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Transposição, não! Revitalizar, sim! por Bené Fontelles Querido Chico Tu és muito velho e eu com muita intimidade, posso te escrever mesmo assim na ousadia falando a um amigo raro. Essa amizade começou na madrugada mágica de l972, quando tive um alumbramento acordando com um alvoroço dentro de um ônibus vindo de Fortaleza e indo para São Paulo. A curiosidade era grande para te ver ainda caudaloso no encantado da noite sobre a longa ponte entre Petrolina e Juazeiro. É ali que divides dois Estados e compartilhas por todo teu curso, a mito-poética que te faz o mais belo e o mais lendário dos rios brasileiros. Muitas vezes atravessei teu caminho neste itinerário que foi alimentando meu imaginário e o desejo profundo de um dia navegar e nadar por tuas águas. Primeiro, fui realizar o sonho te atravessando de barco entre Piassabuçu em Alagoas para ir me banhar em tua foz na ilha do Cabeço em Sergipe onde fui muitas vezes nos últimos anos da década de 80. Ali provei da tua água entre doce, salobra e salgada e aonde, quase morri afogado de muito afoito, numa correnteza danada, só salvo dela pela coragem do pescador Verô e do amigo Pedrinho a quem ambos, devo poder contar agora a nossa história. Ali também atravessando o rio no meio daquela zoada medonha da foz - tu encontrando e alimentando o mar de todo teu imenso percurso -, tive um sonho com o santo de Assis. Ele me pedia para se fazer peregrinar desde tua nascente, até o oceano com sua imagem criada por um artista popular. Escolhemos, nós do Movimento Artistas pela Natureza presentear a esta manifestação com a imagem de São Francisco Peregrino feita pelo artesão Zeus de Areia Branca-SE. O motivo de tudo, era uma peregrinação religiosa e ecológica para nos educarmos com tuas águas e teu povo e defender o teu patrimônio natural. Era l992, 4 de outubro, dia do santo que te dá nome e te abençoa, São Francisco, eu me batizava na serra da Canastra em Minas com teus primeiros filetes de água junto com teus humildes peregrinos: Frei Luiz Cappio, Adriano Martins, Irmã Conceição e Orlando Araújo. Eu fui o quinto peregrino, articulando de fora e um pouquinho de dentro, a heróica caminhada destes quatro servos do rio e do santo. Eles com pouca roupa e haveres, e muita coragem, desceram até a foz aonde chegaram depois de muitos sacrifícios, 365 celebrações uma missa ecológica fantástica e educativa e conversas muitas com estudantes, políticos, religiosos, ecologistas e educadores. Foram muitos os plantios de árvores, as limpezas de lixo e as cantigas com a música que fizeram para conscientizarem a todos de dar um gole de água ao rio com sede de justeza simbiose do justo com a beleza. Os peregrinos escreveram com o povo ribeirinho a "Carta do Rio São Francisco", fazendo cumprir com lealdade até hoje seus anseios, e na ocasião, denunciaram a tua penúria e lançaram uma campanha nacional pela tua revitalização. Nada foi igual até hoje em décadas de conscientização ecológica no país, o que este trabalho peregrino fez com a participação popular, e, pela construção de um movimento articulado pelo povo e não por uma ong ou muito menos, por interesses oportunistas. No dia 4 de outubro de 1993, eu estava com eles me batizando na foz, juntando com Adriano Martins as águas que colhi na nascente para encontrar teu vasto mar, aquele que também sempre és desde as primeiras gotas do transparente lá na serra das Gerais. Por esta comunhão e por muitas outras, nunca mais te abandonei, e por isso, para sempre, eu te amo como convém cultuar e proteger o melhor amigo. Portanto, por ter navegado muito por tuas águas rasas e ainda piscosas; por ter andado muito por tuas cidades ribeirinhas e mágicas, conversado com teus pescadores e lavradores, tuas lavadeiras, teus artistas, teus educandos e educadores, teus feirantes e toda tua gente boa e morena; por ter nadado muito junto a teus peixes e tuas crianças nuas e bonitas; por ter até voado sobre ti de avião e na nau do imaginário, é que posso saber então do que sonhas e do que careces. E sei, que não queres esta transposição tão mal falada e tão teimosamente defendida por quem não sabe nada de tua alma e das necessidades reais de teu povo. Sabe-se que doente algum pode doar seu sangue aos que mais carecem da vida. Tu irmão Chico, não podes doar mais do que já doas, dando ainda teu sangue que é tua pouca água, já que precisas dela como dos afluentes, estes das nascentes, estas das chuvas nos lençóis freáticos para gerar abundância. E é desta fartura que carece tua gente sofrida: ter vida para compartilhar a Vida. E esta carência começa principalmente quando termina os Gerais e se alarga o sertão baiano às tuas margens para onde vem gente com pouca coisa e as últimas esperanças. Destas mesmas margens, tu banhas como um Nilo nordestino o agreste de Pernambuco indo fertilizar também de húmus em húmus o Sergipe e as Alagoas onde entre os dois, torna-te mar e oceanas... Peço-te mais uma vez perdão, como