ESTÉTICA PEREPEPÊ e o capital acumulado da imagem
............................................por Silvio Mieli



 

 



 
   

"Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes."
Vidas Secas, Graciliano Ramos

 

Texto do locutor: "E o Programa Fome Zero do Governo Federal ganhou mais uma colaboradora. A cadelinha Perepepê, da socialite carioca Vera Loyola. O bichinho de estimação da rainha dos emergentes vai doar um colar de ouro de 18 quilates avaliado em 3.000 reais para ajudar no programa Fome Zero. A jóia da cadelinha foi feita pelo seu padrinho, o designer de jóias Bernardo Langlott. Vera Loyola afirmou que pretende contribuir mais para combater a fome. Ela promoveu um jantar para 40 amigas e pediu que cada uma trouxesse de casa um objeto de valor para ser doado para a campanha."

A nota acima – redigida em tom de coluna social ou de seção de informes de revista de celebridades – foi ao ar no último dia 6 de fevereiro de 2003 nos noticiários do canal da estatal Radiobrás – que oferece um sinal digital, transmitido via satélite e redistribuído pela operadora de TV por assinatura NET.O NBR é uma espécie de versão audiovisual da "Voz do Brasil". Algo como a "Imagem do Brasil".

Em primeiro lugar observe-se que na nota é a cadelinha, num rompante caritativo, quem quer doar o colar, caracterizando a utilização da figura de linguagem conhecida como prosopopéia, na qual se empresta voz e ação a animais. O recurso foi empregado magistralmente por Graciliano Ramos no capítulo dedicado à personagem Baleia, em "Vidas Secas" (1938). Por meio de Fabiano e Baleia entramos em contato com zonas espinhosas e pedregosas do universo da seca e da fome, como na cena de sacrifício da cadela. Fabiano, que vivia longe dos homens e só se dava bem com os animais, ao perceber que Baleia estava para morrer, resolveu se antecipar. "Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera…Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles", descreve Graciliano o martírio de Baleia.

No caso da "emergente" Perepepê, que não come preás nem vigia cabras, a personificação teve o sentido de transformar a cadelinha numa divulgadora vip do "Programa Fome Zero", recém-lançado pelo Governo Federal. Um gesto que ao lado de outros de mesma origem e natureza, sintetizam o espírito de um tempo marcado por uma forma peculiar de relação com as imagens.

CAPITAL IMAGINÁRIO

III Fórum Social Mundial. Estádio Gigantinho, em Porto Alegre. Num domingo ensolarado, milhares de pessoas se apinhavam nas arquibancadas do ginásio para discutir temas como "Mídia e Globalização"; "Homogeneização do imaginário", "Paz e Valores". Na primeira palestra da tarde, o atual presidente da Radiobrás Eugênio Bucci, responsável último pela produção dos noticiários NBR, cita, num tom de esperança redentora, o filósofo francês Guy Debord. "O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se torna imagem", pinçou Bucci da obra "Sociedade do Espetáculo", do filósofo francês.

Premonitória sob todos os aspectos, a frase de Guy Debord apresenta duas faces de uma mesma moeda corrente. De um lado revela a efígie da visibilidade a qualquer preço, ou, se preferirmos, a "tática da visibilidade total". Do outro o processo de concretização das imagens espetaculares, instrumentalizadas para as mais variadas causas e finalidades, inclusive as de cunho social, como veremos adiante.

"O capital acumulado" de que nos fala Debord refere-se a uma economia enlouquecida – termo utilizado por Robert Kurz, no prefácio à edição brasileira do livro "Guy Debord", de Ansel Jape. Economia que aqui não tem o sentido de produção material, essencial à subsistência de qualquer sociedade, mas a um processo desrregulado, desgarrado e desvairado, que promove um arrastão de todas as esferas da vida humana. Exemplos desse processo estão presentes na circulação de capital financeiro, no papel assumido pelas marcas nas sociedades de consumo e na indústria do entretenimento.

Milhões circulam pelos mercados financeiros mundiais. Esse dinheiro não está vinculado nem à produção, nem a nada que seja concreto na economia. O dinheiro sai de um computador e chega num terminal do outro lado do mundo. É pura abstração. Mas o processo registra o seu rastro em imagens autônomas, que com o tempo impregnam a realidade, principalmente no hemisfério sul, que muda de paisagem à medida que se endivida.

A jornalista canadense Naomi Klein mostrou em "No Logo" que o importante não é mais a produção de bens, mas a sofisticação da imagem da marca. As "coisas" são produzidas na periferia do sistema econômico mundial, nos países do Terceiro Mundo, enquanto a imagem da marca é muito bem cuidada nas matrizes das empresas.

Pensemos finalmente na indústria do audiovisual, ou seja, no cinema, na televisão, nos games e subprodutos. Será que existe alguma indústria onde o capital se acumulou de tal modo como na indústria do entretenimento audiovisual? E se acumulou tão profundamente que passou a viver da espetacularização dos aspectos mais degradantes e despotencializadores da realidade. É uma indústria cujo capital transformou-se na pura imagem espetacular, que paira como um farol que ilumina ininterruptamente todas as telas e "télos" humanos.

