“O caso Mateus” , por Sílvio Mieli

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Esperando “Batman”…

O “atirador” do Batman, como James Holmes, de Aurora, Colorado, ficou conhecido, é um enésimo caso de carnificina indiscriminada. Infelizmente, só mais um. Analisar as causas da violência, o impacto das imagens midiáticas e dos games que propulsam a isso, ou contextualizar o que é matar com uma espingarda comparado com matar com bombas despejadas de uma aeronave não tripulada por controle remoto são questões que se impõem.
O fato de que o evento ocorreu numa cidade chamada Aurora e que o filme tem como título “O ascender, subir, levantar, aparecer…. do cavaleiro escuro, sombrio, das trevas…” só acirra a ironia do episódio.

Talvez a pergunta básica a ser feita seria que “remédios” ou “medicamentos” esses assassinos estavam tomando no período anterior ao crime. No caso do atirador do Batman “James”, já há quem revele que o nome do fármaco é Vicodin.

Certamente, aqueles que acreditam que a violência nas telas não tem nada a ver com a violência na vida, desta vez também afirmarão que as pragas farmacêuticas não tem nada a ver com o ocorrido.

De todo jeito, “o caso James” nos remete a outro episódio cruento, o “caso Mateus”, quando, na noite de 3 de novembro de 1999, dentro da sala do Morumbi Shopping, em São Paulo, uma matança parecida teve lugar. Por isso vale a pena revisitar “O caso Mateus”, um texto de Sílvio Mieli sobre o ocorrido em São Paulo. Engraçado (ou trágico), basta substituir o nome “Mateus” por “James” o nome da cidade, do cinema e do filme, e a validade das reflexões do artigo permanece a mesma.

O caso Mateus

Por Sílvio Mieli
ou lições de como ir ao cinema e matar a família.

Pecado é o que machuca a alma
São Francisco de Assis

Mateus, o serial-killer com nome de apóstolo, pode ser esquizofrênico. Seu “bom senso” teria sido afetado pelo uso de drogas. Falharam os dispositivos socialmente construídos para “monitorar” seus atos – família, escola, segurança pública. Ainda que tudo isso fique comprovado, nada apagará a simbologia assustadora da sua trajetória. Ela reverbera e impõem-se pelo conteúdo pedagógico.

Mateus escolheu caminhos transversos, passíveis de serem recuperados a partir do roteiro que ele mesmo deixou. Ao invés de matar a família e ir ao cinema, resolveu partir do filme para depois decretar sentenças de morte a muitas famílias. Mateus saiu literalmente da tela do cinema. Ou, antes disso, atirou no espelho do banheiro, como que apagando a fronteira entre a ilusão especular da sua própria consciência e a realidade dos espectadores do “Clube da Luta”. Na hora dos tiros ninguém sabia se estava vivendo o enredo do filme ou participando dos planos de Mateus. Experiência traumática, semelhante ao sono do soldado, sacudido abruptamente pela invasão do inimigo que já irrompe atirando.

“Nenhuma pesquisa comprovou a influência de imagens violentas no comportamento das pessoas a elas submetidas”, repetem com ênfase os jornalistas e especialistas de plantão. Fontes que se apressam em desvincular qualquer relação entre os meios de comunicação e as atrocidades do mundo “real”. As frases se repetem, sempre as mesmas. “Ninguém mata porque viu um filme violento”, alegam, ou “as motivações são mais profundas”, refletem; “a censura é um perigo para a sociedade”, asseveram. Há também as frases perversas, do tipo: “Por que algumas pessoas fazem isso, o que leva um ser humano aparentemente normal a cometer tal atrocidade ????”; “Por quê????. Por quê?????”Why????Why???

Um crítico teorizou que “desde a aurora do cinema discute-se regularmente a tese da catalisação demoníaca pelos filmes dos piores instintos humanos”. O mesmo acontecera antes com livros e peças de teatro, lembra Amir Labaki. “Fato é”, prossegue Labaki, “que as obras de arte espelham, muito antes do que pretensamente provocam, a selvageria que é própria do homem”. Depois arremata que “é muito mais fácil vociferar contra o que se passa nas telas do que combater a guerra concreta das ruas. Libertinagem com armas, não com filmes, é o real problema”, conclui Labaki.

O crítico parece concordar com a publicidade da revista “Veja”, que amplia em outdoor o assunto da semana: “(Violência) Fora das telas não tem a menor graça”.

Ora, a diferença dos tempos dos livros e das peças de teatro é que hoje vivemos muito mais na esfera audiovisual, na infosfera e no ciberespaço (desde a hora em que acordamos até o nosso último bocejo), o que nos obriga, no mínimo, a repensar a nossa relação com a técnica, particularmente a audiovisual, com a mesma profundidade com que nos debruçamos sobre os tráfico de drogas e armas e a reprodução dos serial-killers do “mundo real”. Esse “espelho que reflete a selvageria própria do homem” começou a ser estilhaçado há muito tempo. O que faltava Mateus se encarregou de metralhar. Passamos para o outro lado do espelho, como fez Alice, só que descobrimos que nem tudo é maravilhoso na outra margem do rio. Estamos vivendo parte de nossas vidas por entre as imagens que consumimos, criamos e projetamos. A bidimensionalidade da superfície das telas confunde-se com a nossa primeira natureza multidimensional. Não há mais uma fronteira nítida entre o dentro e o fora das telas.

