
É uma indústria cujo capital transformou-se na pura
imagem espetacular, que paira como um farol que ilumina ininterruptamente
todas as telas e "télos" humanos.
CHAVE
DO SUCESSO
Antes
mesmo da doação de Perepepê, a "modelo
de beleza brasileira" Gisele Bundchen, num gesto não
menos despreendido e generoso, doou parte de seu cachê ao
Projeto Fome Zero. Na ocasião, estava ladeada pelo ministro
da Segurança Alimentar José Graziano que dias
antes, para não desagradar uma platéia de empresários,
disse que se não criarmos condições para eles
(os retirantes, os Fabianos da vida) se virarem por lá (Nordeste),
continuarão a migrar para cá (São Paulo), obrigando
a nós (os do bem) a seguir andando com veículos blindados
(para protegermos o nosso patrimônio contra os "do mal").
Da segurança alimentar para a saúde. Uma nota oficial
da Coordenação Nacional de DST e Aids do Ministério
da Saúde anunciava a escolha da cantora Kelly Key como protagonista
da campanha de carnaval em 2003. O objetivo, segundo a nota, era
promover o uso do preservativo entre a população feminina
jovem, em especial, a de baixa de renda. "A cantora foi escolhida
tanto pela sua identificação com o público
como pela sua imagem de pessoa segura e decidida (sic), que sabe
fazer valer sua vontade", dizia a nota. A justificativa era
a de que "a utilização de ídolos da juventude
em campanhas públicas abrevia o esforço do Ministério
da Saúde de ampliar a mensagem de prevenção".
Algumas ONGs/Aids posicionam-se contrárias à realização
da campanha. Consideraram que a artista em questão projeta
uma imagem que está na contramão da pedagogia preventiva.
"São valores que não constróem, nem respeitam
uma visão política do mundo e suas relações
de gênero. É perversa com os/as jovens quando vende
um modelo de sucesso e modo de vida baseada no consumo e na futilidade.
A imagem de Kelly Key propõe uma pseudo liberdade sexual,
onde o homem é o oprimido e a mulher é a opressora",
concluíram representantes das ONGs. Foi em vão.
O Ministério da Saúde preferiu apostar na identificação
com o hype da moda, reduzindo o seu "público alvo"
ao mesmo nível da garota-propaganda. "Kelly Key tem
20 anos. Foi casada por seis anos com um homem dez anos mais velho.
É mãe de uma menina de dois. Em suas letras, assume-se
como mulher vaidosa, dominadora e que sabe o que quer. O sucesso
de Kelly Key está no fato de que o seu discurso está
muito próximo dos anseios da população adolescente
feminina brasileira", disparou a nota ministerial no estilo
"estamos dando o que o público quer".
Mas não parou por aí. A Coordenação
Nacional de DST e AIDS arrogou-se o direito de conhecer "as
diversidades da população brasileira". Nesse
sentido, lembrou que a face oposta dessa identidade voltada ao aumento
da epidemia entre mulheres na faixa etária de 15 a 24 anos
é outra campanha, cujos protagonistas são os cantores
Sandy e Júnior. "Imagem de bons moços, Sandy
e Júnior também são fenômeno de público,
mas um público muito diferente do de Kelly Key", concluiu
a Cordenação.
Peço desculpas por cansar o leitor com estes exemplos. Mas
é importante mostrar que, tal qual no caso de Perepepê,
aqui também parte-se da lógica do capital acumulado
da imagem, que deve ser "usado" a favor da nobre causa.
Afinal de contas, se é para acabar com a AIDS e matar a fome
do povo, vale tudo, não é mesmo? Será?
CELEBRIZAÇÃO
DO SOCIAL
Ao
jogarem todas as fichas na espetacularização da realidade,
defendendo publicamente um discurso baseado na premissa de que esse
tipo de divulgação mobiliza outras pessoas e entidades,
os promotores de ações de intervenção
social, sejam agentes públicos ou privados, se descolam ainda
mais dos níveis de realidade mais próximos da fome,
das epidemias e outras questões sociais.
O perigo desta estratégia reside na celebrização
do social, via utilização de ícones oriundos
da sociedade do espetáculo, que ao invés de ampliarem
o campo de percepção a partir das mazelas sociais,
só conseguem atrair mais elementos espetaculares, girando
uma roda de clichês incapazes de transformar a repetição
em diferença qualitativa.
Nesse sentido, o "Fome Zero" corre o risco de virar uma
marca, com um belo logo e uma campanha publicitária "profissional",
que inclui depoimentos de ricos e famosos recomendando ajuda ao
projeto. Ou, o que é pior, servindo de apoio para empresas
como a Nestlé (viva o leite em pó!) ou a montadora
Ford (com sua campanha "Ford Zero") alardearem seu "marketing
social" (expressão que por si só já diz
tudo sobre a prática de instrumentalização
das causas sociais para finalidades economico-financeiras). Além
disso, cria uma esfera de representação onde os únicos
a ganharem alguma coisa são as/os modelos, as/os artistas
e jogadores de futebol, que capitalizam mais alguns trocos de fama
às custas da fome alimentar e cultural.