CHAVE DO SUCESSO

Antes mesmo da doação de Perepepê, a "modelo de beleza brasileira" Gisele Bundchen, num gesto não menos despreendido e generoso, doou parte de seu cachê ao Projeto Fome Zero. Na ocasião, estava ladeada pelo ministro da Segurança Alimentar José Graziano – que dias antes, para não desagradar uma platéia de empresários, disse que se não criarmos condições para eles (os retirantes, os Fabianos da vida) se virarem por lá (Nordeste), continuarão a migrar para cá (São Paulo), obrigando a nós (os do bem) a seguir andando com veículos blindados (para protegermos o nosso patrimônio contra os "do mal").

Da segurança alimentar para a saúde. Uma nota oficial da Coordenação Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde anunciava a escolha da cantora Kelly Key como protagonista da campanha de carnaval em 2003. O objetivo, segundo a nota, era promover o uso do preservativo entre a população feminina jovem, em especial, a de baixa de renda. "A cantora foi escolhida tanto pela sua identificação com o público como pela sua imagem de pessoa segura e decidida (sic), que sabe fazer valer sua vontade", dizia a nota. A justificativa era a de que "a utilização de ídolos da juventude em campanhas públicas abrevia o esforço do Ministério da Saúde de ampliar a mensagem de prevenção".

Algumas ONGs/Aids posicionam-se contrárias à realização da campanha. Consideraram que a artista em questão projeta uma imagem que está na contramão da pedagogia preventiva. "São valores que não constróem, nem respeitam uma visão política do mundo e suas relações de gênero. É perversa com os/as jovens quando vende um modelo de sucesso e modo de vida baseada no consumo e na futilidade. A imagem de Kelly Key propõe uma pseudo liberdade sexual, onde o homem é o oprimido e a mulher é a opressora", concluíram representantes das ONGs. Foi em vão.

O Ministério da Saúde preferiu apostar na identificação com o hype da moda, reduzindo o seu "público alvo" ao mesmo nível da garota-propaganda. "Kelly Key tem 20 anos. Foi casada por seis anos com um homem dez anos mais velho. É mãe de uma menina de dois. Em suas letras, assume-se como mulher vaidosa, dominadora e que sabe o que quer. O sucesso de Kelly Key está no fato de que o seu discurso está muito próximo dos anseios da população adolescente feminina brasileira", disparou a nota ministerial no estilo "estamos dando o que o público quer".

Mas não parou por aí. A Coordenação Nacional de DST e AIDS arrogou-se o direito de conhecer "as diversidades da população brasileira". Nesse sentido, lembrou que a face oposta dessa identidade voltada ao aumento da epidemia entre mulheres na faixa etária de 15 a 24 anos é outra campanha, cujos protagonistas são os cantores Sandy e Júnior. "Imagem de bons moços, Sandy e Júnior também são fenômeno de público, mas um público muito diferente do de Kelly Key", concluiu a Cordenação.

Peço desculpas por cansar o leitor com estes exemplos. Mas é importante mostrar que, tal qual no caso de Perepepê, aqui também parte-se da lógica do capital acumulado da imagem, que deve ser "usado" a favor da nobre causa. Afinal de contas, se é para acabar com a AIDS e matar a fome do povo, vale tudo, não é mesmo? Será?

CELEBRIZAÇÃO DO SOCIAL

Ao jogarem todas as fichas na espetacularização da realidade, defendendo publicamente um discurso baseado na premissa de que esse tipo de divulgação mobiliza outras pessoas e entidades, os promotores de ações de intervenção social, sejam agentes públicos ou privados, se descolam ainda mais dos níveis de realidade mais próximos da fome, das epidemias e outras questões sociais.

O perigo desta estratégia reside na celebrização do social, via utilização de ícones oriundos da sociedade do espetáculo, que ao invés de ampliarem o campo de percepção a partir das mazelas sociais, só conseguem atrair mais elementos espetaculares, girando uma roda de clichês incapazes de transformar a repetição em diferença qualitativa.

Nesse sentido, o "Fome Zero" corre o risco de virar uma marca, com um belo logo e uma campanha publicitária "profissional", que inclui depoimentos de ricos e famosos recomendando ajuda ao projeto. Ou, o que é pior, servindo de apoio para empresas como a Nestlé (viva o leite em pó!) ou a montadora Ford (com sua campanha "Ford Zero") alardearem seu "marketing social" (expressão que por si só já diz tudo sobre a prática de instrumentalização das causas sociais para finalidades economico-financeiras). Além disso, cria uma esfera de representação onde os únicos a ganharem alguma coisa são as/os modelos, as/os artistas e jogadores de futebol, que capitalizam mais alguns trocos de fama às custas da fome alimentar e cultural.