Além disso, a história de todas as tecnologias audiovisuais, da fotografia analógica até as imagens digitais, têm suas origens vinculadas à ação bélica. Como nos ensina Paul Virilio, “ancestral da câmera dos irmãos Lumière, o fuzil cronotográfico de Marey, que permitia focalizar e fotografar objetos se deslocando no espaço não descendia em linha direta da metralhadora a manivela do coronel Gatling e do colt a tambor patenteado em 1832 ?”

Todas essas técnicas, nas quais empatamos a nossa alma e o nosso espírito, enquanto o corpo fica imóvel, nasceram para ampliar capacidades perceptivas. Passamos a ver o invisível, mas o invisível também pode ser o inimigo num campo de batalha pouco fixo, o da guerra “real” ou aquele dos cenários em 3-D dos videogames. É também o mesmo inimigo que Mateus aventa tê-lo perseguido. E aqui, tanto no filme “Clube da luta”, com sua violência “pseudo-branca”, quanto no roteiro proposto por Mateus, o objetivo é eliminar o inimigo, seja ele quem for, como em todas as guerras.

Agressividade introjetada, interiorizada, cultivada a partir de várias etapas de adestramento audiovisual. Um recente mapeamento estatístico realizado pela Organização das Nações Unidas — ONU, em 6 emissoras de canal aberto brasileiras detectou 1.432 crimes em uma semana de desenhos animados. A TV Bandeirantes e TV Record lideram os homicídios em seus desenhos animados e a TV Globo vence em lesões corporais. A média mais alta (32 crimes por hora) ficou com a TV Manchete (atual Rede TV!). Dos crimes cometidos, 34% eram inteiramente gratuitos. Em geral não há polícia. Os crimes não geram consequências à vítima e não existe intermediação (alguém para dirimir conflitos). 45% dos desenhos é de origem norte-americana. Há 30% de homicídios e 41% das consequências físicas resultam em morte. Em que pese a necessidade urgente da discussão de limites bem claros e definidos, principalmente em relação ao acesso das crianças aos sites de pornografia e aos jogos de guerra, o tipo de resistência que este momento impõe passa ao largo da censura que os jornalistas tanto temem – não por convicções democráticas, mas para não perder o filão exploratório da própria violência.

O caso Mateus, um quase médico, terminando seus estudos na Santa Casa de Misericórdia, e não um jovem fugitivo da Febem ou de um presídio qualquer, revela, portanto, uma violência de outra natureza, alimentada num ambiente de classe-média. Os recentes casos de serial killers mundo afora atestam que os jovens assassinos vem se voltando cada vez mais, como bem observou Contardo Caligaris, aos lugares onde são mal amados: a própria casa, a escola, o trabalho e agora o binômio Shopping/cinema. E neste último, a reação de Mateus é da mesma natureza das imagens que escolheu, não por acaso. O filme pode ser virtual e os tiros podem ser atuais, mas o trágico encontro dos dois nas circunstâncias montadas por Mateus desmascara a distância que pensávamos persistir entre realidade e virtualidade, entre normalidade e anormalidade, entre os “do bem” e os “do mal”, entre a segurança artificial e a insegurança latente.

Os Shopping Centers, inspirados num modelo estilizado de violência “multiplexificada”, ajudaram a implantar o design urbano segregacionista, baseado na transformação do cidadão em consumidor, assentado no empobrecimento das relações interpessoais e na privatização dos espaços públicos. Exatamente o mesmo esquema que orienta projetos contemporâneos, como o New York City Center, que não fica na ilha de Manhattan, mas na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Numa reportagem que mais parecia um press release, o caderno de informática do jornal “O Globo” saudava a nova modalidade de shopping da cidade, onde “Tecnologia é passaporte para entretenimento”. Sob a foto que destacava em primeiro plano dois adolescentes se contorcendo durante um game, a legenda diz tudo: “No COMBÁTICA, uma das atrações do GameWorks, os jogadores se envolvem numa luta virtual fazendo movimentos reproduzidos pelos personagens que aparecem no monitor”.

Nesse contexto, nem mesmo a televigilância funciona mais, substituída por uma mistura perversa de autovigilância e auto-exposição eficientíssimas, concretizadas via internet, via telemarketing e via Hollywood. Sim, Hollywood, sempre ela, que no dizer de Virilio “nunca deixou de celebrar a união bárbara entre a arma e a foto automática. Como se não pudesse se livrar de sua inspiração assassina, a divisa do onipotente cinema americano continua a ser: “Quando ouço a palavra cultura, saco o meu revólver”; esta última frase atribuída a Joseph Goebbels, Ministro da propaganda e da informação de Hitler.

Serão os meios de comunicação a aprofundar o debate da condição na qual estamos metidos? É mais fácil investir na oposição falsa entre mundo real e mundo virtual, insinuando que não há influências mútuas entre eles, ou exigindo laudos técnicos que as comprovem. Enquanto isso vendem-nos terrenos na Web, o Novo Mundo, a última fronteira do capitalismo, para onde deveríamos nos mudar de mala e cuia.

Diante desse cenário, o olhar de Mateus e o atordoamento de todos os que acompanharam o drama –na sala 5 do cinema do shopping ou chorando seus mortos– denuncia que há imagens-ações, imagens-percepções e imagens-lembranças mais devastadoras do que tiros. Uma questão de profundidade.
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