>> Construir uma nova sociedade da abundância para evitar o destino funesto de uma obsolescência planejada da humanidade, por Serge Latouche

Construir uma nova sociedade da abundância para evitar o destino funesto de uma obsolescência planejada da humanidade, por Serge Latouche
Fonte: La Repubblica de 14/09/2012
Tradução: Mario S. Mieli




Vivemos numa sociedade do crescimento, ou seja, uma sociedade dominada por uma economia que tende a se deixar absorver pelo crescimento como fim em si mesmo, objetivo primordial, quando não único, da vida. Justamente por isso, a sociedade de consumo é o êxito tido como certo de um mundo fundado sobre uma tríplice ausência de limite: na produção e, portanto, na retirada dos recursos renováveis e não renováveis, na criação de necessidades – e na emissão de escórias de poluição (do ar, da terra e da água).

O coração antropológico da sociedade do crescimento se torna, então, a dependência dos seus membros com relação ao consumo. Por um lado, o fenômeno se explica com a lógica do sistema, e por outro, com um instrumento privilegiado da colonização do imaginário, a propaganda/publicidade. E encontra uma explicação psicológica no jogo da necessidade e do desejo. Usando uma metáfora, nos tornamos “toxicodependentes” do crescimento. Que tem muitas formas, já que à bulimia da compra – somos todos “turboconsumidores” – corresponde o “workaholismo”, a dependência do trabalho. Um mecanismo que tende a produzir infelicidade porque está baseado na contínua criação de desejo.



Mas o desejo, diferentemente das necessidades, não conhece limites. Já que está voltado a um objeto perdido e não encontrável, como dizem os psicanalistas. Sem poder achar o “significante perdido”, se fixa no poder, na riqueza, no sexo ou no amor, todas coisas cuja sede não conhece saciedade. (…) Também por isso é útil imaginar um novo modelo. Econômico e existencial. Assim, a redefinição de felicidade como “abundância frugal em uma sociedade solidária”, corresponde à força de ruptura do projeto de decrescimento. Ela supõe sair-se do círculo infernal da criação ilimitada de necessidades e produtos e da frustração crescente que ela gera e, de modo complementar, temperar o egoísmo resultante de um individualismo de massas. Sair da sociedade do consumo é, assim, uma necessidade, mas o projeto iconoclasta de se construir uma sociedade de “frugal abundância” só pode causar objeções e colidir com formas de resistência, seja quais forem os cursos e os percursos do decrescimento.

Em primeiro lugar, nos perguntaremos, a própria expressão “abundância frugal” não seria, talvez, um oximoro pior daquele corretamente denunciado do desenvolvimento sustentável? No máximo, podemos conceber e aceitar uma “prosperidade sem crescimento”. Segundo a proposta do ex-conselheiro para o meio-ambiente do governo trabalhista, Tim Jackson, todavia uma abundância na frugalidade é realmente excessivo! De fato, até que permanecermos bitolados no imaginário do crescimento, só podemos ver nisso uma insuportável provocação. Mas se, pelo contrário, abandonarmos certa lógicas, talvez fique evidente que a frugalidade é uma condição preliminar respeito a todas as formas de abundância.



A abundância consumista pretende gerar felicidade através da satisfação dos desejos de todos, mas isso depende de rendas distribuídas de modo desigual e, de todo modo, sempre insuficientes para permitir à imensa maioria de cobrir as despesas de base necessárias, especialmente quando o patrimônio natural foi dilapidado. Indo no sentido oposto ao desta lógica, a sociedade do decrescimento se propõe de trazer a felicidade da humanidade por meio da autolimitação, para poder alcançar a “abundância frugal”. Como toda sociedade humana, uma sociedade de decrescimento deverá, certamente, organizar a produção de sua vida, isto é, utilizar de um modo razoável os recursos do seu meio-ambiente e consumi-los através dos bens materiais e serviços. Mas o fará um pouco como aquelas “sociedades da abundância” descritas pelo antropólogo Marshall Salhins, que ignoram a lógica viciosa da raridade, das necessidades, do cálculo econômico.

Esses fundamentos imaginários da instituição da economia precisam ser postos em discussão. Jean Baudrillard tinha visto isso muito bem, quando disse que “uma das contradições do crescimento é que ele produz ao mesmo tempo bens e necessidades, mas não os produz no mesmo ritmo”. O resultado é o que ele chama de “uma pauperização psicológica”, um estado de insatisfação generalizada que define afirma ele, “a sociedade do crescimento como o contrário de uma sociedade da abundância”. A verdadeira pobreza reside, de fato, na perda da autonomia e na dependência.

Um provérbio dos nativos americanos explica bem esse conceito: “Ser dependentes significa ser pobres, ser independentes significa aceitar de não enriquecer”. Somos, portanto, pobres, ou mais exatamente míseros, nós que somos prisioneiros de tantas próteses. A reencontrada frugalidade permite precisamente reconstruir uma sociedade da abundância na base do que Ivan Illich chamava de “subsistência moderna”. Ou seja, “o modo de viver em uma economia pós-industrial, no interior da qual as pessoas conseguiram reduzir sua dependência com relação ao mercado, protegendo – através de instrumentos políticos – uma infraestrutura na qual as técnicas e os instrumentos servem, em primeiro lugar, para criar valores de uso não quantificados e não qualificáveis por parte dos fabricantes profissionais de necessidades”. O crescimento do bem estar é, assim, o caminho principal do decrescimento, posto que estando felizes, estamos menos sujeitos à propaganda e a compulsão do desejo. Muitas dessas opções implicam uma mudança na nossa atitude também com relação à natureza.



Ainda me lembro de minha primeira laranja, encontrada dentro do meu sapato, no dia de Natal, no fim da guerra. Lembro-me, também, alguns anos depois, dos primeiros cubos de gelo que um vizinho rico, que tinha uma geladeira, nos trazia, durante as noites de verão e que nós mordíamos deliciados como fossem iguarias.

Uma falsa abundância comercial destruiu a nossa capacidade de nos maravilharmos diante dos dons da natureza (ou da engenhosidade humana que transforma esses dons). Reencontrar essa capacidade suscetível de desenvolver uma atitude de fidelidade e de reconhecimento com relação à mãe-Terra, ou também uma certa nostalgia, é a condição para o sucesso do projeto de construção de uma sociedade de decrescimento sereno, assim como a condição necessária para evitar o destino funesto de uma obsolescência planejada da humanidade.

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