de joelhos fizeram a pedido do peregrino Frei Luiz Cappio, milhares de seres vindos da nascente a foz naquele memorável 3 de outubro de l993. Naquele dia em Penedo, terminava para um grande público, a peregrinação pelo teu leito que durou um ano deixando marcas profundas e inesquecíveis em tua gente ribeirinha. Nos anos de 1999 e 2000, estávamos de novo tu e eu com novas parcerias. Eram artistas, ecologistas, cientistas, educadores e escritores viajando por todo o mês de julho de Pirapora em Minas de onde te tornas navegável, até o Pontal do Peba em Alagoas, onde na foz te infinitas, para fazermos o "Caminho das Águas." Era um projeto artístico, ecológico, cientifico e educacional pela tua revitalização, para que o povo ribeirinho e o Brasil não fiquem de costas para teu leito no qual encalhamos várias vezes de tão raso, sujo e assoreado. Estávamos junto de ti solidários divulgando a Lei das Águas, criando os Comitês de Bacia e trocando informações com tua gente cheia de graça e arte na rua, na escola e na lida do duro trabalho do barranqueiro. Estávamos mais uma vez ao sabor e ao saber das tuas águas e de teus sonhos e nos incorporando de vez ao teu rico imaginário. Por tanta ignorância de ti, mas também, por tanta querência de saber de tua vida, é que te peço perdão por ser humano, igual aos que te usam pela ganância de dinheiro e poder. São os membros do nosso governo que se diz de esquerda, gente até de nossa geração que tanto lutou pelas questões ecológicas. São também além dos políticos, os donos das empreiteiras que ambicionam o mais, mais do que servir o que merece o povo nordestino. Todos eles estão querendo, sem ouvir o povo do rio e os estudos mais profundos das causas ecológicas e econômicas sustentáveis, sangrar tua pouca água por outras terras que precisam de outras soluções mais razoáveis e coerentes para se ter à água da Vida. Basta então, ouvir o que diz no final de seu artigo "A quem serve a transposição?", o sábio geógrafo Aziz AbSáber, que te conhece de íntimo - pois Aziz, se parece com aquela testemunha do momento que o criador refazia o Mundo quando descreve sobre a origem dos lugares e ele afirma: "O risco final é que, atravessando acidentes geográficos consideráveis, como a elevação da escarpa do Araripe com grande gasto de energia! -, a transposição acabe por significar apenas um canal tímido de água, de duvidosa validade econômica e interesse social, de grande custo, e que acabaria, sobretudo, por movimentar o mercado especulativo, da terra e da política. No fim, tudo apareceria como o movimento geral de transformar todo o espaço em mercadoria." No mesmo dia, na mesma Folha de São Paulo, o Sr. Pedro Brito, economista, chefe de gabinete do ministro da Integração Nacional e coordenador-geral do Projeto São Francisco, finaliza seu publicitário artigo dizendo: "Em resumo: o projeto é tecnicamente perfeito, socialmente justo e ambientalmente sustentável." Veja, Velho Chico, com nossa experiência em consultar o povo para saber o que ele deseja de bom para si e para o rio, só se esse perfeito, justo e sustentável for bom politicamente para o ministério, o governo, o cargo dele e das empresas que concorrem à obra. Querido Chico, portanto, me permita usar tua carta para enviar um recado sugestivo ao Presidente Lula a quem muito prezo e ainda respeito: "Presidente, crie urgente como modelo de monarquias e repúblicas sábias, um conselho de anciões para ouvir a sabedoria de gente como Aziz AbSáber, Millôr Fermandes, Oscar Niemayer, Evaristo Arns, Davi Yanamomi, Luciano Mendes, Antônio Candido, Pedro Casaldáliga, Conceição Tavares, Tomás Balduino, Zilda Arns, Ariano Suassuna, muitos outros como Seu Pedro o presidente da Associação dos Pescadores do Rio São Francisco. Seu Pedro com seu bom humor e suas histórias de sabedoria ribeirinha, é quem mais entende de rio do que ministros e técnicos que nunca tomaram banho no rio, comeram de seu peixe e beberam a água de sua sede. Pena Presidente, que meus outros indicados que partilharam dos seus mesmos sonhos, estejam morrendo muito depressa com saudade dos rios de outra Vida: Celso Furtado, Darci Ribeiro, Hélder Câmara, Nise da Silveira, Milton Santos, Barbosa Lima Sobrinho, José Lutzemberger, Patativa do Assaré, Lúcio Costa, Sérgio Buarque de Holanda, Teotônio Vilela..." Peço então Velho Chico, que tenhas mais uma vez paciência, tolerância e compaixão pelos que não sabem o que fazem. Foi com este mesmo mote que na cruz, sangrando e com sede de água e de justiça, pediu Cristo a Deus, seu Pai, por misericórdia e amor aos humanos, para que perdoassem os insensatos, e depois, ressuscitou em nós para o rio da Vida Eterna. Desejo-te velho amigo, Esta Vida, a mais vasta, para compartilhares a tua vida com todos, por que sei que sendo um velho sábio, sabes que o pão mais gostoso é o do momento da partilha. Bené Fonteles Coordenador do Movimento Artistas pela Natureza e animador do Movimento ArteSolidária
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