>> AMORES INSÓLITOS 6 – Por um multiculturalismo sem filtros

AMORES INSÓLITOS 6 – Por um multiculturalismo sem filtros

Por: Mario S. Mieli
Mensagem original de 24 de outubro de 2011 postada em 3 de janeiro de 2012





“Índia amamenta filhote de porco do mato”, de Pisco Del Gaiso. Foto flagrou índia da tribo Guajás, no Maranhão, amamentando filhote de porco do mato criado na aldeia.

Faz alguns anos, encontrava-me dirigindo dois departamentos diferentes de uma agência de comunicações de Nova York: o Departamento de Italiano e o Departamento de Português.

Certo dia, nós diretores fomos insistentemente ‘solicitados’ pela chefia suprema de expor, em nossos respectivos departamentos, símbolos ‘típicos’ das culturas cujos idiomas representávamos.

O ‘Chairman of the Bored’, naturalmente, tinha em mente que colocássemos em display uma bandeirinha do país/cultura que representávamos ou, quando muito, algo como a Torre Eiffel para a França, ou um cartaz do Oktoberfest para a Alemanha.

Eu, como diretor bi-departamental, pensei em símbolos emocionalmente mais significativos, contundentes e radicais (de “raiz”). Precisavam ser complementares entre si, para dar uma certa unidade à bipolaridade ítalo-portuguesa-brasileira departamental.

Imediatamente produzi para a Itália a Loba, símbolo de Roma, amamentando Rômulo e Remo.
O Brasil (como país de maior população de língua portuguesa) me forneceria uma inesquecível imagem de uma indiazinha amamentando um porquinho do mato. Era uma foto de Pisco del Gaiso que chegou a ganhar vários prêmios internacionais.
Tratava-se do cuidado e amor que existe entre as espécies, inclusive a espécie humana, nas sociedades mais integradas com a natureza.

Os clientes e publicitários que visitavam a agência sobrevoavam todos os departamentos, mas paravam mesmo no sui generis Departamento de Italiano e Português. Contemplavam as imagens que estavam dispostas lado a lado, e me olhavam com um misto de admiração exagerada e desdém de superioridade moral. Não preciso dizer que quase ninguém parecia saber que a Loba era o símbolo de Roma e de toda a cultura latina e que a foto da Índia brasileira fotografada tinha merecido tantos prêmios por ressaltar a interconexão com as outras espécies e a natureza como um todo.

Poucos dias depois, os diretores dos demais departamentos se reuniram com o CEO para exigir que eu removesse as imagens do bi-departamento, acusando-me de apelar para a pornografia e a bestialidade.

Concordei em removê-las, mas com a condição de que seria preciso realizar um ritual para pedir perdão a esses símbolos cujas culturas representavam. Levei um vinho e uma cachaça e só os funcionários do bi-departamento foram convidados a uma happy-hour diferente: a cerimônia de remoção dos símbolos. Invoquei Exu, a Pomba-Gira, Pã e Afrodite. Preparei um breve discurso pedindo perdão à Loba, à Índia Awá-Guajá e a Pisco. Repeti dez vezes, em todas as línguas que conheço, que aquele espaço corporativo não merecia hospedar imagens tão culturalmente sagradas e de raiz.

Nós todos, italianos, brasileiros, portugueses, angolanos e caboverdianos manifestamos nossa unidade com um bom vinho italiano (bebido sobretudo pelos de língua portuguesa) e cachaça da boa em caipirinha (bebida sobretudo pelos italianos). Expressamos nossa gratidão a Dionísio, por termos nascido na graça de culturas tão pagãs-na-mente raiz, e não na hipocrisia de culturas tão puritanamente corporativas.

Os copos de plástico usados e ainda manchados pelo álcool, empilhados um dentro do outro, viraram colunas. E se tornaram os novos símbolos do departamento – dissemos que se tratava de cálices ritualísticos, simbolizando a Torre de Pisa (e a Praça dos Milagres) e o futurismo de Brasília. Tínhamos pensado no Cristo Redentor, mas este, por ser símbolo religioso, teria sido ‘banido’ pelo pretensamente laico Chairman of the Bored.

As fotos da Loba e da Índia Awá-Guajá que estavam no display estão muito bem, sãs e salvas, muito obrigado… E retornam aqui para espalhar seu Axé nesta série de amores insólitos, mas nem por isso menos intensos…


La Lupa, simbolo di Roma, al museo Campidoglio


Capitolini: Sala Della Lupa







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