Aliás, os ícones espetaculares já perceberam
que sua sobrevivência depende da vinculação
da própria imagem a algum projeto carimbado com a chancela
social. Trata-se de um processo de retro-alimentação
vertiginoso, atuando no seio de uma sociedade que com a ajuda do
poder público arrastou qualquer ideário para a esfera
do marketing e do puro espetáculo (dois pilares da sociedade
de controle contemporânea). Vale tudo. Desde shows beneficientes,
leilões, liquidações sazonais, desfiles caritativos
a jantares inspirados no filme Festa de Babette com menu
incluindo sopa de camarão, codorna recheada, contrafilé
de cordeiro, salada de endívia, Kouglof com calda de vinho...
No convite dos eventos o carimbo e a marca indeléveis: "renda
arrecadada para o FOME ZERO". Entre os comensais, é
claro, as mesmas celebridades globais e palacianas desta
e de outras dinastias todos irmanados por gestos de solidadriedade
tão naturais quanto os sorrisos que emolduram suas expressões
aliviadas.
Um derradeiro exemplo recente dessa modalidade perversa refere-se
ao lançamento de um instituto criado por um apresentador
de televisão. Reproduzo abaixo o teor do anúncio de
divulgação (os grifos são meus):
O Instituto Criar idealizado por Luciano Huck, com o objetivo
de apresentar o universo de profissões da televisão
e do cinema a jovens em busca de oportunidades. Sua missão
é oferecer uma perspectiva de futuro para os jovens brasileiros
que façam parte de famílias de baixa renda, influenciando
comportamentos e valores.
Com o intuito de levantar fundos para a construção
de um Estúdio-Escola, onde serão desenvolvidas todas
as suas atividades, o Instituto Criar estará promovendo
um leilão entre os dias 09 e 16 de maio com o apoio do
AjudaBrasil. Confira alguns ítens que serão leiloados:
1. Partida de golfe com o craque Ronaldinho.
2. Volta no autódromo de Interlagos com o Rubinho.
3. Café da manhã com a Xuxa.
4. Jantar com o Rodrigo Santoro no Copacabana Palace.
5. Tour em Fernando de Noronha com Fernanda Lima.
6. Jantar com a modelo Ana Hickmann.
Na página LEILÃO
BENEFICIENTE do INSTITUTO CRIAR, sediado no portal AjudaBrasil
, "celebridades" leiloaram alguns aspectos de sua fama
(o que será que Perepepê doou dessa vez?). O montante
auferido alavancará o tal Estúdio, onde os "de
baixa renda" aprenderão a gerar mais imagens, que por
sua vez engordarão o capital de giro do espetáculo,
num mercado que, segundo a escritora Arundhati Roy , "reduziu
tudo a uma mercadoria pronta para venda, disponível a quem
der o maior lance".
A preocupação pela inclusão dos ícones
"emergentes" da sociedade do espetáculo em projetos
públicos, faz crer que existem duas categorias de cidadãos:
os emergentes e os submergentes. Os primeiros são tocados
pelas luzes de um novo dia (um journalismo celebrativo),
resgatados do universo da insignificância social e do anonimato
funcional para brilharem em todos os cantos dos palcos/telas; emergem
deste mundo cinzento de banalidades cotidianas para figurarem no
panteão dos ricos e famosos (ainda que a notoriedade tenha
sido construída numa linha de montagem publicitária).
Quanto aos demais, os submergentes, têm o papel de figuração,
ou de claque (aquele grupo de pessoas combinadas ou contratadas
para aplaudirem um espetáculo; admiradores ou seguidores
de alguém). O sonho recôndito da claque é atravessar
o fosso do palco e emergir para a ribalta. E para mantê-los
do lado de lá lhes dizem que seu papel é interativo,
já que de vez em quando um deles será escolhido para
"emergir" (como nos reality shows da vida). Só
tem um detalhe. Emergentes, submergentes e palacianos estão
todos no mesmo barco. É a nau enlouquecida que Guy Debord
chamou de "Sociedade do Espetáculo". Para fugir
do seus domínios e da sua comunicação unilateral,
será preciso singrar noutros mares. À deriva. Com
um pouco mais de ousadia e criatividade.
Em 1989 o videoartista Nam June Paik concebeu um menino feito de
monitores de TV. A estrutura de metal, medindo 1,5 m de altura,
composta de 13 pequenos televisores, exibia imagens abstratas. A
vídeo-escultura "O Menino Faminto" vinha acompanhada
da seguinte legenda, escrita pelo autor: "A fome no mundo é
particularmente um problema de transporte e especialmente um problema
de comunicação. Não é mais um problema
físico. A melhor maneira de encará-lo não é
só com compaixão, senão com uma atitude mais
intelectual e compreensiva".
Em tempo: a jóia de ouro e diamantes da cadela Perepepê
acabou sendo vendida por R$ 5.000 para a socialite de Brasília
Marita Martins, mãe do ex-senador cassado Luiz Estevão,
num leilão realizado na casa que leva o sugestivo nome de
"Meu Passado me Condena", no Rio de Janeiro.
<devir>
info@imediata.com
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