Aliás, os ícones espetaculares já perceberam que sua sobrevivência depende da vinculação da própria imagem a algum projeto carimbado com a chancela social. Trata-se de um processo de retro-alimentação vertiginoso, atuando no seio de uma sociedade que com a ajuda do poder público arrastou qualquer ideário para a esfera do marketing e do puro espetáculo (dois pilares da sociedade de controle contemporânea). Vale tudo. Desde shows beneficientes, leilões, liquidações sazonais, desfiles caritativos a jantares inspirados no filme Festa de Babette – com menu incluindo sopa de camarão, codorna recheada, contrafilé de cordeiro, salada de endívia, Kouglof com calda de vinho... No convite dos eventos o carimbo e a marca indeléveis: "renda arrecadada para o FOME ZERO". Entre os comensais, é claro, as mesmas celebridades globais e palacianas – desta e de outras dinastias – todos irmanados por gestos de solidadriedade tão naturais quanto os sorrisos que emolduram suas expressões aliviadas.

Um derradeiro exemplo recente dessa modalidade perversa refere-se ao lançamento de um instituto criado por um apresentador de televisão. Reproduzo abaixo o teor do anúncio de divulgação (os grifos são meus):

O Instituto Criar idealizado por Luciano Huck, com o objetivo de apresentar o universo de profissões da televisão e do cinema a jovens em busca de oportunidades. Sua missão é oferecer uma perspectiva de futuro para os jovens brasileiros que façam parte de famílias de baixa renda, influenciando comportamentos e valores.
Com o intuito de levantar fundos para a construção de um Estúdio-Escola, onde serão desenvolvidas todas as suas atividades, o Instituto Criar estará promovendo um leilão entre os dias 09 e 16 de maio com o apoio do AjudaBrasil. Confira alguns ítens que serão leiloados:
1. Partida de golfe com o craque Ronaldinho.
2. Volta no autódromo de Interlagos com o Rubinho.
3. Café da manhã com a Xuxa.
4. Jantar com o Rodrigo Santoro no Copacabana Palace.
5. Tour em Fernando de Noronha com Fernanda Lima.
6. Jantar com a modelo Ana Hickmann.

Na página LEILÃO BENEFICIENTE do INSTITUTO CRIAR, sediado no portal AjudaBrasil , "celebridades" leiloaram alguns aspectos de sua fama (o que será que Perepepê doou dessa vez?). O montante auferido alavancará o tal Estúdio, onde os "de baixa renda" aprenderão a gerar mais imagens, que por sua vez engordarão o capital de giro do espetáculo, num mercado que, segundo a escritora Arundhati Roy , "reduziu tudo a uma mercadoria pronta para venda, disponível a quem der o maior lance".

A preocupação pela inclusão dos ícones "emergentes" da sociedade do espetáculo em projetos públicos, faz crer que existem duas categorias de cidadãos: os emergentes e os submergentes. Os primeiros são tocados pelas luzes de um novo dia (um journalismo celebrativo), resgatados do universo da insignificância social e do anonimato funcional para brilharem em todos os cantos dos palcos/telas; emergem deste mundo cinzento de banalidades cotidianas para figurarem no panteão dos ricos e famosos (ainda que a notoriedade tenha sido construída numa linha de montagem publicitária). Quanto aos demais, os submergentes, têm o papel de figuração, ou de claque (aquele grupo de pessoas combinadas ou contratadas para aplaudirem um espetáculo; admiradores ou seguidores de alguém). O sonho recôndito da claque é atravessar o fosso do palco e emergir para a ribalta. E para mantê-los do lado de lá lhes dizem que seu papel é interativo, já que de vez em quando um deles será escolhido para "emergir" (como nos reality shows da vida). Só tem um detalhe. Emergentes, submergentes e palacianos estão todos no mesmo barco. É a nau enlouquecida que Guy Debord chamou de "Sociedade do Espetáculo". Para fugir do seus domínios e da sua comunicação unilateral, será preciso singrar noutros mares. À deriva. Com um pouco mais de ousadia e criatividade.

Em 1989 o videoartista Nam June Paik concebeu um menino feito de monitores de TV. A estrutura de metal, medindo 1,5 m de altura, composta de 13 pequenos televisores, exibia imagens abstratas. A vídeo-escultura "O Menino Faminto" vinha acompanhada da seguinte legenda, escrita pelo autor: "A fome no mundo é particularmente um problema de transporte e especialmente um problema de comunicação. Não é mais um problema físico. A melhor maneira de encará-lo não é só com compaixão, senão com uma atitude mais intelectual e compreensiva".

Em tempo: a jóia de ouro e diamantes da cadela Perepepê acabou sendo vendida por R$ 5.000 para a socialite de Brasília Marita Martins, mãe do ex-senador cassado Luiz Estevão, num leilão realizado na casa que leva o sugestivo nome de "Meu Passado me Condena", no Rio de Janeiro.

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